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História O inevitável destino de um homem sem memórias - Parte 1


Escrita por: CameliaBardon

Notas do Autor


Hellou, como vão vocês? Essa fic é para o desafio do concurso de aniversário do grupo Fanfics Amor Doce/Eldarya, lá do facebook. A história também foi inspirada num prompt de escrita, e adaptada para para ficar adequada ao enredo. Vou deixar o link também nas notinhas finais para se vocês quiserem dar uma fuçada, todo mundo é bem-vindo ♡
Bom, não vou me prolongar muito, só postar e sair correndo, mas espero que vocês gostem :3

Capítulo 1 - Parte 1


Eram 15h45. Como todas as quartas-feiras, Lysandre passou um chá de erva-doce, serviu-se de uma generosa xícara e sentou-se no sofá da sala de estar. Aguardou, mirando o relógio acima da lareira. 

Apesar do horário marcado, sua visita ⎼ poderia chamá-la assim? ⎼ sempre aparecia por volta das 16h. Ele levava os atrasos na esportiva e até mesmo se divertia com suas desculpas. Uma vez, a bicicleta enguiçou na lama da estrada. Na outra, foi a chuva. A terceira era que ela havia parado no caminho para comprar biscoitos para acompanhar o chá. Essa, particularmente, era sua preferida, pois só se encontravam biscoitinhos de canela na cidade grande. 

Às 16h10, Lysandre escutou as batidas delicadas na porta, resultado de seus dedos finos e delicados. Por um minuto, recordou-se de instalar uma aldrava. Ou uma campainha. Ou a instruir a bater palmas, visto que não recebia quase ninguém além dela, a não ser o leiteiro e os clientes. 

― Boa tarde! ― ela abriu um sorriso sincero, fazendo-o imaginar qual era o limite de sua afeição por ele. ― Estou muito atrasada?  

― Não muito… imagino que tenha sido por um bom motivo. 

― Foi. Trouxe algo para você. Espero que seja agradável. 

Lysandre ergueu uma sobrancelha, abrindo a porta um pouco mais para que a jovem entrasse. Seu rosto estava corado das generosas pedaladas, o que a fez retirar a blusa fina que usava. O outono na região era bem fresco, então calculou que ela fosse requisitar a blusa em breve. Prontamente, segurou-a nos braços e sorriu minimamente. 

― Fiz chá ― anunciou ele, como de praxe. 

― Eu espero a semana inteira por ele. Muito obrigada, é muito gentil da sua parte. 

Lysandre assentiu com a cabeça, sentando-se na poltrona. A jovem o acompanhou, escolhendo o sofá em frente de si para se aconchegar. Lysandre a aguardou deixar a bolsa sob a mesa, bem como o bloco de notas e a caneta. Apesar da rotina parecer hostil de início, ele começou a achar reconfortante após certo tempo. Servindo-se da segunda xícara de chá e a primeira para ela, sorriu uma vez mais. 

― Como vai hoje, Lysandre? Fizemos algum progresso desde semana passada? 

Ele fechou os olhos, suspirando. Isso o fazia ter mais calma e não dizer besteiras ⎼ afinal, sua cabeça já fazia isso em seu lugar. Por sorte, a jovem não o censurava; pelo contrário, parecia ter todo o tempo do mundo para escutá-lo resmungar. 

― Não. Ainda, nada. 

Ela assentiu, mordendo os lábios de frustração. Emma, para ele não mais que “srta. Perrin”, sabia bem controlar suas emoções. Apesar de não ser nenhuma terapeuta, apenas assistente social, Lysandre a tratava com o respeito como se fosse. 

― Entendi. Não há problema. Então… semana passada nós conversamos um pouco sobre o seu irmão. Você falou com muito carinho dele, e como me dei a liberdade de olhar seus livros na estante, trouxe uma coisa para te distrair essa semana. 

― É mesmo? Não precisava se incomodar…  

― Não é incômodo, Lysandre. É o meu trabalho. 

Dando-se por vencido, ele observou-a retirar da bolsa um livro mediano. Deixando-o sobre a mesa, Lysandre analisou a capa. Abriu um sorriso quase que instantaneamente com o conteúdo da sinopse, bem como srta. Perrin, que aguardava sua reação. 

