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História O Herdeiro do Tigre - Visita ao cemitério


Escrita por: PS_Jay

Notas do Autor


Oieee, sei que demorei mais para postar esse, mas o importante é que estou aqui, não é? Então, já avisando, posso demorar para postar os demais capítulos, pois minha aula começou essa semana e tá bem puxado. Por isso, terei menos tempo para escrever, e esperou que entendam.
Bem, sem mais delongas, boa leitura ^^

Capítulo 32 - Visita ao cemitério


 

   Anik deveria ser o gato preto mais azarado do mundo. 

   Ele pensou seriamente em dar meia volta e correr para o lugar de onde vieram, mas alguma coisa lhe dizia que não adiantaria de nada. Ele poderia nem ter suado, mas Helene estava ofegante e cansada. Se um Myling apareceu ali num passe de mágica, também os seguiria para onde quer que fossem. 

   O problema maior, entretanto, era exatamente o fato do menino ter surgido à margem do rio. Somente a ideia de tentar adivinhar como ele fizera isso já deixava Anik apavorado e pronto para fugir para o lado oposto. 

   Aparentemente covarde? Sim. Mas você não poderia culpá-lo, aquele garoto era assustador.

   Qualquer impasse que ele tinha entre correr ou não correr tornou-se irrelevante, pois nos curtos momentos em que ambos ficaram parados no meio da neve, decidindo o que fazer, as outras crianças apareceram. Ele e Helene, num piscar de olhos, se viram cercados pelo menino e seus cinco asseclas do mal. 

   Seis pirralhos com menos de um e trinta de altura não deveriam ser uma ameaça. A não ser, é claro, que esses seis pirralhos fossem fantasmas malignos com sede de sangue por todo e qualquer homem-tigre que decidisse cruzar seu caminho num portal mágico feito pelo amuleto de um deus. 

   Anik sabia que seu dia ia ser péssimo assim que deixou cair a pasta de dente na pia depois do café da manhã. 

   Ele encarou o menino e soltou um muxoxo que mais parecia um miado de dor, considerando a hipótese de se jogar na neve. Talvez ficasse ali até que seus pelos negros se tornassem brancos. 

   Virou-se, então, para Helene e exclamou:

   _ Você disse que eram fantasmas de crianças que morreram ao serem concebidas. Elas não deveriam, sei lá, serem bebês? 

   Anik provavelmente teria menos medo de seis bebês do que de seis crianças. 

   A loira não tirou os olhos do menino quando respondeu, irritada:

   _ Acredita-se que os Mylings teriam a aparência de como seriam se não tivessem morrido. Agora dá para prestar atenção no problema maior? 

   _ Ah _ Anik bufou. _ Você está falando dos nossos amados e queridos fantasminhas camaradas? 

    _ Pare de ser cínico _ Helene sibilou, parecendo querer bater nos Mylings usando Anik. Ela mudou de ideia quando o menino chegou mais perto e o vento assobiou com força, arrepiando cada centímetro de pele exposto que ambos tinham. 

   Depois de ter dado o primeiro passo e parado, as outras crianças imitaram o menino, todas movendo-se como membros conectados de um mesmo corpo. E se aqueles cinco eram os braços, as pernas e o tronco, o menino era a cabeça, e a cabeça comandava o resto. 

   Ai. Meu. Deus. 

   _ Anik Rajaram _ o menino chamou; e sua voz, juntando-se ao poder que aqueles dois nomes tinham quando colocados um ao lado do outro, fez cada célula do corpo do rapaz se eletrizar, pronto para se defender. Ele respirou fundo.

   _ Anik Rajaram _ as outras cinco crianças ecoaram. Um pavor frio lambeu suas veias e congelou seu sangue, enquanto o menino fitava o tigre. 

   _ Sabemos quem você é _ o líder Myling disse, soando como uma pessoa muito mais velha do que a criança suja e maltratada com a qual se parecia. _ E o convocamos para realizar nossos serviços. 

   _ Nós o convocamos _ ressoaram as outras cinco. Anik tremeu dos pés a cabeça, com milhares de pensamentos atravessando sua pele e fazendo seu coração querer fugir do peito. Ele engoliu em seco.

