A paisagem que, aos poucos, enchia-se de casas e carros passava rapidamente pela sua janela. Com a cabeça encostada no vidro cujo Insulfilm roxo já formava bolhas, Donghyuck cantarolava baixinho She’s out of my life do Michael Jackson. O CD fora colocado por ele mesmo, antes de todos entrarem no carrinho cor de musgo.
— Já chegamos? — perguntou sua irmã mais nova pela enésima vez. Sua mãe, que se virou no banco do carona, sorriu a ela, surpreendendo com sua resposta:
— Sim.
— Sério? — o garotinho próximo à outra janela do carro indagou, parecendo despertar de um prévio sono leve.
— Estou só procurando a rua! — anunciou o pai, que, de fato, semicerrava os olhos, procurando pela placa com o nome da rua. — E torcendo para não me perder... — murmurou a última parte, levando Donghyuck e a esposa a darem risada. Os dois mais novos estavam ocupados demais tentando compartilhar a janela para verem a nova vizinhança para escutarem o pai.
— Olha, tem um MC Donald’s ali — Donghyuck comentou, girando a manivela para apontar propriamente aos dois irmãos, que sorriram. Olharam os três para a mãe, todos com um sorriso cúmplice. Seus rostos eram claros sobre o desejo de ir à lanchonete.
— Podemos ir com uma condição — ela falava, fazendo o número 1 com a mão pequena. — Vocês todos vão ter que ajudar com as caixas!
— Tudo bem! — responderam em uníssono.
Donghyuck voltou a olhar pela janela, agora sentindo o vento batendo em seu rosto. Gostava da ideia de mudar, seria bom para ele. Com seus 16 anos, tudo o que mais queria era encontrar um rumo e, num lugar novo, com pessoas novas, talvez fosse a hora ideal para fazê-lo. Sorriu ao ver um fliperama passar por seus olhos. Vou ter que convencer a mamãe a levar a gente lá também..., pensou.
Foi cansativo, e ainda não tinham terminado. A sala de estar estava com caixas de papelão para todo lado. Tinham de tomar cuidado para não caírem. Hayoung e Jeongin corriam por aí, procurando seus brinquedos favoritos entre as dezenas, enquanto Donghyuck caçava pela caixa marcada como sua.
Entre elas, encontrou-a, finalmente. Tralhas do Donghyuck (sua mãe escrevera) escrito à tinta preta no papel marrom. Ele a pegou e subiu as escadas, tomando cuidado para não tropeçar nos degraus ainda desconhecidos.
Conseguiu ter uma boa noção de como ficaria seu quarto. Antigamente, dividia o quarto com os dois mais novos, que compartilhavam um beliche, mas seus pais reconheceram que estava um pouco ruim a situação para eles, deixando Donghyuck ficar com o porão. Foi legal, a princípio, até ele começar a ouvir barulhos estranhos e resolver voltar a dormir com os irmãos — a desculpa era que não queria deixá-los sozinhos, com a chance de morrerem de saudades suas. E, enfim, se mudaram. Com o dinheiro extra que a senhora Lee conseguiu com a venda de algumas obras suas para um museu um tanto popular, compraram uma casa, dando um quarto para cada um. Hayoung queria um quarto amarelo, Jeongin, um azul e Donghyuck, num tom de cinza claro, misturado com preto e branco. Donghyuck gostava de cores neutras.
Olhou em volta, conseguindo imaginar os pôsteres que colocaria do Michael Jackson e do Homem-Aranha, além das estantes, onde deixaria seus livros e HQs, assim como alguns bonecos de ação. Sorriu consigo mesmo e deixou a caixa sobre a escrivaninha previamente colocada. Abriu-a, vendo algumas de suas coisas favoritas — já listadas anteriormente — e novamente olhou para o quarto. Já tinham pintado há algumas semanas — faziam visitas periódicas para manter a casa em ordem e adiantar alguns trabalhos mais demorados, como esse, apenas à espera do final de semana ideal para a mudança definitiva — e a cor o agradara bastante. Sua mãe, então, bateu na porta e entrou no quarto vazio.