― É um romance histórico centrado em irmãos. Há mais deste, um para cada irmão. Se gostar do primeiro, posso trazer o próximo quando vier novamente. 

― Está bem… obrigado…  

Srta. Perrin respondeu-o com um gole da xícara de chá. Lysandre se considerava uma pessoa calma, no entanto suspeitou que a jovem diante de si reagiria ao fim do mundo com um breve aceno de cabeça.  

― Tem recebido ligações? ― sem tirar os olhos dos dele, ela indagou. 

 ― Não. Não essa semana. É… difícil de acontecer. 

― Alguma visita? 

― A senhorita, às quartas… a sra. Noel vem comprar ovos aos domingos e o leiteiro vem dia sim, dia não.  

― E o seu irmão e sua cunhada?  

Lysandre parou alguns instantes para pensar, calculando que dia seria àquela altura. Depois de algum tempo, Lysandre parou de contá-los. Não tinha nenhum compromisso, afinal. 

― Eles vêm para o mês que vem. É o aniversário de casamento dos meus pais. Minha mãe sempre faz um bolo e meu pai se encarrega do almoço. Eu… acho. 

Srta. Perrin anotou a informação em seu bloco de notas, gesto que lhe parecia tão familiar… ele só não conseguia se recordar de onde. Sempre que ela anotava algo, bom sinal não era. Quer dizer, não que ela expusesse em voz alta, e não que ele fosse se intrometer e perguntar. Frequentemente se recordava de que ela não era terapeuta, então seu prognóstico poderia ser bem raso; daí, voltava a acalmar-se. 

― Eu disse algo de errado? ― de prontidão, Lysandre foi perguntando. 

― Não. Não há certo e errado aqui.  

― Não é muito consolador, se quer saber…  

Srta. Perrin riu com delicadeza, deixando o bloco de notas de lado para esfregar uma mão na outra com cuidado. Lysandre aproveitou da oportunidade para bebericar de sua própria xícara, aguardando o veredito. 

― Ah, meu bem, sinto muito que seja eu a te dar essa notícia, no entanto seus pais já faleceram. Seu irmão o visitará ainda esse mês, mas não para o aniversário de casamento…  

― Ah! ― ele engoliu em seco, torcendo a barra da blusa. ― Desculpe. Já me disse isso antes? 

― Já. Na semana retrasada. 

― E… isso é ruim? Há quanto tempo eles já foram? Como que…?  

― Calma ― srta. Perrin riu com delicadeza, interrompendo-o de seu monólogo. ― Uma pergunta de cada vez. 

Ele assentiu com a cabeça, tentando controlar a respiração. Eles estavam mortos? Como em sã consciência poderia se esquecer de que haviam ido? Pior: ele sequer recordava se havia tido a oportunidade de despedir-se deles. O que iriam pensar? Algo relacionado por morar na fazenda agora? Ah, céus…  

― Por um lado, é ruim. Por outro… é bom que suas memórias não estejam voltando uma por vez. Estive estudando alguns artigos e conversando com algumas amigas minhas da área psicológica e acho que consegui determinar o fator que está causando essa confusão toda nessa sua cabecinha ― ela riu baixo, numa tentativa de amenizar a situação.  

― E… é grave? 

― Grave, porém não fatal. O senhor está sofrendo com estafa. 

Lysandre franziu a testa, indicando para a assistente social que não conhecia os termos que estava usando. 

― Estafa é caracterizada pela exaustão crônica, impulsionada por um estado de estresse frequente.  

― Está me dizendo que tenho lapsos de memória por… estresse? 

A ideia parecia tão ridícula de se ouvir que Lysandre não resistiu em rir. Soltando uma gargalhada generosa, demorou uns instantes até que ele entendesse que não era piada. Srta. Perrin observava-o com cuidado, apertando o botão da caneta vez ou outra.  

― Como isso é possível? Pensei que só acontecesse nos filmes ― assim que pronunciou as palavras, Lysandre arrependeu-se, preferindo se esconder atrás de sua xícara. 

― É, acontece. Veja só: você passou por momentos difíceis, um atrás do outro. Segundo meus informantes, esses lapsos de memória são uma resposta do seu corpo para que encontre meios de relaxar… de um modo forçado.  

Lysandre assentiu com a cabeça, não muito convencido. 