   _ O que quer dizer com convocar? _ Sua voz quebrou no meio da sentença, reverberando em vários tons de pânico. Por favor, que não seja um ritual apocalíptico, ele pensava desesperadamente. Por favor, que não seja um ritual apocalíptico... 

   _ Precisamos dos seus serviços _ as cinco crianças responderam. 

   Anik se voltou para Helene, em pânico.

   _ Eles vão me sacrificar? 

   Para seu alívio (ou nem tanto) a loira sacudiu a cabeça. 

   _ Eu acho que não. 

   _ Você acha

   _ A garota nos atrapalha _ disse um dos seguidores Mylings. 

   _ Ela tira a atenção do convocado _ concordou outro. 

   _ Devemos eliminá-la _ decretou uma menina. A boca de Anik agiu antes de seu cérebro e ele se viu exclamando, em alto e bom som:

   _ Não! _ Sete cabeças se voltaram para ele. _ Ela é... Ela é importante. Não terão meus serviços se a matarem. 

   Os cinco membros se voltaram para o líder, que encarava Anik. 

   _ Então você concorda em realizar um pequeno serviço? _ o menino indagou, com linhas de expressões quase humanas lhe cobrindo a face. Poderia estar se divertindo ali, às custas dos outros, e com certeza possuía bem mais que sete anos. 

   _ Que tipo de serviço? _ Anik perguntou, sentindo Helene ficar tensa ao seu lado. Ele lançou a ela um olhar de esguelha, e o líder Myling ordenou:

   _ Explique. 

   Helene engoliu em seco. 

   _ Ele quer que você o enterre _ disse ela, evitando encarar Anik nos olhos. O rapaz piscou em confusão.

   _ Como? 

   _ A alma de um Myling só pode descansar em paz quando uma pessoa, um mortal escolhido por ele, levá-lo até o cemitério mais próximo e enterrá-lo devidamente. _ Ela suspirou. _ Eles querem que você faça isso. 

   Pequenas peças de uma ideia se encaixaram na mente de Anik. Os olhos dourados dele avaliaram os fantasmas e pararam sobre o menino, que, apesar de ser o Myling mais assustador, parecia o mais fácil de lidar. Bom, não era um bom plano, mas era o único que ele tinha. 

   _ Por que eu? _ perguntou. 

   O menino sorriu, o vento soprou forte os galhos das árvores e cristais pendurados bateram uns contra os outros em algum canto perto dali. 

   _ Sabemos quem você é, Anik _ disse ele. _ E também sabemos o quê você. Apesar de você mesmo não saber. 

  Mas Anik sabia. Ele era um tigre, a menos que o menino não se referisse a isso. Então o que era? As palavras de misturaram e ele teve de se esforçar para voltar a prestar atenção no que era importante. 

   _ Como sabem? 

   _ As árvores _ o menino respondeu, indicando as copas com as palmas das mãos. _ Elas nos sussurraram coisas sobre você. Disseram que você viria. Disseram que você poderia me ajudar. 

   Ele disse "me", não "nos". Talvez Anik tivesse uma chance, afinal.

   _ Árvores não falam _ disse, olhando, vez ou outra, para os compridos galhos imóveis que se ramificavam de seus troncos grossos. 

   _ Claro que falam _ retrucou o líder dos Mylings. _ Você que não se permite ouvir. 

   A brisa cantou, suave e fria. O menino pendeu a cabeça levemente para a esquerda, como se escutasse uma sugestão que o próprio ar havia lhe sussurrado ao pé do ouvido. 

   _ Aceita o serviço? _ perguntou o menino. 

   Anik olhou para as seis crianças fantasmas demoníacas.

   _ O que eu ganho com isso? 

   O líder endireitou a cabeça e o examinou como se conseguisse enxergar sua alma. Então, com a voz soando potente e firme, ecoando dentro de Anik, respondeu:

   _ Vocês continuam vivos. 