— O que achou? — perguntou, sorrindo. Ele a olhou.
— Impossível eu gostar mais — falou, sinceramente. — Sério, olha isso! É um quarto só para mim, e do jeitinho que eu sempre quis. — Ela alargou o sorriso.
— E o que diz sobre um MC Donald’s de almoço? — indagou, arqueando a sobrancelha esquerda. Donghyuck sorriu de lado.
— Preciso responder?
— Vem logo, bobão — ela chamou, abrindo o braço, este que enlaçou a cintura do filho ao que este se aproximou.
Enquanto esperavam pelo lanche, Hayoung e Jeongin discutiam se, de fato, o Tiranossauro era o rei dos dinossauros — era um assunto em comum. Ambos acreditavam que não, aliás. Donghyuck conversava com seu pai sobre a mudança — na verdade, ele apenas reclamava para o mais velho sobre ter de ir a uma escola nova em alguns dias —, e a senhora Lee dava uma olhada em volta.
Ela registrou mentalmente onde ficavam os banheiros e fuçou também os brinquedinhos do mês: Pokémon lendários. Quando foi olhar para a janela, algo na parede chamou a sua atenção. Era um panfleto. Tinha cores não tão chamativas, mas que, em contraste com a quantidade de preto que havia ali, conseguiam ser bem atraentes. Era um misto de roxo com amarelo e, sei lá, era bonito. Kanghee aproximou-se do papel e deu uma lida.
— Donghyuck, querido, venha cá — chamou pelo filho, ainda olhando para a parede.
— O que foi? — perguntou, logo olhando para onde a cabeça da outra estava apontada.
— “Procura-se vocalista. Apareça no endereço abaixo no final de semana (ambos os dias) por volta das 17 horas para uma breve audição” — o pai de Donghyuck leu em voz alta. Kanghee olhou para o filho, que parecia um pouco confuso.
— É uma banda isso? — perguntou. — Não parece nada profissional.
— Você gosta de cantar, Donghyuck! — Ao que falou aquilo, o mais novo piscou lentamente e negou com a cabeça na velocidade da luz.
— Eu não vou nisso aí, mãe, nem ferrando! — disse.
— Imagina o Hyuck-hyung cantando num show de rock! — Jeongin comentou com Hayoung, que deu risada com gosto. Donghyuck bufou e apertou a orelha do garoto.
— O Hyuck-hyung não vai cantar nada! — falou
— Ora, por que não, querido? — sua mãe perguntou e ele a encarou como se questionasse se aquela pergunta era realmente séria.
— Porque não! Não gosto de cantar em público!
— Vocês são meio ingênuos, né? — Sangwoo, relendo o panfleto, intercalou o olhar entre a esposa e o filho. — Isso aí deve ser uma banda de garagem. Toca nos bailes escolares no máximo.
— Não quero nem saber. — Donghyuck cruzou os braços.
— Eu ainda acho que você deveria participar — Kanghee disse.
— Eu também! — Jeongin acrescentou, levando Donghyuck a encará-lo descrente. — O quê? É engraçado quando você canta Billie Jean no chuveiro, hyung! — Sorriu ao irmão, mostrando o aparelho.
— É verdade, oppa! — Hayoung concordou, também sorrindo.
— Pense com carinho, Hyuck. — Kanghee colocou a mão sobre o ombro do filho e voltou à fila. A atendente já berrava seu nome pela terceira ou quarta vez.
Todos foram atrás da mais velha, ajudando com as três bandejas com lanches, batatas e refrigerantes. Donghyuck viu quando eles subiram as escadas, procurando por um ambiente mais calmo do que o primeiro andar. Seguiu-os, mas não sem antes dar outra olhada no panfleto preto, roxo e amarelo, bufando.