― A solução para que minha memória volte é relaxar? 

― E essa é a hora que o senhor me agradece por eu vir aqui por trabalho voluntário, não por trabalho pago. 

Desta vez, a risada dele foi sincera. Ela pareceu satisfeita com o próprio comentário, anotando a reação em seu bloco de notas. Finalizando sua xícara de chá, ambos as deixaram na mesinha de centro, ao lado do livro. 

― Quando relaxa, tira tempo para que seu organismo produza e libere serotonina e endorfina. Consequentemente, seu corpo voltará a funcionar como deveria, incluindo suas memórias. E aí, uma vez as tendo retomadas, pode reagir às coisas que estão lhe incomodando com mais propriedade e responsabilidade. Que me diz? 

Lysandre ponderou a ideia. Srta. Perrin não estava lhe pedindo nada de muito complicado, afinal. No entanto… ele já não estava relaxando, ficando sozinho daquele jeito? Qual era a diferença? Fosse como fosse, ela pareceu tirar as palavras de sua boca ao comentar: 

― Até para se dar por vencido e descansar é trabalhoso, Lysandre. Está aqui, sozinho nesta casa, com todo tempo do mundo. Mas… sente-se relaxado? 

Seu bom senso indicou que ele deveria negar, portanto assim o fez. Ainda assim, a assistente social sorriu para ele de modo gentil. Lysandre tinha certo receio de que sua gentileza fosse, na realidade, pena. Pena de seu estado, pena de estar sozinho e sequer lembrar os porquês… que continuasse comparecendo às “consultas” por obrigação. Portanto, negou uma vez mais com a cabeça, pouco convicto. 

― A grande questão não é quanto tempo você tem livre. É o que faz durante esse tempo. Faz sentido para você? 

― F-faz… tem… tem alguma sugestão? 

― Eu? ― srta. Perrin sorriu, como se esperasse que ele dissesse exatamente isso. ― Eu tenho um mundo de sugestões. Contudo, há uma bem em frente de si, meu querido. 

Lysandre baixou os olhos bicolores para a mesinha de centro, encontrando o livro que ela trouxera pronto para servir para o propósito sugerido. Ele mordeu os lábios e passou os dedos finos pela capa, tirando alguns segundos para apreciar a textura da capa. Não pode ser difícil assim relaxar.  

― É, é um começo ― concordou ele, recostando-se no sofá. 

― Muito bem… então, temos um acordo?  

Achando graça do comentário, Lysandre não resistiu a erguer uma sobrancelha e um sorriso. 

― Acordo? 

― Mas é claro! É uma via de mão dupla, esta tarefa. Eu procuro meios de fazê-lo relaxar enquanto o senhor procura dar seu máximo para tirar proveito destes meios. Os dois lados ao menos saem entretidos.  

― A senhorita tem um jeito um tanto… curioso de enxergar as coisas, srta. Perrin. 

Ela deu de ombros, fechando o bloco de notas e guardando-o na bolsa à tiracolo.  

― Creio que, se não procurar dar um toque de divertimento em minhas atividades cotidianas, acabarei me tornando escrava de meus problemas e aflições. Uma amiga minha me aconselhou uma vez a sempre tentar enxergar o que já temos de bom, ao invés de nos lamentar pelo que ainda não temos. 

― É um bom conselho ― Lysandre sorriu, após um suspiro. ― Mas não é fácil. 

― Não, não é. E também não é digno de se desistir antes de tentar. Não é? 

Lysandre riu em tom baixo, jogando os cabelos prateados para trás com a ponta dos dedos. 

― Não há meio termo com a senhorita? 

― Definitivamente, não ― srta. Perrin riu com ele, pondo-se em pé. ― Nossa hora chegou ao fim… se não se importar, eu já vou indo. 

― Já? 

Franzindo a testa para o relógio acima da lareira, ele verificou que este já marcava 17h20. Ela ficou aqui por mais de uma hora. Com a terapeuta que vinha aqui anteriormente, jamais passava do horário previsto. Enquanto a assistente sorria para ele como se compreendesse o que estava pensando ⎼ e para sempre Lysandre se perguntaria como isso era possível ⎼, ele recolheu as xícaras de cima da mesa de centro, levando-as para a cozinha. Srta. Perrin não o seguiu, entretanto; permaneceu observando as prateleiras em volta da lareira. Vendo-a de costas, imaginou se a trança desgrenhada já havia sido feita assim ou se foi a decorrência do vento no rosto da viagem de bicicleta.  