   Tudo bem. Aquele era um ótimo motivo para fazer o que quer que ele quisesse. Mas Anik também sabia jogar e, se interpretara corretamente os sinais, talvez conseguisse um acordo. Aquelas crianças estavam em seis, ele era apenas um. 

   _ E quanto a vantagem da chegada? _ perguntou aparentemente inocente, mas com suas reais intenções bem claras refletidas em suas íris de ouro líquido. Os olhos do menino, a única coisa que parecia chegar próximo de vivo em todo seu corpo, faíscaram. 

   Helene ficou ainda mais tensa, deixando os ombros eretos. 

   _ O que você está fazendo? _ ela ciciou. 

   Anik sussurrou em resposta:

   _ Negociando. _ Ele viu os outros cinco Mylings se remexerem, confusos e desconfortáveis. Perfeito. _ E então? 

   _ Vantagem de chegada? _ um deles questionou. 

   Anik sorriu, mesmo que ainda quisesse  sair correndo dali. 

   _ Ah, claro _ falou manso. _ Quem chegou primeiro, será levado até o cemitério. 

   Helene murmurou entredentes:

   _ Anik...

   _ Shhh! 

   _ E os outros? _ a menina de antes se pronunciou. 

   _ Terão de procurar seus próprios convocados, imagino. 

   _ O que? _ ela gritou. _ Não. Nada feito. Você _ apontou para Anik _, seu príncipe tigre desprezível, vem até aqui e acha que pode exigir alguma coisa? Por um descaso desse, deve perecer! 

   Anik não gostava dela. Por que será?

   _ Silêncio _ o menino interrompeu o que quer que os outros fossem falar. _ O rapaz tem razão. O primeiro ganha. O restante perde. É a regra. 

   _ Você só diz isso porque foi quem os encontrou _ apontou outro. _ Agiu antes de nós!

   _ Sabe que não é verdade _ o líder retrucou tranquilamente. _ Nós temos leis. Eu os encontrei, então as vítimas são minhas. _ Os olhos dele encontraram os do adolescente. _ Eu os reivindico. 

   Aquela simples palavra bastou para quê o vento soprasse seus cabelos e arrepiasse todos os seus pelos dos braços. Anik pensou que as cinco crianças fossem atacar o menino, mas eles apenas lhe lançaram olhares de ódio e, quando o rapaz piscou, não estavam mais ali. Foi como se nunca tivessem estado. Ele olhou bem para as árvores, então assobiou: 

   _ Sinistro. 

   O menino o observou de forma desconcertante, completamente diferente do modo como havia aparecido para ambos antes de Anik e Helene correrem na direção oposta. Ainda era assustador, mas, como já tinha conseguido o que queria, o líder Myling parecia não achar necessário agir como uma criança psicótica. 

   Melhor assim. 

   _ Você é esperto _ ele elogiou. _ Apesar de que eu acho que insinuar uma competição foi apenas um golpe de sorte. 

   Realmente fora. Anik não fazia ideia de que ia dar certo. 

   _ Como conseguiu convencê-los tão fácil? _ perguntou. 

   Anik achou que a criança fosse gritar com ele, mas respondeu educadamente:

   _ A reivindicação de um Myling é a ordem final. Nenhum outro pode se opor a isso. O que significa que vocês são oficialmente minhas vítimas. 

   Gentil e apavorante. Como aquele menino conseguia? Ele se aproximou de Anik, que fez um esforço colossal para não se afastar. Tinha de ficar firme, tinha de levar aquilo até o fim, mesmo que fosse difícil. O corpo dele ainda era translúcido, e era possível ver a luz passar por ele conforme a criança se aproximava. Quando chegou suficientemente perto para Anik medir sua altura, o rapaz decidiu que talvez o Myling não fosse tão medonho. 

   A cabeça do menino batia na cintura dele, e sua aparência frágil o fez suavizar a expressão assustada. Ele se comoveu ao ponto de deixar que o outro o tocasse. 

   O Myling envolveu o pulso de Anik com a mão fria, e não foi nada do que Anik achou que seria. Ele não o atravessou, não sentiu calafrios ou estremeceu. Era real, firme e macia. Como a pele de uma criança. 

