Enquanto sentia o material gélido das algemas em meus punhos, também pude sentir os olhares que vinham de todos os lados. Os que alfinetavam minha nuca de maneira curiosa, os que queimavam a lateral de meu rosto não tão pálido, os que pareciam petrificar o outro lado de minha face e os que verdadeiramente importavam: os olhares dos três membros do conselho, aqueles que definiriam meu futuro. Não havia compaixão, julgamento ou qualquer outro sentimento. Apenas três homens, trajados em roupas escuras que lhes cobriam cada detalhe irrelevante que pudesse haver ali.
O silêncio sepulcral parecia deixar a plateia ainda mais inquieta, o que não irritava apenas a mim, mas também a Emery, um rapaz de aparência jovem e beleza de outro mundo, que creio ter aproximadamente 2 metros de altura. Sua pele cor de mogno era uma bela combinação com seus olhos vermelhos. Ele estrategicamente deu um passo à frente e sibilou: "Silêncio!". Não havia motivos para levantar a voz; caso chegasse a tal ponto, creio que não teríamos muitos para contar a história sobre o dia em que Emery, conhecido por sua paciência e beleza descomunal, se deixou levar por meros... serviçais. Não sei qual a visão nobre ele poderia ter sobre as pessoas que estavam ali, observando tudo como se fosse uma execução, mas essa era a maneira como eu os via.
– O que te faz ter tanta certeza que não se trata de uma execução? -– Questionou Bjørn, quebrando o silêncio.
Bjørn era diferente de Emery em alguns aspectos. Ambos pareciam ter sido esculpidos à mão, em um trabalho extremamente delicado e bastante atento aos detalhes. Em contraste com a pele de Emery, Bjørn possuía cabelos castanho-claros, quase loiros, e uma pele tão pálida... Sua beleza era semelhante a uma pintura de Antoon Van Dyck, do século XVII, e não era coincidência que ambos foram bons amigos durante os anos de ouro de Van Dyck.
– Se isso fosse uma execução, não estaríamos perdendo tanto tempo, Bjørn. – Respondi de maneira seca. – Não concorda?
O tempo foi curto entre minha resposta e a sensação gélida da mão de Bjørn em minha garganta. O que serviu para provar meu argumento.
– Eu estou certa, não estou? – Perguntei com dificuldade.
– Irmão... Por gentileza. – Foi a vez de Ivar, o terceiro e último membro do conselho falar algo. – Deixe-a.
E assim ele o fez. Ivar e Bjørn são gêmeos, apesar de uma única coisa que os difere, além da personalidade. Enquanto um possuía os cabelos claros, o outro os tinha pretos como a noite sem estrelas.
– Acredito que esteja na hora de dar início. – Disse Ivar com a voz firme.
A plateia se organizou em seus lugares como se um filme estivesse prestes a começar, alguns sentados à ponta de seus assentos, beirando a ansiedade.
Tudo começou com um discurso de Emery, relembrando as diversas vezes em que eu estive na mesma posição, quantas chances me foram dadas, apesar de o lema deles ser "nada de segundas chances". Ele mencionou que me foi dado o benefício da dúvida em nome do meu pai, que os havia seguido por mais de 300 anos, sendo extremamente fiel, os deixando apenas para ficar com minha mãe... uma humana. E eu sabia que tanto Ivar quanto Bjørn poderiam me ouvir nesse momento e, independentemente do resultado que fosse decidido aqui, neste julgamento, gostaria de deixar claro que não preciso de favores em nome do meu pai. Esse homem está tão morto para mim quanto para eles. Especialmente depois do que houve...
Depois de esclarecer isso, retomei minha atenção às palavras de Emery e não emiti um pensamento sequer sobre toda essa palhaçada.
