1. Spirit Fanfics >
  2. O Herdeiro do Fogo >
  3. Quarenta e cinco

História O Herdeiro do Fogo - Quarenta e cinco


Escrita por: bleedingrainbow e grouwundzero

Notas do Autor


Como em alguns capítulos anteriores, tem alguns trechos inspirados em músicas, como Already gone, versão do Sleeping at last. Segurem firme com a gente para mais essa! Agradecemos sempre o apoio de vocês, muito obrigada mesmo! ♥

Capítulo 45 - Quarenta e cinco


[Katsuki Bakugo]

Eu não suportei mais sem me comunicar e acho que tanto Todoroki quanto Yoarashi sabiam que esse silêncio e ausência de respostas não dariam certo. Sabiam que o fato de eu ficar no escuro acabaria estourando em aspectos piores. Acho, bem em verdade, que concordavam perfeitamente que eu merecia uma resposta, ou, mais ainda, que não poderíamos saber o que estava acontecendo sem ter uma resposta de próprio punho de Kirishima.

A carta que eu mandei levou tempo para ser escrita porque recomecei infinitas vezes. Não poderia desabafar. Não poderia dizer tudo o que eu queria, porque não era discreto, e porque eu não tinha palavras para aquilo. 

Resumi-me a dizer que queria sua resposta de próprio punho e que deixasse tudo bem claro. 

A harpia branca foi, ficou talvez uma hora fora, e voltou. Com a carta intocada.

Yoarashi me confirmou que a Furacão não tinha sido interceptada forçosamente. Ela faria não sei o que se tivesse sido assim, alguma coisa que ele explicou e eu estava muito furioso para entender. Apenas entendi o que significava aquilo: Eijiro se recusou a receber a minha mensagem e deixou que a ave fosse embora, provavelmente sem ler.

Era mais uma noite que eu passaria em claro, repleto de ira. Fui para a forja marretar metais torcendo para que aquela raiva queimasse para sempre porque eu conseguia ouvir, de longe, o que gritava lá detrás dela, e era um inimigo que eu não sei como derrotar.

[Eijiro Kirishima] 

Mais um dia, mais do mesmo. Acordar. Me arrumar. Café da manhã. Reuniões. Almoço no jardim. Tarde livre. Banquete com nobre e convidados. Reuniões. A rotina tediosa da nobreza que sempre me incomodou, mas agora, assim como tudo, parecia indiferente aos meus olhos. 

Uma grande e bela ave apareceu em meu quarto. Talvez fosse um sonho, era grande demais para ser real. Branca. Era um lindo pássaro, nunca vi nada igual. Ela esperou e esperou não sei o quê e depois foi embora.

Dormir. Fim do dia. Tudo de novo. Agia de maneira inconsciente, sem pensar e sem sentir, o príncipe ideal e todos pareciam gostar disso. Hanta e Denki falavam comigo e eu os respondia sempre, mecânico, mas ainda respondia.

Mina me convidou para um passeio enquanto os “adultos”, como ela mesma disse, conversavam. Sugeri que fossemos até o estábulo e a princesa aceitou Assim que chegamos Riot pareceu tão feliz em me ver que ignorou completamente Mina. Tão linda, parecia um potrinho saracoteando em sua baia. Soprava meu rosto e relinchava como se eu não soubesse onde ela estava, já fazia um tempinho que não a via e essa reação foi capaz de aquecer meu coração por um instante. A essa altura, Riot já não precisava mais de rédeas para me seguir, então pude soltá-la logo de cara. 

— Ela é arredia, mas vai ficar tudo bem desde que não tente tocá-la — Avisei enquanto acariciava a crina dela. Mina obedeceu, ao invés de tentar acariciar Riot, grudou em meu braço como sempre fazia quando andávamos lado a lado. 

Deixei Riot correr livre no espaço demarcado para os cavalos, sabia que ela não tentaria pular nenhuma cerca ou fugir sozinha, então, pude me sentar na grama sob o sol e simplesmente assisti-la brincar. Mina falava sem parar sobre todos os assuntos que podia enfiar em uma única frase, eu estava começando a me sentir confortável pela primeira vez em dias, até que uma pontada em minha cabeça me fez voltar para o automático. Tudo porque me questionei se “Riot seria tão rápida como Katsuki disse que o Lorde era” . 