   Ele olhou para os olhos escuros e estranhamente observadores que o fitavam de baixo para cima. 

   _ Quantos anos você tem realmente? 

   O Myling não respondeu, apenas piscou e disse:

   _ Você vai ter que me carregar. 

   Helene, que avaliava o menino com os olhos estreitados, de repente alegou, aproximando-se:

   _ Ele não vai conseguir sozinho. Eu ajudo a levar. 

   _ Não _ o menino respondeu firme, fazendo com que a loira parasse no lugar antes de poder tocá-lo. Ele a encarou. _ É Anik Rajaram quem deve fazer isso. Se não as coisas poderão dar muito erradas. 

   Ela meneou a cabeça. 

   _ Não entendo o motivo disso. 

   _ Eu o escolhi _ disse o Myling. _ Isso é motivo suficiente. _ Voltou-se, então, para Anik e indicou o rio congelado com o queixo. _ Tem um cemitério descendo o rio. Não é muito longe. 

   Anik suspirou.

   _ É claro que tem. _ Ele olhou para as íris verdejantes de Helene, como se pedisse desculpas. _ Você vai na frente. 

   Ela deu uma última olhada para o Myling antes de assentir, afastando-se devagar. Anik sentiu um suave aperto no pulso que o menino ainda segurava e, acordando para a realidade (ou o que parecia ser ela), ajoelhou-se na neve muito fria, sentindo os dedos dos pés descalços doerem. Braços finos envolveram seu pescoço e pernas compridas se enlaçaram em sua cintura. Quando se levantou, Anik estava com uma criança fantasma fortemente agarrada às suas costas. 

   _ Acho que seria melhor se você estivesse como tigre _ sussurrou o menino, bem perto de seu ouvido. O rapaz assentiu.

   _ Segure-se. _ Então o adolescente deu lugar a um grande felino negro, com um Myling montado sobre seu dorso comprido. Os dedos dele envolveram o pelo macio atrás do pescoço do tigre, como uma criança curiosa que acabara de ganhar um gatinho de presente. 

   Ele não era pesado. Pelo contrário, sua presença chegava a ser quase imperceptível. 

   _ Por enquanto _uma voz sussurrou. Anik não entendeu de onde ela viera, e não teve tempo para descobrir. Helene já havia começado a andar. Apertando o passo, o tigre a seguiu, olhando hora ou outra para a face pensativa que a loira sustentava. 

   Os dedos batucavam na coxa esquerda, o ritmo era compassado e constante, e ela olhava o chão como se os pequenos flocos de neve contidos nele fossem absurdamente interessantes. Seguiu o rio, não olhou para as árvores. 

   Anik franziu a testa do tigre, desejando poder saber o que se passava na cabeça dela. O que ela tanto divagava? O que parecia deixá-la tão incomodada? 

   _ Muitas coisas _ o menino sobre suas costas sussurrou. Anik parou de andar. 

   É o quê?, ele perguntou, mas como tigre a pergunta saiu mais como um rosnado baixo. 

   Ele sentiu o garoto se inclinar até ficar com a boca próxima ao seu ouvido. 

   _ Posso ouvir o que você pensa _ ele disse. _ E o que a garota pensa também. 

   Anik ficou um pouco desesperado. Então o menino sabia de tudo desde o início? Foi assim que descobriu? Foi assim que o escolheu? E a questão mais importante de todas:

   Como ele fazia isso?

   _ Jura que ler pensamentos é a coisa mais impressionante que você já viu? _ o menino indagou. _ Francamente, acabaram de te chamar de príncipe tigre e é isso que você me pergunta? 

   Anik parou de andar de novo, as palavras se formando com clareza em sua mente e transmitindo toda a sua indignação: como? Ele teve a impressão de que o garotinho revirara os olhos. 

   _ Só posso ter absoluta certeza de seus pensamentos quando você os progeta de forma clara. Então continue assim _ disse ele. _ Sua cabeça é uma bagunça. Mas considerando tudo que te aconteceu, isso é bem compreensível. 

   Obrigando-se a seguir Helene, Anik quase parou de novo quando o menino questionou:

   _ Quem é Neithan? 