– Mia, você está sendo julgada por, mais uma vez, colocar o disfarce de todos em risco. Membros da nossa sociedade buscam viver em harmonia com os humanos há milhares de anos. Existem clãs... famílias! Pessoas que buscam se policiar, controlar sua sede para evitar expor a existência de seres como nós, vampiros – disse Emery de maneira calma, e ainda assim pude sentir a revolta em suas palavras. – Suas atitudes impensadas são danosas para toda uma sociedade, e não podemos deixar que uma garota mimada, que sequer sabe o que quer da vida, crie um caos que pode nos destruir.
Talvez ele estivesse certo de alguma forma.
– Meus irmãos votaram para que houvesse uma execução, mas eu vejo... Eu vejo que as coisas vão melhorar.
Emery conseguia ter breves visões do futuro, que podiam ou não se concretizar, todos confiavam em suas visões. Não sei se pela posição em que ele ocupa ou se pelo seu carisma. Mas devo dizer que eu não acreditava que as coisas poderiam melhorar.
– É a sua última chance, Mia. – Disse Bjørn completamente furioso com a bondade do irmão. – Se você não acreditar, é mais fácil para mim.
Sussurrou a última parte.
Estava tão distraída que não vi quando os guardas se aproximaram para tirar as algemas de mim. Aos poucos, a sala ia se esvaziando, alguns satisfeitos com o final do julgamento e outros nem tanto, pois saíram de casa para ver uma execução. E eu? Não sabia o que esperar. Já era a quinta vez aqui nos últimos seis meses. Me virei para ir embora... Mas embora para onde? Enquanto eu me dirigia à saída da mansão, meus pensamentos foram interrompidos quando, surpreendentemente, a mão de Ivar tocou meu ombro.
– Não queria te assustar, Mia. – Ele parecia genuíno em suas palavras
– Tudo bem... O que houve? Desistiram de me dar a última chance? – Brinquei.
– O que? Não! – Ele riu. – Na verdade eu queria te convidar para ficar conosco.
– Como assim?
– Às vezes eu odeio isso. – Apontou para a própria cabeça. – Mas sei que você não tem para onde ir e aqui temos diversos quartos. Você não precisaria caçar sozinha, se expondo por aí e chamando atenção...
– Ivar, não leve a mal... Eu agradeço o convite, de verdade. – E eu não estava mentindo. Adoraria ter um lugar para ficar. Desde que minha mãe foi assassinada e eu perdi a casa, tudo tem sido extremamente difícil. – Mas não tem como ficar no mesmo lugar que o Bjørn. O cara me odeia!
– Pare de colocar palavras na minha boca. – Disse Bjørn, enquanto passava pelo cômodo.
– Acho que isso responde algo, não? – Ivar disse, rindo. – Aqui é enorme. Dificilmente vocês vão se encontrar.
– Eu posso pensar?
– Que tal assim: você fica uns dias aqui e, caso não se adapte, pode ir para onde quiser. – Ivar e Emery pareciam compartilhar da mesma personalidade, embora dividissem apenas o mesmo pai.
– Mas eu sequer tenho roupas aqui! – Relutei.
– Emery concordou em te levar para comprar o que for necessário. Ele é bom nisso. – Deu uma piscadela.
Diferente dos gêmeos, Emery era o único com uma aparência que não levantaria suspeitas caso decidisse deixar o covil. Mas estava óbvio que se tratava de uma brincadeira de Ivar, já que fazia décadas que nenhum dos três deixava sua morada, ainda mais por um motivo tão irrelevante quanto comprar roupas comigo, como se fôssemos adolescentes.
– Aprecio a brincadeira, mas se este for o caso, eu dou meu jeito ainda esta noite. – O tranquilizei.
– Eu sei que vai. – Sorriu. – Venha, deixe-me apresentar seus aposentos..
O caminho até o quarto parecia uma tour por um castelo, embora não fosse um. A casa ficava localizada longe o suficiente da cidade mais próxima, permitindo que a arquitetura abraçasse os gostos de todos os proprietários. Acredito que a maior parte dos elementos arquitetônicos, que se assemelham aos tempos antigos, sejam ideia dos gêmeos, que costumavam viver em um castelo na Itália. Esse castelo ainda existe, mas é usado apenas para ocasiões especiais, e acredito que meu julgamento não foi especial o suficiente, então podemos dizer que aqui seria o que se pode chamar de casa de veraneio para eles.