Respostas curtas para a princesa. Sorrisos falsos. Ela estava muito perto, sua mão tocava a minha, seu rosto de aproximava do meu, até que seus lábios se encontraram com os meus, não senti absolutamente nada. Acho até que me esqueci de fechar os olhos. Rápido. Acabou. 

[Katsuki Bakugo]

Não iria ficar assim. Ele iria me ouvir. Ele iria falar diretamente para mim, como um homem, se tivesse coragem, que essa era sua decisão. Se quer mesmo ser um rei, se não está sendo manipulado. E eu sei onde encontrá-lo. Ele já me disse que visita a Riot sempre, não só espera que pajens a busquem. Nem que eu esperasse o dia todo ou dia após dia sentado em um coxo e tivesse que atear fogo a um quadrado de feno para assustar os demais nobres, ele vai me ver, eu vou fazê-lo olhar nos meus olhos nem que seja para me dizer uma única frase.

E eu estava tão seguro disso até vê-lo que não soube lidar com o que significava enxergá-lo de novo, mesmo que à distância.

Ao lado de sua noiva.

Nem precisei esperar sentado por ele, o horário em que decidi ir parecia ser justamente quando os nobres estavam passeando pelos quintais e jardins, vendo os cavalos e apreciando sabe-se lá o que eles fazem em suas estupidezes. 

Vi a princesa Mina Ashido sentada ao lado dele, na grama, sob o sol tão agradável daquela maldita tarde fresca.

Não sei o que via no rosto de Eijiro, longe demais de mim, mas não parecia consternação. Parecia algo quase como calma, ao que ele olhava adiante e ela lhe falava quase ao ouvido. Sob o sol, Eijiro sempre parecia brilhar, mas agora eu não conseguia ver nada.

Se eu pudesse respirar eu gritaria, mas fiquei estático, agarrado às rédeas de meu cavalo como se temesse que o chão fosse ceder sob suas patas. Por vários minutos assisti como se visse o reflexo de minha própria execução, tentando encontrar uma saída.

Foi quando ela se aproximou dele devagar e ele não recuou. Inclinou o rosto, e eu sabia o que veria mesmo antes de ela precisar se aproximar mais. Ele também saberia, e ele deixou. 

Eles se beijaram.

A realização era uma única flecha, precisa, quase sem som. Cravava de um lado a outro em meu peito, sem soluço, sem resistência, perfurando por mim de súbito por pele, ossos e órgãos sem a menor chance de eu reagir. 

E o golpe, que foi rápido, sangraria devagar. Devagar, mas sem conter, encharcaria meu peito e eu engasgaria.

Como se eu tivesse esquecido de piscar, meus olhos começaram a queimar.

Ergui as rédeas do meu cavalo e as agitei. Puxei para a direção oposta e o acelerei ao máximo que pude. Não podia ser seguido nem por meus próprios pensamentos.

Não havia nenhum som além de meu coração se degladiando para conseguir bater de novo e de novo e eu chegava ao limite da raiva que me mantinha de pé. 

Até eu sei que a raiva uma hora passa, e foi nessa hora que eu a queimei com tudo o que tinha, ácido na minha garganta e encharcando meu peito.

Lorde parou porque eu aparentemente puxei as rédeas. Uma sombra fugidia, recortada acima de mim que constelava a grama por entre folhas.

Sob o carvalho. 

Parecia que eu corria para qualquer lugar que tivesse algo de real, mas o rapaz que eu treinei aqui, para o qual contei histórias aqui e nos braços de quem eu me entreguei aqui, parecia tão distante que eu podia ter alucinado. Era como se eu tivesse inventado aquilo tudo e todas as desculpas que já usei, e eu queria terminar de repelir toda essa mentira.

Eu pulei da sela e me abaixei ainda enquanto andava na direção da árvore. Peguei a adaga de dentro da minha bota e me projetei para frente, as mãos diretamente no tronco grosso. Lá estavam, nossas iniciais cinzeladas no tronco. 

E. K. 

Não foi um sonho, não foi uma invenção da minha mente delirante, estava ali, eu e Eijiro marcamos aquilo no final do festival. Estava ali, esse contrato maldito, essa promessa vazia, mas era promessa de quê, afinal?

Puxei minha mão para trás para tomar momento, no intuito de golpear aquelas letras.

Lembrei-me do quanto nós estávamos felizes e foi a gota d'água.