― Algo de seu interesse? ― Lysandre resolveu indagar, provocando nela um susto. ― Desculpe. Eu digo… quer levar algum? 

Srta. Perrin comprimiu os lábios, desviando seu olhar do dele. Estimando sua reação, ele encolheu os ombros. 

― Muito obrigada, mas estava só olhando…  

E, também, imagino que levar objetos pessoais de pacientes não seja uma boa ideia. 

― É claro. Não vou tomar muito mais de seu tempo. Obrigado pela… consulta? 

― Visita ― ela sorriu. ― Não tem de quê. Semana que vem tem mais, certo?  

Lysandre assentiu com a cabeça, levando-a até a porta com uma mão respeitosa em suas costas. Como um guarda-costas, por mais que não estivesse em condições de fazê-lo. A assistente ergueu o olhar para ele, sorrindo de escanteio, e então desvencilhou-se de seus braços para retornar à bicicleta. Deixando a bolsa na cesta, como se tivesse saído de um filme clichê romântico, Srta. Perrin acenou para ele, partindo de volta para a cidade grande. 

Quanto a Lysandre, ele apenas observou até que ela sumisse no horizonte. Girando nos calcanhares, ele voltou para a casa que voltaria a ser enfadonha como de costume. 

───── ⋆⋅☆⋅⋆ ───── 

 Lysandre devorou o livro em um dia e meio. Lia-o a qualquer momento que estivesse desocupado ⎼ após passar o café, enquanto esperava as galinhas comerem, enquanto aguardava a água para a sopa ferver, antes, durante e após o banho, o último segundo antes de dormir e o segundo seguinte depois de acordar. Portanto, a ressaca literária que se seguiu quando o terminou foi avassaladora. Então, seu passatempo subsequente foi contar. 

Cinco dias até que ela retornasse. Entretanto, não sabia se seriam cinco dias até o próximo livro. Ele não teve outra escolha a não ser encarar o teto. Ou… ou poderia fazer um esforço e gastar um pouco de dinheiro comprando os volumes restantes, não?  

Faltando quatro horas para que ela retornasse, o entregador bateu palmas em frente à sua casa e deixou ali a encomenda. Ao invés de perguntar como teria chegado tão rápido, checou o preço na encomenda. Entrega expressa: três dias. Lysandre preferiu dar de ombros, suspirar em frustração e voltar para dentro. Pôs-se a ler o segundo volume assim que se sentou, então quando a srta. Perrin bateu na porta, quem demorou a atender foi ele. Checando o horário, 15h45, Lysandre levantou-se apressado e tropeçou nos próprios pés. 

― M-me perdoe o atraso, eu…  

― Ora, ora, é a primeira vez que vejo um atraso dentro da própria casa! ― ela brincou, bem-humorada.  

― Ficou muito tempo esperando…? 

― Não se preocupe comigo. Cheguei adiantada, era tradicional que estivesse em outro momento. Sou eu que peço desculpas. 

Adiantada… ora essa, já considerava que os horários das consultas como sendo às 16h…  

Abrindo a porta para que ela pudesse entrar, Lysandre pigarreou desconfortável. Por sua vez, srta. Perrin não pareceu notar que o paciente escondia sua vergonha. Como de praxe, ele recolheu sua blusa fina e observou-a trocar a bolsa de ombro, por conta do cabelo que havia enroscado no processo. 

― Eu não fiz chá ― anunciou ele pela primeira vez desde que se conheceram. ― Então… podemos deixar em infusão enquanto… conversamos? 

― É uma boa ideia. Mas acho que já lhe disse que está sendo gentil demais e que vou ficar mal-acostumada, não? 

― Imagino que sim, mas devo ter me esquecido. 

Sobressaltando-se, srta. Perrin voltou seu olhar para ele, preocupada com seu estado mental. Por sua vez, Lysandre riu de forma descontraída, procurando a chaleira. Quando ela reparou que era uma piada, optou por rir também, mas de modo nervoso.  