Ivar parou em frente a uma porta branca com detalhes em roxo. Ao abrir, pude notar que o quarto era enorme, maior do que qualquer cômodo da minha antiga casa, talvez até maior do que boa parte da minha antiga casa junta. Embora todo o resto da mansão tivesse uma decoração que remetia a castelos vitorianos, o quarto não tinha semelhança alguma. Era extremamente moderno, com paredes brancas e móveis minimalistas. Um sistema de som novinho estava instalado, ao lado de uma estante repleta de livros e CDs. No centro do quarto, uma cama king size com lençóis de seda cinza parecia extremamente confortável, apesar de inútil, já que vampiros não dormem.
A janela, grande e panorâmica, oferecia uma vista deslumbrante da floresta que cercava a mansão. Havia também uma escrivaninha elegante com uma cadeira ergonômica, ideal para trabalhar ou estudar. No canto, um closet espaçoso, com portas espelhadas, prometia acomodar todas as minhas roupas e mais. O quarto também tinha um banheiro privativo, equipado com uma banheira e um chuveiro, tudo em mármore branco e detalhes prateados.
– Bem-vinda ao seu novo quarto – disse Ivar, sorrindo. – Espero que goste. Se precisar de qualquer coisa, não hesite em pedir.
O ambiente era tão convidativo que, por um momento, me senti em casa. Era um contraste gritante com a minha situação atual, mas talvez fosse exatamente do que eu precisava.
– Eu falei ao Emery que não precisaria da cama, mas- – Ele interrompeu a sua fala, percebendo que havia deixado escapar coisas demais.
– Vocês já sabiam. – Conclui.
– Não é bem assim, Mia... Você sabe como as visões não são extremamente precisas e podem mudar a qualquer momento – gesticulava com as mãos, tentando se explicar. – Emery viu o quarto exatamente do jeito que está agora, viu que eu tive a ideia de te convidar, mas nunca chegou à parte em que você aceita ou não... Essa parte cabe a você.
– Ivar... Por que você está fazendo isso por mim? – Questionei de maneira melancólica. Ninguém sequer pensava em mim de outra maneira que não fosse como uma delinquente.
Antes de responder, ele fechou os olhos, parecendo se concentrar em algo, e logo concluiu:
– Não é nada... – À medida que falava, caminhava até uma escrivaninha que tinha um caderno e algumas canetas. – Eu só quero te ajudar.
– Eu entendo, mas você não precis... – Antes que eu pudesse terminar, ele me estendeu um papel.
"Bjørn, Emery e eu tínhamos uma irmã. Ela foi assassinada há algumas semanas. Ainda não encontramos o bastardo. Nada será o mesmo sem ela."
Desliguei meus pensamentos. Eu entendia.
– Você bem que poderia prender o cabelo e ir até a Macy's comigo. – Disse, o surpreendendo e o fazendo sorrir aliviado.
– É uma proposta tentadora, mas terei que recusar. Tem algumas roupas do seu tamanho no guarda-roupa, creio que façam seu estilo, pedimos para a governanta comprar algumas coisinhas para que você tivesse o que vestir durante o jantar.
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Um dos meus requisitos para continuar morando com eles foi que eu pudesse frequentar o ensino médio da Escola de Montrewood, onde eu fingiria ter 17 anos e estar no primeiro ano. Seria uma maneira de manter a mente ocupada. Durante o jantar, prometi que essa seria a última vez que faria isso e que, quando tudo acabasse, os seguiria fielmente para onde quer que fossem. Não sei onde arrumaram o carro para mim, mas aquele Toyota Camry me serviria bem durante os próximos anos. Tentei me manter na velocidade permitida na estrada, mas às vezes não pude deixar de testar os limites daquela belezinha e ver até onde meus reflexos me levariam. Obviamente, não demorei muito para chegar ao meu destino e olhares foram dirigidos ao novo Camry no estacionamento da escola, onde os melhores carros eram modelos do ano.