Até eu sei que a raiva uma hora passa. Uma hora acabam os gritos de guerra e só resta o silêncio de morte e os corpos caídos no campo de batalha. 

E era onde eu estava agora.

Eu cravei a adaga no tronco, um palmo acima de nossas iniciais, sem afetá-las, sem descer mais a lâmina.

Talvez fosse o que sobraria de nós nesse reino. Ou nessa vida.

Eu não podia desfazer.  Existiu. Talvez exista. Só que nem mesmo “perfeito” poderia manter esse amor vivo. Tudo o que eu chamei de plano foi uma insanidade coerente em um momento de paixão intensa e irresponsabilidade adolescente que quase termina em uma catástrofe diplomática. O que eu estava pensando? Nós sempre estivemos destinados a dizer adeus.

Minhas pernas perderam a sustentação devagar. Agarrei-me mais forte ao punho da adaga porque todo o resto do meu corpo cedia.

Ouvi a mim mesmo soluçar uma vez e era aquilo. Caí de joelhos à raiz do nosso carvalho. Eu queimei tanto, forcei tanto para dentro de mim, que a violência com que rebentaria seria uma explosão mortal. Desvanecia o último resquício de ódio forte o suficiente para eu conseguir usar para me proteger, o  combustível que eu usei demais para incendiar mentiras, paranoias, teorias, para me escudar da verdade de que tudo o que eu sentia - e céus, eu sentia tanto - apenas não era o suficiente. A verdade de que eu era ganancioso demais, sempre, eu ainda era só um guerreiro e ele um futuro rei. Minhas pernas tremiam e minha vista embaçava, inundava.

Não adiantava fechar meus olhos porque eles transbordariam de um jeito ou de outro. Eu me sentei ao pé do carvalho, abraçando minhas pernas e apoiando minha testa nos joelhos, tentando me conter o mínimo enquanto chorava como uma criança. Feio, patético e inconsolável. Não como quando minha mãe me deixou com Aizawa, mas sim como quando eu percebi que ela não iria mais voltar. Não como uma chuva plácida que apenas não aguenta mais nas nuvens, aquele choro belamente poético sobre o qual as trovas tristes cantam. Eu trovejaria em cada respiração. Não há nada de bonito nisso, nessa avalanche horrenda, no meu agonizar doentio, morram esses bardos todos. É um desespero de afogado, porque eu mal conseguia soluçar para puxar meu ar antes que meus pulmões quisessem expulsá-lo de volta. Como se esse sentimento fosse um veneno que doía tanto que meu corpo precisava expurgar para me manter vivo. 

Quanto mais alto se vai, mais brutal é a queda, e acho que eu estava voando nas estrelas. Eu estava vendo um sorriso que era apenas o sol, e um que eu assistiria se pôr. 

E ele fez a escolha dele. Não importava mais o que sentíamos. Eu devo parar de inventar desculpas infantis, desonradas e medíocres, enfrentar o peso de ter me deixado deturpar e encontrar o que ainda havia de guerreiro nesse rejeito de cavaleiro que eu sou.  Ele seguiu seu dever, eu preciso seguir o meu.

[Eijiro Kirishima]

— Eijiro… — Ela me chamou, sua outra mão em minha bochecha. Olhava para qualquer coisa, menos para ela, e não via coisa nenhuma em lugar algum.

Foi só isso, ela me beijou e não se desculpou quando se afastou. Não conversamos, Mina parecia desconfortável e inquieta, enquanto eu apenas assistia Riot correr. Finalmente beijei uma dama, mas por que não estou eufórico com isso? Não deveria estar feliz? Ou ao menos sentindo alguma coisa, nem que fosse raiva?

Ficamos por lá mais alguns minutos até Riot parar de correr e vir até mim. Ela me entendia como ninguém e sabia, sem eu ter que falar, quando precisávamos ir, seja porque estou cansado, desconfortável ou com medo de levar uma bronca. Levei-a de volta para o estábulo e a prendi em sua baia, nos despedimos e então, junto com Mina, voltei para o castelo. Dessa vez ela não estava colada em meu braço, mas sim, segurava minha mão com certa timidez. Estava com um sorrisinho bobo no rosto e as bochechas levemente coradas. O que isso deveria significar? 