― Não me dê um susto desses, caramba! 

― Provavelmente não sou muito bom com piadas…  

― De fato, não faz muito o seu perfil. Mas foi uma boa tentativa, é necessário reconhecer. 

Lysandre sorriu, deixando a água fervendo. Enquanto isso, procurou no armário o saquinho com as ervas. Sentiu o olhar inquietante da assistente atrás de si, porém notou que ela não o fazia. No lugar disso, srta. Perrin havia se sentado no balcão, quieta como um rouxinol preso numa gaiola. Se ele se considerava quieto, com ela era 8 ou 80: ou falando para que escutasse nas consultas ou quieta ao extremo fora delas.  

― Eu… comprei os outros volumes daquele livro que você me trouxe ― achando uma boa ideia puxar assunto, ele sentou-se no balcão em frente a ela. ― Comecei a ler o segundo um pouco antes de chegar. A leitura estava boa, por isso eu me atrasei. 

― Gostou? ― seus olhos brilharam de empolgação. ― Fico feliz. Eu li há uns quatro, cinco anos, mas não me esqueci. 

― Gostei. Mas… confesso que fiquei com um pouco de receio quando comecei. 

Ela ergueu uma sobrancelha e um sorriso maldoso. 

― Pelo teor feminino? 

― … pelo teor feminino.  

― Se te consola, o primeiro também não é meu favorito. Mesmo que sejam épocas diferentes, há muita coisa com o qual não concordo. Entende? Há um limite para a minha tolerância. 

Exatamente. Lysandre não quis expor a visão de sua primeira impressão com medo de ela achar que ele o havia detestado por inteiro; contudo surpreendeu-se com a opinião conjunta da assistente social. Por isso, assentiu com a cabeça solenemente. 

― Se não gostou tanto do primeiro, qual é o seu preferido? ― isso eu posso perguntar sem ser invasivo, certo? 

― Bem, meu coração pertence ao segundo volume. O quarto e o quinto ficam logo atrás. Não vou contar nada para não estragar a experiência, mas encare como um incentivo ― então, ela sorriu. O tipo de sorriso que aquece o coração sem esforços e sem pretensões, simultaneamente. ― Você vai me atualizando enquanto for lendo. 

― Combinado ― devolvendo o sorriso, Lysandre olhou para o saquinho abandonado em suas mãos. Escutando a água borbulhando no fogão, ele grunhiu. ― O chá, eu vou… o chá, eu me distraí. 

Por sorte, srta. Perrin riu sinceramente de sua confusão. Ele considerava-a gentil por não denotar suas falhas de memória em frente de si ⎼ melhor dizendo, explicitamente ⎼ como Leigh e Rosa faziam. Lysandre entendia que não era por mal, no entanto se sentia mais confortável de se abrir com ela do que com eles ou com a terapeuta anterior, que a cada pergunta pessoal parecia mais atacá-lo com palavras cortantes. Emma Perrin era paciente. Possivelmente com pena, mas ainda em processo de avaliação. 

― É mesmo, o chá!  

Deixando o chá em infusão, ele suspirou. Ao menos, cheiro era inebriante. 

― Gostaria que ficássemos aqui hoje? Já estamos todos instalados e confortáveis ― srta. Perrin sugeriu. 

― É… é uma boa ideia. Seria incômodo? 

― De modo algum. É meu trabalho.  

É claro.  

― E, aliás, nossa sessão já começou em algum momento que começamos a discutir aquele livro.  

― Imagino que tenha alguma explicação psicológica extensa para justificar minhas opiniões e reações a ele…  

― Se há, eu desconheço ― ela riu, bem-humorada. ― Já está fora de minha área. Mas o que posso interpretar de suas reações é que isso te distraiu, ao menos um pouco. 

― Um pouco? Eu acho que me distraiu até demais, acabei esquecendo você plantada na porta…  

Srta. Perrin riu, resgatando o bloco de notas dos bolsos da calça. Depois, retirou a caneta com que prendia seu cabelo em um coque, anotando o que quer que ele tenha dito que valesse a pena. Agora, com os cabelos soltos, ele entendeu porque ela os prendia com tanta frequência ⎼ eram grossos e volumosos, com ondulações pouco definidas. Estes, emolduravam o rosto a ponto de suas bochechas sumirem atrás da cortina de cabelo. Lysandre acabou por sorrir com o devaneio, aproveitando que ela não o via. 

