DEIXEI A ÁGUA QUENTE CAIR SOBRE O CORPO com a esperança de que aquele dia também seguisse ralo abaixo. Continuava pensando nas palavras do tratador de cavalos, com mais raiva do que ele dissera do que de qualquer outra coisa.
Eu me abrira com Any. Eu sabia pelo que estava lutando. Me sequei devagar, esperando que a rotina de me vestir colocasse a mente no lugar. O uniforme engomado cobriu minha pele e trouxe consigo uma sensação de propósito e força. Eu tinha trabalho a fazer. Cada coisa viria em seu tempo e, no final do dia, lá estaria Elly.
Tentei permanecer concentrado enquanto caminhava até o gabinete do rei no terceiro andar. Quando bati à porta, foi Wang quem abriu. Nos cumprimentamos com um aceno e entrei na sala. Nem sempre me sentia intimidado pelo rei, mas entre aquelas paredes, podia testemunhá-lo mudando milhares de vidas num estalar de dedos.
— E proibiremos as câmeras no palácio até segunda ordem — o rei Ron declarou, enquanto um conselheiro tomava notas freneticamente. — Tenho certeza de que as meninas aprenderam uma lição hoje, mas diga a Yonta para trabalhar seu decoro — prosseguiu, sacudindo a cabeça. — Sou incapaz de imaginar o que possuiu aquela garota para que fizesse uma coisa tão idiota. Ela era a favorita.
Talvez a sua favorita, pensei ao cruzar o cômodo. A mesa do rei era ampla e escura, e me aproximei discretamente para apanhar o cesto com as correspondências a serem enviadas.
— Além disso, não tirem o olho da menina que correu.
Apurei os ouvidos. Comecei a caminhar mais devagar. O conselheiro balançou a cabeça.
— Ninguém sequer a notou, Majestade. Garotas são criaturas muito temperamentais. Caso alguém venha a perguntar, podemos simplesmente culpar suas emoções instáveis.
O rei fez uma pausa e recostou-se na cadeira.
— Talvez. Até Ursula tem seus momentos. Ainda assim, nunca gostei da Cinco. Ela era uma das descartáveis, nem deveria ter chegado tão longe.
O conselheiro concordou, pensativo.
— Por que o senhor simplesmente não a manda para casa? Que tal tramar um motivo para eliminá-la? Com certeza podemos fazer isso.
— Josh descobriria. Ele vigia essas garotas como um falcão. Mas não importa — disse o rei, voltando a se debruçar sobre a mesa. — Ela claramente não é qualificada, e cedo ou tarde isso virá à tona. Seremos agressivos se necessário. Mudando de assunto, onde está aquela carta dos italianos?
Recolhi a correspondência e fiz uma breve reverência (que passou despercebida) antes de me retirar. Não sabia como encarar a situação. Queria Any o mais longe possível do alcance de Josh. Mas a forma como o rei Ron falara da Seleção me fez pensar que havia algo mais naquela história, talvez algo obscuro. Será que Any poderia ser vítima de um dos caprichos dele? E, se ela era uma das “descartáveis”, estaria lá de propósito? Trazida com o objetivo de logo ser dispensada? Se sim, será que havia uma garota trazida especialmente para ser escolhida? Ela ainda estava no palácio?
Ao menos já tinha em que pensar quando fosse montar guarda diante da porta de Any a noite inteira.
Enquanto caminhava, corria os olhos pela correspondência e lia os endereços. Na pequena sala de correio, três homens de mais idade separavam as cartas recebidas das enviadas. Havia uma cesta com o rótulo “SELECIONADAS” que transbordava com cartas de admiradores. Não sabia ao certo quantas delas as garotas tinham chegado a receber.
— E aí, Urrea? Como vai? — Krystian perguntou.
— Já estive melhor — confessei ao entregar a correspondência em suas mãos, para não arriscar que se perdesse em uma das pilhas.
— Todos já tivemos dias melhores, não é? Pelo menos os dois estão vivos.
— Você ouviu falar da garota que correu para ajudá-los? — Jacob perguntou, girando na cadeira. — Não é incrível?
Até Max se virou para nós. Ele era um cara bem quieto, perfeito para trabalhar no correio, mas também ficou curioso com o assunto.
— É, ouvi — concordei, cruzando os braços.
— O que você acha? — Krystian quis saber.
Dei de ombros. Ao que tudo indicava, a maioria considerava a atitude de Any heroica, mas eu sabia que se alguém dissesse isso diante de um devoto ardoroso do rei Ron, esse alguém poderia acabar com sérios problemas. Por ora, era melhor ficar neutro.
— Foi tudo muito louco — respondi, deixando que Krystian decidisse se eu usara “louco” no sentido bom ou ruim.
— Sem dúvida — Jacob comentou.