Acabamos nos atrasando para o banquete à noite. Mina demorou mais do que o normal para se arrumar e eu não poderia entrar no salão desacompanhado enquanto minha noiva estava aqui. Setsuna me encarava e sorria também, sorria do mesmo jeito que Mina, o que deu nela? 

Permaneci quieto durante a maior parte do encontro. Não tinha nada para acrescentar a conversa e me reservava a responder apenas às perguntas direcionadas a mim. Sir Midoriya estava presente e ele parecia bem empenhado em me trazer para o assunto. O tema da mesa era “casamento”, aparentemente os próximos meses seriam atribulados já que teríamos três cerimônias importantes. Ambos os príncipes e o grão-mestre da cavalaria estariam se casando.

Quando Sir Midoriya falava de sua noiva, uma plebeia, eu sentia algo. Inveja, mas sentia. Não sei o porquê dessa inveja, mas ela me dava dores de cabeça. Cada vez que ele contava algo sobre como se conheceram ou se apaixonaram, sentia uma pontada. Deve ser bom poder escolher… 

O jantar terminou, e eu me apressei em me retirar. Mina me seguiu, mas foi direto para os seus aposentos. Passei por toda a rotina de me preparar para dormir, e como andava acontecendo ultimamente, Denki me enchia de perguntas e só recebia respostas monossilábicas. 

Deitei-me na cama e decidi ler um pouco, mas acabei desistindo logo no começo. Esses contos fantasiosos sobre cavaleiros e heróis estavam me causando o mesmo mal estar de ouvir Sir Midoriya falar. Acabei deixando o livro em minha mesa de cabeceira e me virei para dormir. 

Estava naquele limiar incerto entre consciência e inconsciência quando ouvi a porta do meu quarto sendo aberta. “É ele de novo” pensei, mas ele quem? Senti o colchão afundar e alguém se deitar ao meu lado. “Katsuki?” Só podia ser ele. Estava de costas para ele, queria tanto ver seu rosto que me virei. Não era o Katsuki ali…. quem é Katsuki?

Mina me abraçava e eu estava estático. Só acordei de vez quando senti a respiração dela próxima a minha e sabia o que estava por vir, ela iria tentar me beijar de novo. Segurei-a pelos ombros e a afastei de mim, imediatamente me sentando na cama. 

— Eijiro, o que foi? — Ela se sentou também. Uma de suas mãos em minhas costas e a outra em meu ombro, servindo de apoio para seu queixo. 

— Não posso. Não posso te beijar. 

— E eu posso saber o porquê? — Podia ouvir o seu sorrisinho. 

— Não somos casados. — Respondi finalmente e saí da cama. Mina deve ter ficado confusa por alguns instantes, já que só começou a me chamar de volta quando eu abri a porta. Nessa noite, pela primeira vez, dormi em um dos quartos de hóspedes.

[Katsuki Bakugo]

Em algum momento no meio daquele abismo que eu entrei, aquele soluçar de engasgado que não parece parar, olhando para apenas a sombra que meu corpo fazia agora curvado sobre minhas pernas dobradas, senti um empurrão. Forte o suficiente para me desequilibrar. Apoiei minha mão na relva ao meu lado e ouvi o resfolegar; Lorde tinha me dado uma focinhada. 

O que você quer? — Vociferei, mas ele não pareceu se incomodar. Apoiou-se nos joelhos da frente e se agachou. Limpei meu rosto na manga da bata ao que assisti meu cavalo deitar ao meu lado como um cachorro faria e me dar mais uma focinhada. Meu coração pareceu parar de se atropelar tanto e eu consegui tomar fôlego. 

— Desculpe. — Murmurei para ele e suspirei, mesmo que supusesse que ele não ia me entender. Acho que animais nos entendem muito mais do que eu posso imaginar, e de repente senti que por tempo demais eu o tratei com indiferença. Não era como se o maltratasse, nunca fui desse tipo e nunca deixei que maltratassem cavalos, mas nunca me dei conta de que, por mais sensitivos que eles fossem, eles poderiam dar a mínima para sentimentos imbecis. 

Lembrei-me das aves de Yoarashi e de Tokoyami. Lembrei-me, relutante, justamente de Yoarashi, junto, e principalmente de Todoroki. Será que Hizashi ainda estava na cidade? Não duvido que tenha tentado me procurar, mas eu estou dentro dos muros do castelo e ele não poderia entrar.