― Isso é bom. Sente-se mais tranquilo?  

― Sim e não. É confuso, me sinto ansioso querendo terminar o livro o mais breve possível, porém… é uma ansiedade boa, faz sentido?  

― Faz ― ela sorriu, deixando a caneta presa entre os dedos. ― Tudo tem seu lado bom e ruim, até mesmo a ansiedade. É algo como… ela te faz reconhecer seus limites, neste sentido. Apesar de você querer muito ler a todo instante, pulando refeições e sono, você não o fez. Porque reconhece seus limites. 

E é justamente isso que a ansiedade “ruim” faz. Tira meu sono e tira meu apetite. Gosto dessa linha de raciocínio. Assentindo com a cabeça, Lysandre perambulou pela cozinha em busca dos cubos de açúcar e das colheres. Calculou que já poderia ser servido, portanto o coou com a peneira na pia, transferindo-o da chaleira para o bule. 

― Fazer chá também o deixa relaxado ― ela pontuou, casualmente. 

― Sim. Mas só o faço quando é dia de sessão, sobra muito para o resto da semana. 

― E quanto a cozinhar? No geral?  

Ele comprimiu os lábios, pensativo. Com o chá pronto, sentou-se de volta no balcão e deixou o recipiente com os cubos de açúcar ao lado. Serviu as duas xícaras e, destampando-o, deixou a assistente à vontade para adoçar sua xícara à gosto. Assim ela o fez, usando três cubos e mexendo o líquido enquanto ele explicava: 

― Também, apesar de que não tenho muito o costume de fazê-lo com frequência. Como mais lanches do que cozinho. 

― Por que não experimenta tentar cozinhar mais vezes? Pode começar oferecendo algo caseiro para seu irmão e sua cunhada, quando vierem. 

― Como por exemplo…?  

― Talvez um bolo, uma torta… algo não muito complicado, mas que seja gostoso. Se quiser arriscar, talvez um almoço inteiro, com uma série de testes antes. 

Lysandre ponderou a questão, julgando ser mesmo uma boa ideia. Não lhe custava nada usar o dinheiro que o irmão enviava mensalmente para o propósito de fazer um agrado para ele mesmo, afinal de contas. De quebra, ainda poderia aproveitar a oportunidade para demonstrar que não estava indo mal como era a opinião comum. 

― É uma boa ideia. Obrigado pela sugestão, srta. Perrin. 

― Não há de quê, querido ― ela sorriu, tomando o primeiro gole do chá. ― Se cozinhar tão bem quanto faz o chá, pode ter certeza de que eles irão gostar.  

Ele acabou por rir do comentário, mas não porque não acreditava ⎼ não sabia como aceitar elogios sem achar que era piada ou alguma estratégia de interesse. Lysandre não se considerava digno de elogio para qualquer coisa que fosse. Não era exatamente menosprezo; se aproximava mais da indiferença mórbida. E é claro que srta. Perrin anotou o gesto. 

Suspirando e tomando um fôlego para reunir coragem, Lysandre murmurou: 

― Gostaria de se juntar a nós? No… almoço que ainda não há planos? 

Srta. Perrin ergueu os olhos de sua xícara, com cuidado.  

― Eu não…  

― Como uma amiga, não como minha assistente social ― interrompeu ele, ignorando sua própria noção de educação. ― Vai ser algo bom para distrair a nós dois. É só essa vez…  

Foi a vez de srta. Perrin considerar suas opções. Se olhasse com atenção, poderia enxergar as engrenagens girando dentro de sua cabeça. Hesitando em seu convite, Lysandre pensou se não fosse melhor voltar atrás. No entanto, quando abriu a boca para retroceder, ela sussurrou: 

― Posso pensar no seu caso.  

Isso é um sim? Um não? Um talvez? Está certo, ela é boa em evasivas. 

― Está bem… é um jeito de agradecer. Leve isso em consideração. 

― Agradecer? Pelo que? ― ela apoiou o cotovelo na mesa e a palma da mão na bochecha, cautelosamente. 

― Por ajudar. Você mesma disse que é um trabalho voluntário. Me leva a pensar que não está aqui por obrigação. 