Por alguns minutos, esqueci que Emery estava no meu encalço. Ele havia aparecido para tornar convincente a minha mentira e se tornar meu guardião. Dos três, o que mais se assemelhava a mim fisicamente era Emery, com seu tom de pele escuro, a cor dos olhos e algumas feições. Ele veio até aqui hoje para dizer que era um irmão da minha falecida mãe e que estava com a minha guarda. Com a beleza dele, não demorou muito para que alguns papéis estivessem assinados e eu estivesse liberada para frequentar as aulas.
– M-Mia, correto? – gaguejou a recepcionista.
Pude me virar para Emery a tempo de vê-lo dando uma piscadela, que com toda certeza a recepcionista achou ser para ela.
– Se comporte! – disse Emery antes de partir, o que me fez revirar os olhos.
– O seu tio é tão... – deixou escapar. – A-aqui está o mapa da escola e o seu horário!
– Muito obrigada, senhorita... – parei, em busca de alguma identificação. – Clarke!
– Pode me chamar de Elizabeth, querida.
– Ah, meus pais e meu tio me ensinaram que devo me ater aos bons modos e respeito e acabo preferindo assim, então desculpe. – Embora eu tivesse cerca de 170 anos, enquanto ela devia estar próxima dos seus 45, talvez? – Mais uma vez, desculpe se fui rude, senhorita Clarke.
– Oh, querida! Não há problemas – disse com um rubor em sua face. – Acho melhor que você vá indo, não quer se atrasar no seu primeiro dia, não é mesmo?
– Não mesmo! – concordei. Eu já estava fazendo um papel e tanto sendo a novata. – Obrigada por tudo.
Não era como se fosse meu primeiro dia de aula de fato. Mas seria o meu primeiro dia de aula depois de tudo aquilo, e acredito que faria diferença. Lembro-me bem dos velhos tempos, pequenos grupos de amigos, idas ao shopping, passeios divertidos... obviamente, nada que me expusesse ao sol e nem nada que os colocasse em perigo. Estou nessa jornada há tempo suficiente para entender e dominar o autocontrole. Quando se tem cerca de 170 anos e já viveu de tudo, a sua sede não desaparece. Humanos continuam parecendo refeições apetitosas, mas você pode deixá-las para outra hora.
Enquanto lia no papel a primeira aula do dia, não pude deixar de achar graça.
" História "
Meu único receio era estar retratada em alguma imagem em um dos livros, pois sei que meu pai com toda certeza estaria, e só de pensar nessa possibilidade franzi o cenho.
Ao passar pela porta, me deparei com um senhor de estatura média, cabelos grisalhos e óculos tão fundos quanto suas olheiras. Este deveria ser o senhor Anderson. Assim que me viu parada na soleira da porta, ele me dirigiu um sorriso simpático e me convidou a entrar.
– Venha, junte-se a nós! – Disse o senhor simpático. – Por que não se apresenta para a classe?
– Me chamo Mia Zimmerman, mudei-me recentemente para a cidade e espero conhecer um pouco mais sobre vocês, se me permitirem. – Recebi alguns olhares curiosos com minha apresentação. Talvez não estivessem à espera de alguém com tanta autoconfiança, mas não há muito o que possa ser feito.
– Perfeito, senhorita Zimmerman! Temos algumas cadeiras vagas onde você pode se sentar. Sinta-se à vontade! Qualquer dúvida, temos ali o representante da classe... – À medida que ele apontou para um garoto que se destacava dos demais, sua voz não se fazia mais necessária aos meus ouvidos. Havia algo diferente. Esperei que a boca do Sr. Anderson parasse de se mover para que eu pudesse me mover até o local escolhido por mim: a última cadeira ao lado esquerdo da sala, direção completamente oposta ao até então representante da classe.