Acho que por um bom tempo eu não me dei conta de que não estou assim tão sozinho, mas talvez porque nunca senti a solidão de verdade como estou sentindo agora.

Inclinei-me para me apoiar na cabeçorra do meu cavalo e ele deixou que eu a abraçasse. Eu sabia que uma hora iria ter que segurar a cachoeira, porque ela não iria parar por conta própria. Minha cabeça já doía muito, eu sentia meus olhos inchados e o sol já estava para se pôr. Então aproveitei o fôlego que consegui tomar e o prendi. Foi mesmo como um nó na garganta, mas fiquei ali esperando aprender a lidar. 

Lorde apoiou a enorme cabeça em meu colo e eu fitei o nada até o fim do crepúsculo, só tentando reaprender a respirar do jeito certo, tentando parar de olhar para o buraco lancinante que estava aberto em meu peito agora.

— AÍ ESTÁ VOCÊ! 

Em algum momento nisso, ouvi uma voz reverberar no anoitecer e em seguida o galopar de dois cavalos, facilmente reconhecíveis. O trotar ágil do veloz e esguio cavalo manchado de Todoroki se e o trote pesado das patas peludas de Gale Force, a montaria de Yoarashi que tinha quase dois metros da pata à ponta da orelha. Ergui meus joelhos para fazer Lorde tirar aquela cabeçorra do meu colo e percebi que minhas pernas estavam até meio dormentes, mas pus-me de pé junto ao meu cavalo.

— Como você some desse jeito? Estávamos preocupados! — Yoarashi disse quando já estavam os dois sob a copa do carvalho. 

— Com a possibilidade de regicídio?

— Também, não nego. — Todoroki desceu do cavalo.

— Estamos seguros. Não vou mais interferir. — Dei as costas para os dois, olhando na direção dos riachos e dos cavalos que já se cumprimentavam resfolegando.

Assisti Lorde olhar para Shoto - o animal, mais precisamente, já que o proprietário continuava me encarando com sua expressão nula. Esclarecendo, Shoto é o nome do cavalo de Todoroki, e esse fato me entretinha por diversas vezes ao perceber que alguém descrevia um fato como “alguém vá buscar o Shoto que está pastando detrás do barracão”. A questão era que a montaria não atendia por outro chamado e sempre se aproximava quando alguém chamava o seu dono pelo primeiro nome. Acabou ficando, dono e cavalo com o mesmo nome. Só mesmo Todoroki para não se importar com algo tão ridículo. Gostaria de me entreter com isso agora, mas não consigo.

Prestei atenção em como Gale Force trotava em torno dos dois como um potrinho, acho que tinha a alma de seu dono.

— O que aconteceu?

— Aconteceu que eu não vou mais interferir. — Respondi repetindo, ainda dando as costas para os dois. — O príncipe está seguindo seu destino. 

Um silêncio se seguiu por alguns segundos. A voz de Todoroki se fez mais uma vez.

— Como você está se sentindo?

Dei uma risada, eu acho.

— Preciso mesmo dizer? Que tal “como quando aquele gigante de fogo em Hellflame derrubou a montanha, eu fui tirar aquela mulher do caminho e a pedra enorme do cajado me acertou de frente, contra meu esterno”?

Quando eu senti alguma coisa furar dentro do meu peito e em um momento eu cair de joelhos e sentir o gosto de sangue. Quando um Todoroki com metade do rosto queimado se ajoelhou ao meu lado, eu não conseguia puxar o fôlego e senti um frio tão grande que realmente achei que fosse morrer daquela forma tão estúpida.

Enfim me virei e meus olhos encontraram os de Todoroki. Yoarashi quase deu um passo para trás. Ele não conseguia disfarçar nem tentando muito o quanto ele ficou horrorizado ao ver minha expressão. Deveria mesmo estar deplorável, o resto de uma fruta passa que perdeu todo o viço. Acho que é capaz de ele começar a chorar. Idiota. Todoroki foi quem respondeu.

— Dessa vez não podemos fazer nada para ajudar, mas-

— Você também não teve como ajudar daquela vez, mas foi para o meu lado e estancou minhas feridas. De todo modo, também hoje, pegue sua comiseração e enfie no rabo. Eu vou à taverna hoje, algum dos dois quer me acompanhar?

Yoarashi deu um passo para frente e abriu os braços.

— Você não quer um abraço ao invés? 

Eu fiquei indignado com uma força que nem era capaz de processar.