   Não importa, foram as palavras que se formaram na mente dele. 

   _ Ah. Agora já descobri. _ Ele soou nenhum pouco arrependido. _ E por favor, pergunte uma coisa de cada vez. 

   Com vontade de fazer exatamente o oposto, Anik pensou em algo que queria saber, e a primeira coisa que apareceu foi: como você faz isso? 

   O menino ficou em silêncio por um momento, então sussurrou:

   _ Do mesmo modo que as árvores falam, os cristais escutam e os ventos cantam. E não, Anik, os outros Mylings não conseguiam fazer isso. Se não teriam desconfiado da sua pequena insinuação lá atrás. Eu também não sei porque sou o único, então nem adianta perguntar. 

   Certo, ter um fantasma espionando sua mente era bem perturbador, mas ao mesmo tempo não era. Aquele menino fora o único que conseguira conversar com ele como tigre, obtendo resposta. Acima de qualquer outra coisa, aquilo era... magnífico. 

   _ Que bom que você pensa assim _ disse ele. _ Tem a mente aberta. Vai precisar para as coisas que estão por vir. 

   Que coisas? As patas do tigre afundaram na neve. 

   _ Suas provações _ respondeu. _ Essa é uma delas. 

   Por isso você me escolheu?

   _ Não. Eu te escolhi por que sabia que você era o único que conseguiria me levar até meu destino. Para que eu possa descansar, finalmente. 

   A presença do garoto se tornou mais marcante, seu peso pareceu aumentar um pouco. O que não deveria ser possível. Aquilo era só o peso das palavras dele, não é? Se o menino ouvira o que Anik pensara, não disse nada. 

   Qual é o seu nome? 

   Ele sentiu os dedos do garoto segurarem seu pelo antes dele murmurar:

   _ Eu não tenho nome. 

   Todo mundo tem um nome. 

   _ Não fui batizado. 

   Anik virou a cabeça e olhou para o rosto do Myling, vendo seus olhos refletidos na tristeza dele. Você tem cara de Simon. Posso te chamar de Simon? 

   O tigre não voltou a olhar para frente até que o menino respondeu:

   _ Sim. 

   Então, Simon. Que lugar é esse? 

   _ Acho que você sabe. Afinal, está atrás do amuleto. Sim, eu sei o que estão procurando, mas não sei onde está. A questão é que todo este lugar foi feito por aquela parte do amuleto de Damon. É uma floresta imaginária, baseada em uma floresta que realmente existe. Todo este lugar é como um espelho do mundo que você conhece, mas levemente modificado. 

   O peso de Simon começou a se tornar mais constante. Que floresta? 

   _ Floresta Amazônica, ou algo assim. 

   Mas a Floresta Amazônica é uma floresta tropical.

   _ Eu disse levemente modificada. 

   Essa modificação tem algo haver com a parte do amuleto? 

   _ Provavelmente _ ele ficou em silêncio. _ Não acredito que seja a parte da água, como sua amiga disse ser. 

   Anik nem perguntaria mais como ele sabia disso. Por que não?

   _ Seria óbvio demais. 

   O tigre passou por um tronco e quase escorregou no gelo quando sentiu o peso sobre suas costas aumentar. Ele estendeu as garras afiadas e fincou-as no chão, mantendo-se firme enquanto se equilibrava. 

   _ Cuidado _ Simon murmurou, apertando o pescoço do felino com um forte abraço. _ Se me deixar cair, tudo estará perdido. 

   Mais uma frase da qual Anik não gostou nenhum pouco. Ele arranhou o gelo e passou por aquela parte excessivamente escorregadia com calma, andando devagar. Observou o caminho por onde pisava e só quando se sentiu firme voltou a falar com Simon. 

   Se eu não completar esse favor, você vai me matar? 

   _ A questão não é eu te matar ou não, Anik _ o tigre sentiu uma leve carícia atrás da orelha. _ Eu não decido o que acontece. Se você não me levar ao cemitério, vai morrer, e eu não poderia impedir isso. 

