Gotas insistentes, num constante ritmo, pingavam do teto na minha testa. Meu pulso direito estava acorrentado firmemente à parede de pedra, dando-me pouco espaço para movimentar-me. Eu não tinha consciência exata do que fazia naquela cela escura e fria, só das gotas que caiam em minha testa. Minha última memória nítida era a de estar na estrada de terra, a caminho de Penny Land, com uma pequena comitiva, guardas inclusos, o que não adiantara porra nenhuma. Fomos emboscados, fui capturado e apanhara pra caralho. E a dor e o desespero que senti enquanto apanhava eram minha última memória.
Havia algum tempo eu estava ali no escuro, a dor no corpo todo me moendo. Eu gritei por ajuda antes de desmaiar. E quando acordei, estava outra vez naquela cela. Em meu sonho breve, eu vira Paul como o deixara horas antes, chateado comigo. Eu estava outra vez naquela cela e apavorado. Mas agora havia luz, luz do fogo de alguns archotes. E duas vozes de homens conversando.
- Ei! – chamei com certo esforço.
- Ah! O bastardo acordou! – uma das vozes se aproximou e junto dela o emissor, um cara tosco, forte; na verdade ele mais aparentava ser tosco do que realmente devia ser. Tinha olhos perspicazes, o filho da puta. – E então, bastardo?
- Que porra de lugar é esse? Quem é você?
O cara apontou o distintivo no peito.
- O selo da Casa Real. Estou a serviço de Sua Majestade.
- Eu sou teu rei. Tire-me daqui.
Ele estalou a língua saboreando qualquer coisa.
- Meu rei é McCartney.
- Pois então, seu estúpido, me tire daqui ou teu rei vai meter a tua cabeça numa estaca.
- Estou certo que não afinal estou a serviço dele – riu, mostrando os dentes que tinha.
- Escuta aqui, você sabe com quem está falando?
Tornou a estalar a língua.
- John Lennon de Nowhere, bastardo do rei Alfred.
- E rei de Pepperland.
- Não por muito tempo mais.
Perdi a paciência.
- Caralho!– puxei o braço preso e senti uma fisgada de dor na carne. – Que porra está havendo?!
- Sua majestade, o rei Paul foi quem ordenou sua prisão e eventual tortura, se necessário.
- Tá bom. – estreitei os olhos com ironia impaciente – Tá. Você é um lunático. Acompanhado de outros lunáticos. Roubou essa porra desse casaco.
- Ah, não – ele sorriu. – Olha, meu chapa, é bom você começar a encarar a realidade. Eu sou teu carcereiro. Já disse que estou a serviço de McCartney. Foi ele quem mandou prender você. Estou com a ordem de serviço aqui comigo e junto há uma carta pra você.
Hesitei.
– Me dá aqui. Quero ver.
Eu consigo me lembrar da maior parte das palavras daquela carta. Digamos que ela é inesquecível, devido ao horror que me proporcionou. Portanto, aí vai, mais ou menos, o que havia nela:
“John,
Talvez você não vá crer em mim, mas foi difícil tomar essa decisão. Eu digo isso porque, nesse tempo que passamos juntos, tivemos ótimos momentos. Eu poderia ficar com você, querido John, eu poderia atender ao meu prazer, ao meu coração romântico, não fosse o meu dever. Eu sou o rei de Pepperland, tenho um reino nas mãos, tenho o destino de milhões nas mãos, eu tenho a obrigação de não sucumbir à minha vontade particular.
Eu lamento, John, lamento. É o que eu preciso fazer.
Eu adiei ao máximo a decisão, esse momento que me corta o coração. Mas eis, doce John, o que decidi: eu devo governar esse reino sozinho e não posso mais manter essa situação.
Eu sempre soube que chegaria o momento em que teria de fazer isso; desde o começo. Eu precisava me casar com você, precisava obter as vantagens da segurança e dissuadi-lo de me derrubar. Consegui nossa união, consegui um contrato vantajoso. Depois disso, foi ficando mais e mais difícil me separar de você, pois eu o amei, de fato amei, John. Eu o amei desde o início. Cheguei a considerar não ir em frente com o planejado, mas segurar essa situação só vai piorar tudo. Com o tempo será ainda mais difícil me separar de você e já tenho me tornado por demais entregue a meus sentimentos de paixão. Embora eu o ame, tenho que zelar por meu legado.
Não espero que me perdoe e sei que será doloroso. Acredite, para mim também o é.
Eu o manterei como prisioneiro por tempo indeterminado; não consigo no momento ordenar sua execução.
Paul”
- Isso não é verdade – murmurei.
O homem sorriu.
- Olha, meu amigo, se eu fosse você me conformava logo. Essa carta foi escrita de punho por McCartney. Você deve conhecer a caligrafia.
- Certamente uma falsificação. Paul jamais faria isso comigo.
- Eu tenho pena dos crédulos apaixonados. Os homens se tornam uns imbecis quando se apaixonam. Você está aí, um belo exemplo disso. Nem consegue acreditar no que está na sua frente. Mas é a verdade.
- Não! – gritei.
- Cale a boca ou vou ter de mandar açoitar você.
- Cale-se você, seu merda do caralho!
- Você está fodido, Lennon. – ele enfiou a mão por entre as grades, puxando meu rosto com força: - Muito fodido.
- Me solta!
- Não se preocupe que não quero nada com você. Não gosto dos homens. McCartney é o único homem pra quem eu talvez abrisse uma exceção; ele é como um deus, um ser mitológico – passou a língua nos dentes, me escrutinando – Mas nunca tive o prazer de desfrutar de sua companhia, ao contrário de muitos dos guardas, antes e depois de seu casamento.
Eu não posso me lembrar de todos os xingamentos que proferi. Fui tomado pelo ódio cego, pela loucura aguda, por toda a dor do mundo. Eu puxei as correntes com força, enfiando o metal em minha carne, sem medo de arrancar o braço. Berrei e uivei, fui açoitado e tornei a apanhar, dele e de outros. Não me lembro sequer do quanto doeu fisicamente. Em certo ponto, a dor física era um consolo desejável para aplacar o que ia dentro.
O que ia dentro de mim...
Oh, nada.
(...)
O escuro total, a ausência das cores e de tudo.
(...)
Eu gritei o nome de Paul, gritei tão alto. Senti sangrar a garganta.
Rasgado por inteiro, a voz, meu espírito.
(...)
Não sei exatamente quanto tempo passei ali.
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