— Que merda voc-

Bem, Yoarashi era hábil, mesmo para um ogro tonto. E eu não conseguia nenhum tipo de energia para reagir como devia. Minhas palavras foram abafadas contra o peitoral gigantesco dele e eu logo estava preso como se por correntes de aço envolvendo meu torso, imobilizando meus braços.

Reuni o que consegui para virar o rosto e não consegui sequer reclamar. Não tinha nem fôlego pra isso. Eu queria que me deixassem em paz, mas só forçava para soltar-me com os meus próprios membros trêmulos.

Vi Todoroki me encarar, após um lento piscar de olhos.

— Bakugo, eu me lembro bem daquela luta. Sei como se sente por ter caído por causa disso, e sei que esquece tudo o que fez até lá. Basta a menor das brisas para nos derrubar se elas vierem depois que nos mantivemos de pé durante todo o tornado. Ser capaz de guiar uma batalha como a de Hellflame à vitória é só para o maior dos comandantes. E lutar com isso que está sentindo agora… eu preferiria um golpe no peito vindo do cajado de um gigante. Não estou usando uma hipérbole. Estamos com você no que pudermos.

Senti vibrar contra meu rosto a voz potente de Yoarashi.

— Você é o nosso herói, Bakugo! Eu te admiro cada dia mais! Isso não é justo, maldição, em um mundo que pode ser tão lindo, por que as coisas têm que doer assim?!

Um som fungado se seguiu e eu ergui apenas os olhos, franzindo as sobrancelhas.

— Caralho, que merda, você tá chorand- — Suspirei, eu não acredito que esse idiota vai me fazer chorar de novo, eu não quero mais, eu não posso mais. Fechei os olhos com força porque era a única força que me restava, e parei de resistir contra as toras que ele tinha por braços. — Só… só calem a boca.

Eles calaram, para meu alívio. Também não me deixaram ir até a taverna. Assistimos os cavalos brincarem juntos um pouco, eu fiquei ali naquela posição humilhante dentro do abraço de Yoarashi até começar a sentir um pouco de energia voltar para o meu corpo, como se de algum modo aquela sensação poderosa dos braços dele me pressionando me enganasse o suficiente para dizer a algum lado tolo da minha mente que eu estava seguro, que eu tinha onde me prender. Silêncio se seguiu noite adentro e eles me deixariam na minha casa. Poderia ir até o meu quarto e, quem sabe, todas as horas que não dormi me tomariam em exaustão. Era o melhor que eu podia sonhar para agora.

[Eijiro Kirishima]

Pela manhã, acordei levemente perdido e potencialmente atrasado. Demorei alguns segundos para entender onde estava, como e porque fui parar lá. Não enrolei muito na cama, apesar de exigir uma força imensa, consegui me levantar rápido. Ao abrir a porta, notei o caos nos corredores, mas tudo ficou em silêncio quando um dos servos me viu, acho que estavam me procurando. Uma serva pediu gentilmente para que eu esperasse onde estava e então se apressou para algum lugar, pelo tempo que Denki e Hanta demoraram para vir até mim, tenho quase certeza de que foi chamá-los.

Ambos me davam bronca. Um por eu ter sumido, repetindo inúmeras vezes “tem noção de quantos cômodos esse castelo tem?”, e o outro por eu estar atrasado. Aparentemente meu pai faria alguns anúncios importantes hoje e a minha presença era imprescindível. 

Ao contrário das outras vezes, a princesa não me aguardou, ou seja, entrei sozinho no salão. Poucas pessoas a mesa, apenas as famílias reais e companhias essenciais, sem nobres ou convidados de fora. Aguardávamos a chegada de ambos os reis e da rainha, pelo que Hanta me contou enquanto me aprontava, os três passaram a manhã inteira em reunião. 

Todos conversavam. Nunca vi Tamaki tão confortável com outras pessoas, e acho que posso culpar Nejire por isso. Teria sido um momento agradável se não fosse pela mudança brusca que aconteceu assim que meu pai, o outro rei e a rainha entraram no salão. Dava para cortar a tensão com uma faca de manteiga.

A refeição foi servida e nenhuma palavra foi dita. Olhares eram trocados e eu me sentia de fora dessa conversa não verbal por não conseguir processar as intenções implícitas em cada expressão. Meu pai só se pronunciou quando a refeição acabou, toda a louça foi retirada da mesa e todos os servos, incluindo os que estavam na cozinha, foram dispensados.