O assunto voltou à tona durante a refeição. Jeongin insistia na tecla de que seu hyung era um bom cantor, apesar de engraçado, sempre tendo o apoio de Hayoung, Kanghee incentivava o filho a ir no tal endereço e Sangwoo apenas dizia o quanto ter uma banda desse tipo era legal. Donghyuck, praticamente exausto da conversa, apenas concordou.
— Eu posso pensar — falou. Sua família comemorou em alto volume, deixando-o quase envergonhado por eles. Estaria envergonhado se não fosse escandaloso igual.
Praticamente expulso do carro da própria família após a mesma caçar o endereço citado no panfleto com cautela e parar em frente à casa, Donghyuck deixou o veículo. A pedido de Kanghee, Jeongin soltou o cinto do mais velho, abriu a porta e o empurrou para fora. Donghyuck sentiu uma vontade imensa de mostrar o dedo do meio para o Gol 1980 que estacionara um pouco mais em frente, na esquina da mesma rua. Ajeitou o cabelo e, um tanto irritado, olhou para a casa à sua frente. Era grande, um pouco maior que a sua nova, e a garagem estava aberta.
Lá tinha um carro, um pouco mais bonito que o de seus pais, mas não sabia reconhecer qual era — era horrível com esse tipo de coisa —, onde, no capô, estava sentado um garoto de cabelos pretos meio ondulados, com um violão no colo. Ele parecia afiná-lo. Do outro lado da “sala”, tinham três rapazes, dois com uma guitarra em mãos e um com o que Donghyuck julgou ser um baixo.
Donghyuck engoliu em seco e, após dar uma outra olhada no carro na esquina daquela rua, fechou as mãos em punhos, aproximando-se da garagem aberta. Coçou a ponta do nariz e tentou falar em meio ao som estrondoso das guitarras elétricas.
— O–Oi! — Ninguém ouvira. — Olá! — repetiu, e apenas o garoto com o violão no colo o ouviu. Ele levantou a cabeça, fazendo Donghyuck engolir em seco outra vez. O menino piscou algumas vezes e, sem alguma outra reação, berrou para os outros três.
— Ora, e não é que alguém veio mesmo? — aquele que tinha um guitarra vermelha em volta do pescoço comentou, rindo e mostrando suas covinhas. Donghyuck coçou a nuca.
— Nem temos certeza do porquê para ele estar aqui, Jaehyun — um de cabelo rosa disse, dando um tapinha no braço do colega. Tinha uma guitarra preta consigo.
— Quem é você, garoto? — o tal baixista perguntou, indo até Donghyuck, que já estava na porta da garagem.
— Lee Donghyuck — falou com certa timidez. — Eu vi... o panfleto no MC Donald’s — disse. O baixista riu fraco.
— É verdade, tem ketchup na sua camiseta — comentou, fazendo Donghyuck revirar os olhos, relembrando de quando Jeongin “acidentalmente” derrubou um pouco do molho em si. — E você canta, é? — Deu de ombros.
— Eu tento. — Foi sincero, fazendo os dois guitarristas, que estavam mais atrás, rirem.
— Mark — virou-se para o menino no capô, que observava a situação toda —, você toca? — Ele assentiu brevemente, pegando a guitarra do tal Jaehyun após deixar o violão onde estava e puxando um banquinho. Após dedilhar alguns acordes, virou-se para Donghyuck.
— Que música? — Ele fala como se soubesse todas as músicas do mundo, pensou Donghyuck, julgando o moreno como um convencido.
— Conhece alguma do Michael Jackson? — indagou e o outro riu, quase de deboche.
— Qualquer uma que quiser.
— Beat It, então — falou.
Foi questão de segundos para que ele se recordasse da música. Começou a tocar, logo pegando embalo e fechando os olhos conforme usava a palheta com maestria. Donghyuck, apesar de nervoso, optou por também fechar os olhos, relembrando-se da letra um tanto complicada de uma de suas músicas favoritas.
Os outros três, que assistiam ao “show”, ficaram surpresos com a voz do Lee. Não esperavam por isso. Cantou a música inteira, sem nenhum erro, e, apesar de ter de se esforçar um pouco para superar o volume da guitarra elétrica, conseguiu se sair bem.