   Anik não se importou com a possível morte que o esperava pela frente, mas pensou em Helene, que também sofreria o mesmo destino, em Kishan, que o esperava retornar, em sua família, que ele precisava encontrar, e em Simon, que teria de esperar por anos e anos até que outra pessoa aparecesse para ajudá-lo. Eles não mereciam isso. 

   _ Esse é o motivo de eu ter te escolhido _ Simon falou. _ E o motivo por eu ter gostado de você. Não quero que morra. 

   A pressão nas costas do tigre aumentou mais, e Anik teve certeza de que tinha algo de errado. Você está ficando mais pesado, ou é impressão minha? 

   Ele não disse nada. Então acariciou os pelos macios do pescoço do felino e respondeu:

   _ Não é impressão. _ Simon parecia encabulado. _ Quanto mais perto você chega do cemitério, mais pesada a carga fica. 

   AhPor isso Helene queria dividir o peso. 

   _ Sim _ concordou o menino. _ Desculpe, mas ela não podia te ajudar. É contra as regras. 

   Anik não sabia o motivo dos Mylings terem tantas regras, porém não foi nessa informação que ele se deteve. Simon havia pedido desculpas? Aquela criança fantasma assustadora? 

   _ Não sou assustador _ ele retrucou.

   É sim, o tigre bufou, o equivalente a uma risadinha irônica. Mas, apesar disso, acho que estou começando a gostar de você, Simon. 

   Anik sentia suas patas começarem a cansar. Sua cauda balançou de um lado para o outro. 

   _ Por quê? _ Simon perguntou. _ Por causa de mim você pode morrer. Vocês dois podem.

   Eu sei, ele respondeu. Mas você deseja o contrário. Para mim isso é o suficiente. 

   O peso veio com mais intensidade, fazendo o tigre afundar na neve e, em consequência disso, incentivá-lo a procurar as partes mais duras e escorregadias para fincar as garras, o que fez eles diminuírem o passo. 

   _ Está doendo, não está? 

   Anik queria dizer que não, levantar a cabeça e seguir em frente como se nada tivesse acontecido. Mas Simon ficava cada vez mais pesado, pressionando sua coluna para baixo de forma dolorosa. Ele sentia seus ossos estalarem vez ou outra, comprimidos como acreditava não ser possível acontecer. 

   Eu vou levá-lo até aquele cemitério, Simon, o tigre decretou. A dor não é desculpa

   _ Você aguentou mais que a maioria _ disse o menino. _ Sabe, essa é nossa maldição: procurar pela eternidade, chegar sempre tão perto do fim, para fracassar e voltar ao início. 

   Anik inspirou profundamente, ajeitando Simon sobre suas costas com uma suave sacudida. Maldição? 

   _ Sim _ ele concordou. _ Como a sua. Como a do seu pai e a do seu tio. Só que vocês fizeram bom uso dela. Eu não.

   Pode fazer. 

   _ Talvez.

   Ei. Você disse algo sobre príncipes tigres. O que significa? 

   Simon deu uma risadinha. 

   _ Achei que nunca fosse perguntar _ ele falou, percorrendo os dedos pelo pescoço do tigre. _ É o que você é, Anik. Um príncipe. Um herdeiro. 

   Você fala isso como se fosse algo inédito. 

   _ Porque é inédito. Isso não costuma acontecer com frequência, sabe? Havia uma lenda sobre Os Herdeiros, que as árvores contavam umas para as outras toda noite quando as estrelas subiam aos céus. Eu sempre quis conhecer um, e acabou sendo melhor do que eu imaginei que seria. 

   Herdeiros? O que é isso?

   _ Não é a hora certa de saber ainda _ disse Simon. _ Tenha paciência, Anik. Já teve informações demais por hoje. 

   O tigre bufou, e teria reclamado horrores se um peso muito maior não tivesse sido jogado em cima dele como jumbo. O baque foi tão forte e repetido que suas pernas fraquejaram e abriram, fazendo Anik cair de barriga na neve gelada. Simon segurou nele com força, ainda grudado em suas costas. 

   Helene, que andou sempre a frente dos dois, se deteve para esticar o braço e apontar para um arco de pedra com um portão de ferro. 