O resto da aula correu bem. Estavam abordando a Primeira Guerra Mundial. Eu estive lá; foram tempos sombrios para os humanos. Trabalhei como enfermeira ao lado de meus pais, em uma desculpa esdrúxula para nos alimentarmos dos doentes para os quais não havia mais chances. Não eram os mais apetitosos, mas era o que tínhamos na época.
Após o fim do primeiro período, conheci algumas pessoas que vieram falar comigo, querendo saber tudo sobre mim, e acabei perdendo o garoto de vista. Eram tantos nomes e personalidades, mas à medida que os horários passavam, acabei com um pequeno grupo de pessoas durante o horário de almoço: Joanna, que todos chamavam de Jojo, Skyler, Caleb e Zack.
– Mas diz aí, como era morar em Salem, a cidade das bruxas? – Perguntou Zack entusiasmado.
– Para a minha decepção, nunca participei de uma caça às bruxas. – Menti. Eu era jovem, mas às vezes alguns vampiros decidiam se meter onde não deviam.
– Nenhuma daquelas mulheres merecia ser caçada! – Protestou Skyler. Pelo pouco que pude perceber, Skyler tinha um ar ativista, mas que lutava por causas que ninguém ligava. Como agora, se ela soubesse de um terço do que estava falando, ficaria calada.
Tudo que se sabe sobre caça às bruxas atualmente foi um trabalho de grandes historiadores vampíricos que trabalharam durante anos para mudar os fatos, fazendo com que os humanos se transformassem nos vilões. Movimento de perseguição religiosa? Perseguição política e social? Experimente um novo olhar, onde bruxas dizimaram milhares de vampiros ao bel-prazer, se aproximando de acabar com uma raça por pura diversão, apenas para provar que possuíam o poder para tal. Emery, Bjørn e Ivar precisaram deixar seus aposentos para cuidar da situação pessoalmente. Emery perdeu o controle e dizimou mais da metade das bruxas, enquanto os gêmeos cuidaram do resto e ordenaram que os vivos continuassem com o trabalho.
Queimem as bruxas.
Esta foi a ordem.
– Mia? – Ouvi Caleb me chamar.
– Ah, oi! Acabei me distraindo
– Isso, seu olhar estava bem distante...
– Perdão.
E assim retomamos a conversa sobre diversas coisas até o final do intervalo. Às vezes, fico impressionada com a futilidade e fragilidade humana. As conversas que tivemos foram de celebridades a pessoas bonitas de nossas turmas em um piscar de olhos. Às vezes comentavam sobre carros, assunto no qual eu tinha certo interesse, assim como Caleb, mas não os demais, então logo o assunto retornava para algo supérfluo e adolescente. Eu havia tido a ideia e creio que seja minha obrigação mantê-la até o final. Meus pensamentos foram bagunçados novamente quando o garoto da aula de história passou por mim. Tudo nele era estranho, desde sua cor de pele até seu cheiro. Não era como os demais, não possuía cheiro de sangue fresco, era como se eu não pudesse sentir... Mas não de maneira que desconfiasse que ele fosse um vampiro assim como eu, talvez fosse protegido por algo, mas eu não ouvia falar sobre isso em anos.
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Ao retirar a chave da ignição, pude sentir o alívio em meus pulmões. Tanto sangue fresco... Mas eu precisava lembrar por qual motivo eu estava ali. Morando aqui, eu teria todo o sangue que quisesse. Ao entrar na casa, foi como Ivar me disse, a casa era grande demais para que houvesse encontros desavisados. Fui direto para o meu quarto para que pudesse tomar um banho e me livrar do cheiro de todos aqueles adolescentes. Para minha surpresa, acabei fazendo alguns amigos logo no primeiro dia, e isso me deixou feliz, fazia com que eu me sentisse... normal? Tirando o fato de que a qualquer momento eu poderia perder o controle e dilacerar o pescoço de algum deles, mas, no geral, eles eram muito legais. Quase sentia vontade de contar a eles como foi o meu dia durante o jantar, mas logo retomei minha consciência e lembrei que nosso jantar não é como o de famílias tradicionais. De alguma forma, eu precisaria comentar sobre o garoto esquisito.