No final dela, aplaudiram. O baixista sorria. Ele ergueu a mão e Donghyuck entendeu que era para um aperto. O Lee sorriu, satisfeito consigo mesmo.
— ‘Tá dentro, garoto — falou. — Você tem talento.
— Obrigado. — Curvou-se brevemente.
— Que educado... — Jaehyun (Donghyuck achava) debochou, também se aproximando. — Mas parabéns, cara. Sério. — Sorriu, novamente mostrando as covinhas. — Meu nome é Jaehyun. — E agora Donghyuck tinha certeza.
— Taeyong — o de fios rosas juntou-se ao trio, apresentando-se.
— E eu sou o Johnny. — O baixista sorriu. Donghyuck olhou novamente para eles, pareciam mais velhos. — Aquele é o Mark. — Apontou para o garoto, que dedilhava uma música aleatória no mesmo banquinho de madeira. — Ele não fala muito, já deve ter percebido.
— Oi — Mark falou brevemente, olhando para Donghyuck, que acenou fracamente, sem nem erguer o braço.
— Oi.
Quando entrou no carro novamente, Donghyuck colocou o cinto de segurança e respirou fundo. Todos olhavam-no com certa expectativa.
— Não acredito que vocês me largaram na rua — disse. Kanghee e Sangwoo sorriram.
— Mas deu certo, oppa? — Hayoung perguntou e Donghyuck olhou para a pequena. Sorriu de lado e, por mais que quisesse fazer um teatrinho, não conseguiu.
— Eu passei! — falou, não sabendo de onde toda a animação veio. — Tinham quatro lá, eles foram legais comigo, são mais velhos, acho que uns 3 ou 4 anos, sei lá. Tocam de tudo, senti até vergonha de só saber o básico do piano. — Riu anasalado. — Eu cantei Beat It, né? E eles aceitaram na hora!
— É porque você é talentoso, burro — Jeongin disse, levando um apertão de orelha de Donghyuck.
— Respeita seu irmão, moleque.
— Eu literalmente te chamei de talentoso!
— E de burro!
— E vai negar? — o garoto de 12 anos perguntou, fazendo Sangwoo dar risada.
— Sem briga, meninos — disse Kanghee, procurando apaziguar a situação. — Fico feliz, Hyuck! De verdade. Espero que eles sejam legais mesmo.
— Filho, nada de fumar. E nem beber. Nem pense que só porque faz parte de uma banda pode fazer essas coisas. — Sangwoo falou, olhando para o mais velho pelo retrovisor. Donghyuck assentiu.
— Entendido.
— Vão se encontrar de novo? — Kanghee perguntou. — Como vai ser?
— Todos os sábados, terças e quintas, lá na garagem — disse. — Depois da aula. Tudo bem, né?
— Claro, querido. — Kanghee sorriu, voltando a virar-se para frente.
— E querem reencontrar amanhã também — murmurou.
— Então espero que tenha prestado atenção no caminho — Sangwoo disse num tom de brincadeira, apesar de Donghyuck notar a seriedade —, pois vai a pé.
— Está de brincadeira, né? — Donghyuck perguntou. O pai não respondeu até que ele estacionasse. Ao desligar o carro e tirar a chave do contato, virou-se para o filho mais velho.
— Vou te levar só amanhã. Depois, você que se vire. — Arrancou um sorriso de Donghyuck, que logo desceu do carro, sendo seguido por Hayoung, que se sentava no meio.
Apesar de não ter sido ideia sua, Donghyuck sentia-se feliz. Era algo diferente, participar de uma banda. Nunca sequer imaginara isso — é claro que já sonhou em dar um show como o seu ídolo para milhares de pessoas, mas nunca passou disso —, e era quase surreal. Sabia que não era algo grande; como seu pai dissera, era apenas uma banda de garagem, mas não deixava de se sentir feliz.
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