   _ Ali _ ela disse. _ O cemitério. 

   Simon aproximou a boca do ouvido do tigre para sussurrar: 

   _ Está tão perto, Anik. Por favor, levante. Vamos conseguir. 

   Tirando vontade do fundo de seu ser, ele se pôs apoiado sobre as quatro patas do tigre, que fraquejaram levemente. Ele cambaleou, mas ergueu a cabeça de forma decidida. 

   Ele precisava _ ele tinha que levar Simon até lá. Tinha que salvá-lo. 

   Aguentou todo e qualquer peso que era jogado sobre si, pisando no gelo com as garras estendidas e as presas trincadas. Ele rosnou baixo, sentindo a envergadura das suas costas se curvar cada vez mais, assumindo um formato torto que irradiava seu corpo com correntes de dor aguda. 

   Era algo físico, Anik iria suportar. 

   Mas então, quando deixou-se aproximar mais do cemitério a ponto de ver a neve cobrir algumas barras do portão, seu psicológico foi afetado. 

   As vozes gritaram todas juntas, altas e estridentes, completamente desafinadas. Elas disseram coisas horríveis, jogaram toda a culpa acumulada em cima dele, esmagando algo que não poderia ser consertado: seu coração. Anik soube, naquele instante, que sua mente, seu ser, tudo que ele era e já foi, estava sendo consumido, então entendeu. Não era por causa do peso que as pessoas morriam, era por causa de si mesmas. 

   Ele queria desistir, seria mais fácil e menos doloroso. 

   _ Anik _ Simon chamou, fazendo ele acordar para a realidade. O que era isso? Não. Os Rajaram nunca desistem. Ele ignorou tanto a dor física quanto a dor emocional e, lutando para por uma pata da frente na outra, ajeitou a postura e continuou. As vozes não importavam, tudo que importava era o portão de ferro e o que havia além dele. 

   Um passo. Outro passo. Helene já havia adentrado o cemitério, e os esperava lá, parecendo preocupada. 

   Mais um passo. O focinho do tigre estava tão perto das barras de ferro congeladas. 

   As vozes ainda insistiam, contudo, tentando fazê-lo parar, recuar e chorar como o garoto sem família que ele era. Diziam que ele era fraco, covarde e dependente, e Anik acreditava nelas. Acreditava tanto que quase parou mais de uma vez, e toda vez que isso acontecia, ele brigava consigo mesmo. 

   Uma lembrança lhe preencheu a mente, e o coração do tigre bateu com mais força. As vozes foram colocadas como plano de fundo, e a voz de Kelsey lhe chegou aos ouvidos, com a canção de ninar que ela cantava para o filho toda noite antes de dormir. 

   Simon ofegou, em êxtase, assim que Anik cruzou os portões. As vozes sumiram, a dor desapareceu e o tigre pôde enfim respirar em alívio. 

   Ele conseguiu. 

   Helene abriu um sorriso tão largo que as pontas de seus lábios poderiam alcançar as orelhas. Simon desceu das costas dele, pisando no solo do cemitério pela primeira vez em toda sua existência. Mas ele não contemplava o lugar, ou os túmulos cobertos de neve, encarava o tigre, enquanto um singelo sorriso, cheio de gratidão e admiração, tomava-lhe a face não mais translúcida. 

   Anik se ergueu nas duas pernas, vestido com as roupas de linho preto. Suas costas reclamaram, mas ele nem deu atenção a isso. Encarou Simon surpreso, e logo Helene também olhava para o Myling que não parecia mais um Myling. 

   Ele estava limpo, com roupas secas e arrumadas. Sua pele era clara, as bochechas tinham cor, ele não era mais translúcido. Não se parecia mais com um fantasma. Simon era uma criança, um menino lindo e sorridente, com duas janelinhas nos dentes da frente. 

   Ele não era um Myling. Não mais. 

   _ Você está... _ Anik nem completou a frase, pois Simon correu até ele e envolveu sua cintura num forte abraço. O que ele falaria, afinal? Diferente? Normal? Maravilhoso? Não conseguia nem pensar direito. Não queria pensar. 