— Todos devem estar curiosos para o anúncio de hoje, mas já adianto que não serei eu quem o fará. — Meu pai sorriu satisfeito e o outro rei a mesa se levantou — Por favor, faça as honras… 

— Como sabem, nosso reino é conhecido pelos seus grandes feitos em batalha e avanços bélicos que culminaram na derrota de um grande e feroz dragão. Desde então, iniciamos uma tradição, todos os anos durante quatro dias celebramos essa conquista em um festival. 

— E nós gostaríamos de tê-lo conosco esse ano, Eijiro. — Completou a rainha. — Anunciaremos oficialmente o noivado para nosso povo no último dia. 

— Se nós vamos participar no festival…. e a viagem demora sete dias…. — Mina murmurava do meu lado e fazia contas nos dedos. — Isso significa que nós vamos ter que- 

— Sim querida. — O rei a interrompeu e juro que vi os olhos dela brilharem — Para que possamos chegar a tempo, depois de muito deliberar, decidimos por adiantar a data da nossa partida. Inicialmente iríamos apenas na próxima semana, mas agora, partiremos amanhã ao anoitecer. 

— Por que ao anoitecer? — Mina questionou e foi respondida por sua mãe

— Para que possamos ter tempo o suficiente para preparar tudo o que for necessário. Nosso tempo será reduzido hoje, já que vossa majestade tem planos para a tarde. 

— Pai? — Tamaki se pronunciou e eu sabia exatamente o que ele estava pensando. Como ele poderia fazer planos quando teríamos tão pouco tempo para nos preparar. 

— Hoje durante a tarde iremos visitar o quartel. Apresentarei todos ao comandante dos cavaleiros e também para os demais escolhidos que farão parte da escolta. Anunciarei pessoalmente a mudança de planos para que não exista nenhum mal entendido ou falha de comunicação. — Meu pai explicou e também se levantou. — Isso é tudo. Tamaki, tome conta do resto. 

— Sim, pai. — Todo se levantaram em seguida e reverenciaram aos reis e a rainha enquanto saiam do salão. Tamaki parecia a ponto de explodir e ao mesmo tempo também parecia mais calmo do que nunca enquanto segurava a mão de sua noiva. 

— Mirio e Denki, preparem os cavalos. YuYu, ajude Nejire a se preparar, o dia está quente então separe roupas mais leves. Hanta, faça o mesmo com Eijiro. Quanto a vossa alteza… — Tamaki olhava com dúvida para Mina, como se a questionasse “quem vai com você?” e por isso Setsuna se pronunciou. 

— Eu me encarrego de acompanhá-la. — Todos concordaram e então se apressaram para seus aposentos. 

Hanta praticamente me arrastava pelos corredores, minha cabeça repetindo de maneira incessante a palavra “quartel” como se procurasse por algum significado oculto nela. 

Quartel…. Quartel… Cavaleiros… Sir… Sir Bakugo… Katsuki…

Não poderia me importar menos com a roupa escolhida, apenas vesti o que Hanta me entregou, e deixei que prendesse meu cabelo como achasse melhor. Minha cabeça estava em outro lugar, orbitando ao redor de um único nome, e de um rosto, que mais parecia uma pintura borrada em minhas memórias. Nítido o suficiente para que o reconhecesse e para que soubesse que era o retrato de alguém muito importante. Era como se alguém tivesse jogado água na tela, antes que a tinta pudesse secar. 

Tentava vasculhar meu consciente, ligar ele a algo. Por que estava tão ansioso? Meu coração batia rápido e parecia queimar ao mesmo tempo em que congelava. Sentia calafrios semelhantes aos causados por uma febre, mas sabia que esse não era o caso, Hanta teria sentido meu corpo quente quando, sem querer, tocou meu pescoço para abotoar a gola de minha camisa. Só de pensar em pronunciar aquele nome em voz alta e perguntar a alguém sobre ele, sentia minha garganta arranhar e se fechar.

— Alteza… Alteza… Eijiro! — Hanta me chamou, mas só atendi quando o senti segurar meu braço — Está tudo bem? Seu rosto está pálido… 

— Estou bem. Acho que ainda não me recuperei totalmente, mas estou bem.