— Preciso fazer minha ronda — falei, encerrando a conversa. — Vejo você amanhã, Krystian — me despedi com uma leve continência.
— Cuide-se — ele respondeu, com um sorriso.
Segui até o final do corredor para pegar meu bastão no armazém, embora não visse sentido naquilo. Preferia o revólver.
Quando subi a escadaria e cheguei ao segundo andar, dei com Taylor vindo em minha direção. Assim que reconheceu meu rosto, ela mudou todo o porte. Parecia que, diferente da mãe, ela pelo menos era capaz de sentir vergonha.
Ela se aproximou com cautela e parou.
— Soldado.
— Senhorita — disse, com uma reverência.
Seu rosto estava tenso. Ela ficou parada, ponderando as palavras.
— Só queria ter certeza de que você entendeu que nossa conversa ontem foi puramente profissional.
Quase ri na cara dela. Suas mãos podiam ter ficado apenas nas minhas costas e braços, mas não havia como esconder a insinuação em seu toque. Ela também tinha levado as regras ao limite. Depois que lhe contei que tinha sido Seis antes de me tornar soldado, ela sugeriu que eu seguisse a carreira de modelo em vez da militar.
Suas palavras exatas tinham sido: “Somos iguais agora. Se isto aqui não der certo para mim, me procure quando sair”.
Taylor não era o tipo de garota que ficava esperando os outros tomarem uma atitude, então não achava que ela estivesse apegada a mim de modo algum. Também suspeitava que seus lábios estivessem especialmente soltos naquela noite pelo excesso de álcool. Mas de uma coisa eu tinha certeza absoluta: ela não amava Josh. Nem um pouco.
— Claro — respondi, cuidadoso.
— Só quis dar um conselho para sua carreira. É difícil se adaptar a um salto tão grande de casta. Desejo toda sorte a você, mas quero deixar claro que meu afeto pertence única e exclusivamente ao príncipe Josh.
Quase a questionei quanto a isso. Quase! Mas vi o desespero em seu olhar misturar-se a um medo avassalador. No fim das contas, acusá-la seria acusar a mim mesmo. Eu sabia que ela não se importava com Josh, e não tinha certeza se alguma daquelas garotas importava para ele — pelo menos como deveriam —, mas condená-la ou fazer algum tipo de joguinho não nos levaria a nada.
— E eu me dedico totalmente à proteção do príncipe. Tenha uma boa noite, senhorita.
Pude notar a dúvida pairando em seus olhos. Eu sabia que Taylor não estava completamente satisfeita com a minha resposta. Mas nada faria melhor a uma garota como ela do que um pouco de medo.
Respirei fundo e dobrei o corredor em direção ao quarto de Any. Estava morrendo de vontade de entrar. Queria abraçá-la, conversar com ela. Parei diante da porta e encostei o ouvido ali. Consegui ouvir as criadas, o que significava que ela não estava sozinha. Mas depois distingui sua respiração difícil, os soluços de seu choro cansado.
Não conseguia suportar o fato de que ela tinha passado o dia inteiro chorando.
Foi a gota d’água.
Eu tinha jurado a seus pais que ela era a preferida de Josh e que seria reconfortada. Se ela ainda estava aos prantos era porque ele não tinha feito nada por ela. Se Any não seria minha, então ele deveria tratá-la como uma princesa! Até então, Josh falhara catastroficamente.
Eu sabia — sabia — que ela deveria ser minha.
Bati na porta sem dar a mínima para as consequências. Sina a abriu e sorriu para mim, esperançosa. Isso bastou para que eu chegasse à conclusão de que podia ajudar.
— Perdão pelo incômodo, senhoritas, mas ouvi o choro do lado de fora e quis checar se estava tudo bem.
Passei por Sina delicadamente e me aproximei da cama de Any o máximo que minha ousadia permitia. Nossos olhares se encontraram. Ela parecia tão indefesa ali que precisei me controlar para não levá-la para longe daquele lugar.
— Senhorita Any, sinto muito por sua amiga. Ouvi dizer que ela era especial. Se precisar de qualquer coisa, estou aqui.
Ela ficou calada, mas notei pelo seu olhar que juntava cada pequena memória dos nossos últimos dois anos e as tecia no futuro que sempre sonháramos ter.
— Obrigada — sua voz soava tímida e esperançosa ao mesmo tempo. — Sua gentileza significa muito para mim.
Abri o mais sutil dos sorrisos, mas meu coração queria saltar para fora. Eu já tinha examinado seu rosto sob os mais variados ângulos, em milhares de momentos roubados. Pelas suas palavras, eu sabia sem dúvida alguma: ela me amava.
Muitos usuários deixam de postar por falta de comentários, estimule o trabalho deles, deixando um comentário.
Para comentar e incentivar o autor, Cadastre-se ou Acesse sua Conta.