Subindo as escadas, fui amadurecendo a ideia e pensando em como abordaria o assunto, ao menos para Ivar. Ao entrar no quarto, distraí-me com a paisagem através da janela. Estava como todos os dias, nuvens carregadas, que nunca chegam a chover de fato, apenas estão ali, te fazendo acreditar que algo está prestes a acontecer e... nada. Por isso, tanto meus pais quanto os d'Alighieri optaram por morar em Montrewood, Pensilvânia, também conhecida como a cidade que nunca faz sol.
Estava imersa em pensamentos quando Ivar deu duas batidinhas na porta do quarto.
– Como foi o seu primeiro dia? – Questionou Ivar, genuinamente entusiasmado.
– Melhor do que eu esperava.
– Algo que valha a pena mencionar?
– Poderia sair da minha cabeça nem que seja um segundo?
– Mil perdões. – Desculpou-se.
– Creio que esteja ciente sobre o garoto que encontrei hoje... – Comecei meu relato com um pouco de receio, observando a expressão de Ivar, que se mantinha atenta.
– Prossiga... – Encorajou ele, cruzando os braços e inclinando-se ligeiramente para frente.
– Há algo nele que me chama a atenção. Ele não é como os outros. Existe algo nele que... – Esse era o problema, apenas em falar nele me perdia em palavras, sequer conseguia falar sobre. – E ele não possui cheiro de sangue como os outros!
– Hm, prossiga. – Sua expressão era pensativa, mas com um fundo de preocupação, seus olhos escuros refletiam o brilho dos pensamentos que passavam por sua mente.
– Parecia que algo o protegia, era como se ele não estivesse ali. Mas eu estava o vendo! Bem na minha frente! – Minha indignação e relato pareciam incomodar Ivar e isso era um sinal de que essa era a primeira vez que ele ouvia o que eu tinha a dizer, cumprindo a promessa de ficar fora de meus pensamentos.
– Você se incomoda de jantar sozinha esta noite? Precisarei discutir algo com os demais. – Ivar desviou o olhar por um momento, como se ponderasse sobre algo, antes de retornar sua atenção para mim.
– Não tem problemas, Ivar. – Concordei, percebendo a seriedade em sua expressão. – Ah, irei até a cidade mais tarde para comprar algumas roupas.
Ele concordou silenciosamente e, em passos graciosos, deixou o cômodo. Aproveitei que ainda tinha algumas horas e deitei-me na enorme e desnecessária cama que havia para decorar o quarto, deixando-me levar em pensamentos. Haviam alguns detalhes e pôsteres no teto, assim como o quarto de uma adolescente de 16 anos deveria ser. Dezesseis anos, a idade em que tudo parou para mim. Muitos acreditam que eu nasci dessa maneira, mas não. Minha mãe era uma humana, a mais bonita e gentil de todo o universo e seu maior erro foi se apaixonar por um vampiro, o meu pai. Enquanto o meu pai planejava um ataque à vila em que minha mãe residia, ela era a única acordada e seus olhos se encontraram, fazendo com que se apaixonassem instantaneamente, tolice, não? Poucos anos depois, mesmo contra tudo e todos, acabaram tendo um bebê, o qual criaram fugindo de outros vampiros, pois estariam cometendo um crime. Ele ao se apaixonar por uma humana e expor os segredos e ela por dar à luz a uma aberração, a única na história a ser um híbrido. Meu pai fez um acordo com os d'Alighieri, no qual prometeu a sua própria vida e em troca me transformaria em um vampiro completo aos 16 anos e faria o mesmo com a minha mãe, que estava decidida a passar o resto da vida ao seu lado. E assim foi feito, em meados de 1850, Lawrence Zimmerman transformou sua esposa e filha. Passei anos tendo pesadelos com a dor que senti, não somente a física. No fim, a sede de uma recém-convertida me levou a um massacre na pequena vila em que morávamos, matando familiares e amigos de longa data e pela primeira vez na vida, vi meu pai orgulhoso de mim. Nunca tivemos o melhor dos relacionamentos, ao que parecia eu roubava a chance dele viver o que queria com a minha mãe e o prendi a um acordo que não deveria existir.