— Tem certeza? Posso avisar os demais e… 

— Hanta, já disse que estou bem. — Dei um passo para trás, apenas para me afastar — Além do mais, não é como se eu pudesse fugir dessa vez. Preciso ao menos conhecer minha escolta.

Por que pensar em partir me fazia perder o ar? 

— Mal consegue se manter em pé, acha que consegue montar a Riot? — Ele se aproximou de mim apenas para me dar apoio. Não que eu precisasse. 

— Sabe que a Riot sempre me obedece, ela não vai sair correndo nem nada. 

— Eijiro…

— Vamos logo. Não quero me atrasar e prolongar essa visita. — Tomei a frente mas tive que esperar Hanta, talvez eu precisasse mesmo de um pouco de apoio. Dentro de mim era como se uma voz sussurrasse baixinho: “se Katsuki estivesse aqui, tudo estaria bem”, o que ainda não faz sentido.

Descemos para o hall de entrada e, como já era de se esperar, as damas ainda não estavam prontas, no entanto, estranhei não ver meu irmão. Acabamos por encontrá-lo do lado de fora, conversando com Mirio e Denki. 

— Ela está muito estranha… Deixou que eu colocasse os arreios sem sequer relinchar. — Denki falava e tinha a expressão de quem viu um fantasma. 

— É verdade, até mesmo consegui fazer carinho nela… veja. — Mirio foi até Riot e passou a mão em sua crina, ela nem se moveu. 

— Céus! Será que está doente? — Tamaki falou, segurando as rédeas da Suneater. 

— Do que estão falando? — Perguntei

— Eijiro, acho que a Riot não está se sentindo bem. — Denki me respondeu e Hanta foi comigo até ela. Pude ver todos trocando olhares e Hanta dando de ombros, poderia até ter reclamado por estarem me olhando como um inválido, mas agora precisava ver Riot. 

A aparência dela parecia boa. Inteiramente branca, sem sequer uma mancha, seja de nascença ou de sujeira. O equipamento de montaria, inteiramente de couro e tecidos tingidos em vermelho, estava perfeitamente ajustado e não deveria causar nenhum incômodo a ela. Por mais que parecesse distante, ouvia Denki ao meu lado fazer um relatório básico, disse que ela se recusou a comer… será que passei alguma coisa para ela quando a visitei no dia anterior? 

— Está tudo bem, garota? Aguenta uma caminhada rápida? — Perguntei a ela. Riot apenas passou seu nariz com cuidado em meu rosto e decidi considerar isso como um “sim” — Ela está bem. — Falei um pouco mais alto para que pudessem me ouvir, mas em momento algum me virei. Ela não estava bem. 

As damas chegaram pouco depois e por último as majestades. Pela primeira vez precisei que Riot se abaixasse para que pudesse montá-la, mas fora isso, tudo seguiu como o esperado. Eu, Tamaki, meu pai e o outro Rei éramos os únicos com experiência de montaria e, por isso, as demais precisavam que as companhias reais guiassem os cavalos. Mesmo com uma tarefa “importante” em mãos, isso não impediu que Hanta e Denki ficassem de olho em mim o tempo todo. 

Minha cabeça estava vazia, mas a quietude era desconfortável. Como a calmaria antes de uma tempestade, ou uma barragem prestes a romper. Assim que entramos na área do quartel, os meus instintos gritavam para que puxasse as rédeas da Riot e voltasse o mais rápido possível para casa… o problema é que, quando penso em casa, não imagino o palácio e sim os braços de alguém, os braços daquela pintura borrada, os braços dele. 

É só uma visita rápida, repetia para mim mesmo. Logo vai acabar, logo vai estar de volta em segurança, está tudo bem… Tentava me confortar em vão. Todos estavam compenetrados nas explicações do meu pai se gabando sobre seus soldados, e eu só podia agradecer por isso, já que, assim, ninguém tentaria falar comigo. Tinha a sensação de que se abrisse a boca, mesmo para responder um simples “sim” ou “não”, a tempestade iria começar e a barragem iria romper.

Tenha calma, Eijiro… É só uma visita rápida.



Gostou da Fanfic? Compartilhe!

Gostou? Deixe seu Comentário!

Muitos usuários deixam de postar por falta de comentários, estimule o trabalho deles, deixando um comentário.

Para comentar e incentivar o autor, Cadastre-se ou Acesse sua Conta.


Carregando...