   Abaixou-se até ficar na altura dele, abraçando-se de volta. Era quente e muito real.  

   _ Obrigada _ Simon sussurrou. Soltou Anik e deu um sorriso de canto. _ Mas ainda não terminamos. _ O menino virou e seguiu andando pelo cemitério calmamente, com o rapaz e Helene em seu encalço. 

   Estava tudo tão tranquilo e sereno, com o vento soprando suavemente. As lápides eram cinzentas, mas encontravam-se quase todas cobertas de neve branca e brilhante. Na pedra lisa, haviam nomes que Anik não conseguia ler, sendo desgastados ou apenas difíceis de decifrar. 

   _ Simon _ ele chamou, Helene encarou Anik como se ele fosse maluco, mas o garoto lhe olhou esperando pela pergunta. _ Você disse que essa floresta era um espelho da Floresta Amazônica.

   A loira franziu a testa. 

   _ Ele disse?

   Anik assentiu. 

   _ Mas não tem um cemitério todo estruturado naquele floresta, pelo que eu saiba. 

   Simon sorriu. 

   _ Este é um cemitério indígena _ explicou com paciência. _ As árvores disseram que, quando o amuleto construiu esse lugar, tornou algumas coisas mais atuais. Na realidade, as lápides são simples e as covas desorganizadas. Também não tem nome. 

   Helene não comentou nada, só olhou do menino para Anik com curiosidade. Ela os seguiu até que Simon parou no lado de uma cova aberta. 

   _ É aqui que nos despedimos _ disse o ex-Myling. Ele fez uma reverência perante Anik, que se sentiu desconfortável com tal demonstração de respeito. _ Não tenho nem palavras para te agradecer. 

   _ Você não precisa _ o rapaz disse, então olhou para o buraco no chão, exatamente do tamanho do corpo de uma criança de sete anos. _ Vou ter que te enterrar, não é? 

   Simon suspirou, indicando com o queixo uma pá próxima à cova. 

   _ Sim. Manualmente _ respondeu. _ Você consegue fazer isso? 

   Anik tinha de admitir: nunca imaginou se encontrar numa situação dessas. Seu estômago embrulhou só de imaginar a terra cobrindo o corpo de Simon pouco a pouco, enterrando tudo que aquele garoto agora era, mas ele engoliu o gosto ruim de bile e respirou fundo. 

   _ Consigo. _ Pegou a pá que Simon lhe estendeu. 

   _ Só mais uma coisa _ o menino pediu. _ Mantenham-se perto do cemitério, tanto na ida quanto na volta. Sigam o rio, porque os Mylings não podem te encontrar, ou vão exigir seus serviços novamente. Um humano não sobrevive duas vezes. 

   Anik olhou nos olhos escuros do menino, observou seu sorriso aberto, e meneou a cabeça. 

   _ Tomaremos cuidado _ garantiu, então fez algo que surpreendeu tanto ele mesmo quanto o menino, e que deixaria Kelsey orgulhosa: se inclinou e deu um beijo na testa de Simon, como Anik fazia com seus irmãos. 

   Simon piscou, aturdido. Então, com um último sorriso, entrou na cova. Respirando fundo várias vezes, controlando o próprio estômago e sentindo o coração afundar, Anik apertou o cabo da pá nas mãos e se pôs a trabalhar. 

   Ele precisava. Ele conseguiria. Daria adeus a Simon, ao cemitério e aos Mylings, mas jamais os esqueceria. 

   _ Até, Anik _ foram suas palavras finais. 

   Terra e neve cobriram a cova. 


Notas Finais


Bem, esse capítulo ficou grande, então acho que mereço comentários da mesma proporção. Sem pressão, ok? Só quero saber o que estão achando da história. Gostaram do Simon? Acharam que ele ia ser assim? Como foi sua primeira impressão dos Mylings? O que mais gostaram nesse capítulo? E a Helene? E o Anik? Quais suas dúvidas, questionamentos e sugestões?

Se você não leu as notas iniciais, leia, é importante.

Até o próximo :3


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