Perdi mais tempo do que gostaria deitada e talvez me atrasasse um pouco. Olhei para o relógio na cabeceira da cama: 17:24, hora do jantar. Troquei de roupa rapidamente, optando por um moletom cinza e uma calça jeans. Decidi não usar sapatos, já que de alguma maneira eu já me sentia em casa. Desci os degraus como se fosse uma criança, os pulando de dois em dois, até chegar ao térreo, onde precisaria caminhar um pouco mais para chegar ao grande salão de jantar.
Ao chegar, encontrei dois membros da governança me aguardando. Um senhor de meia-idade cumprimentou-me:
– Boa-vindas, Sra. Zimmerman.
– Podem me chamar de Mia, não tem problemas! – Respondi, tentando quebrar a formalidade.
– Jovem, 25 anos, encontrada ao fazer trilha nas imediações. – Continuou ignorando meu pedido.
– Obrigada, Sr. Enos.
Adentrei o salão e me deparei com uma jovem de olhos vendados. Seu cabelo ruivo contrastava com a pele pálida. Algumas sardas salpicavam seu rosto e seus lábios tremiam de medo. Deslizei ao seu redor, como quem a convida para uma dança, até abaixar-me ao seu lado e sussurrar:
– Não tenha medo.
Senti seu corpo relaxar, então retirei a venda de seus olhos, revelando um par de olhos verdes tão belos quanto uma floresta em primavera. Deixei meus dedos deslizarem sobre sua bochecha, capturando uma de suas lágrimas e a experimentei. Lágrimas de terror são sempre doces.
– Sabe... Não precisa ter medo... – Encorajei-a, aguardando que ela me fornecesse seu nome.
– O-Olivia. – Gaguejou.
Parei diante dela, respirando fundo para captar o cheiro do seu sangue, enquanto começava a confortá-la.
– Ouça-me com atenção, Olivia. Você não está aqui. – Sorri para ela, que timidamente retribuiu o gesto. – Lembra daquela montanha que estava escalando? Você conseguiu! E agora é hora de voltar para casa, não se lembra? Está a caminho de casa. Tudo ao seu redor está te levando de volta.
– Eu estou indo para casa! – Exclamou, animada.
– Sim! E não vai doer nadinha. Feche os olhos e logo você estará lá.
E foi no momento em que ela fechou os olhos que avancei em seu pescoço pálido. Não houve gritos, como eu imaginei. Foi pacífico, apesar de seus movimentos de dor. Seu cérebro a impedia de reagir de outra forma, eu o havia condicionado a isso.
Estava tão inebriada em meu banquete que sequer senti Bjørn se aproximar quando finalizei.
– Sabe, há uma coisa impressionante em você. Apesar de tudo. - Ele falou, sua voz penetrando no silêncio do salão.
– O que quer dizer? - Perguntei, virando-me para encará-lo.
– Agora eu entendo os motivos de seu pai para te manter por perto. - Ele continuou, circulando ao meu redor como um predador examinando sua presa. – Essa sua habilidade de manipulação, é bastante útil. Nunca a havia visto de perto.
– Eu não costumo usá-la com frequência. A garota não merecia sofrer. - Respondi, desviando o olhar para o corpo sem vida da garota enquanto minha mente ainda se recuperava do frenesi alimentar.
– E ainda assim... - Ele apontou para o corpo com um sorriso sádico enquanto emitia uma risada baixa. – É claro que a habilidade ainda precisa ser refinada para que seja perfeita, mas é magnífica.
– Acredito que não tenha entendido. - Respirei fundo, tentando transmitir seriedade. – Eu não pretendo usar minha habilidade desse jeito.
– Não enquanto não for necessário. - Ele disse, antes de se retirar do salão com a mesma sagacidade com que havia entrado, deixando-me sozinha para refletir sobre suas palavras.
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