― Claro que não. Eu gosto de estar aqui. Conversamos há quase um semestre, não é? 

Ele assentiu, piscando os olhos bicolores para assimilar a conversa. Optou por também tomar o chá, com a intenção de controlar a própria língua. Já havia se afeiçoado a ela, não seria bom negócio fazer com que fosse embora e retroceder todo o progresso que já tinham alcançado até ali. 

― Para não perder o costume, notou alguma diferença para melhor ou para pior em seu estado emocional? Algum sonho diferente dos que está habituado, com rostos novos…? Como a sensação de déjà vu? 

― Não… nada, ainda. Eu sinto muito, gostaria mesmo de ter algo a relatar… 

― Não há por que pedir desculpas. É um processo particular. Tome seu tempo. 

― E frustrante ― murmurou ele, engolindo em seco. ― Me sinto uma colcha de retalhos desleixada. Com costuras arrebentadas e rasgos. Sabe quando quer se cobrir à noite e… entra o vento pelas beiradas e furos? É a mesma sensação. De impotência. Não está tudo bem. Eu adoraria que isso não existisse, para começo de conversa, mas já que existe… parece que estou preso dentro da minha própria cabeça. Não me diga para dar tempo ao tempo, já estou fazendo isso desde… 

E nem sei desde quando. Se lembrasse, poderia determinar um ponto de partida e construir as memórias a partir de lá. 

― Estou cansado de esperar ― Lysandre sussurrou, desviando seus olhos dos dela. ― Estou cansado de compreensão.  

Srta. Perrin assentiu com a cabeça, constrangida. Afrouxando a força com que segurava sua xícara, acabou por soltá-la definitivamente, engolindo em seco. Reconhecendo ter ultrapassado uma linha, Lysandre gaguejou: 

― D-desculpe. Eu não quis…  

― Sei disso. Não se preocupe.  

― Mas você…  

― Estou aqui fazendo meu trabalho, já lhe disse. Não há palavras certas ou erradas enquanto estamos conversando. Prefiro que seja sincero do que esconda o que está se sentindo e eu seja obrigada a adivinhar.  

― Sinto muito. Não estou acostumado a expor meus sentimentos. Peço desculpas antecipadas se… ocorrer novamente. 

Confirmando que não tinha se ofendido, ela abriu um sorriso aconchegante. Lysandre procurou conter sua ansiedade concentrando-a na xícara de chá, bem como ela terminou a sua e partiu para colocá-la em cima da pia. Procurando pelo celular para checar a hora, Lysandre suspirou em frustração. Além de ter desperdiçado seu tempo, os dois continuaram andando em círculos. Nesse ritmo, iriam de mal a pior. 

― Me diga o que achou do segundo livro, não esqueça ― virando-se para ele, srta. Perrin recostou-se no mármore da pia, esparramando os braços para que lhe servissem de apoio. ― Quer dizer, isso se não devorar todos até a próxima vez que eu vier, não é?  

― É ― ele riu baixo, pegando sua bolsa e a blusa em cima do balcão. A caneta ao lado do bloco de notas foi destinada às suas mãos, mas não retornou para o meio de seus cabelos cheios. ― Farei anotações para lembrar de tudo. 

Como já de praxe, ela se abrigou sob seus ombros para caminhar até a porta. Rindo de seu comentário, srta. Perrin ergueu a cabeça para olhá-lo. Infelizmente, Lysandre se demorou a ponto de fazê-lo por um pouco mais de tempo do que seria aceitável, visto que ela riu um tanto para dentro e desvencilhou-se de seus braços com cuidado. Mas ela sempre faz isso, não faz?  

― Você aprende rápido! Vou deixar na próxima algumas lições práticas que fingi que aprendi dos terapeutas de onde trabalho. 

― Mesmo? O que o curso prático inclui? 

― Ah! Anotações em blocos de notas, cruzar as pernas quando precisa prestar muita atenção, cara de pôquer ao escutar, e a leve arqueada de sobrancelha como se estivesse julgando sua alma. 

Lysandre gargalhou pela primeira vez em muito tempo, gesto notado e apreciado pela assistente social. Sorrindo, ela acomodou-se em sua bicicleta. Após um breve aceno, srta. Perrin tomou rumo ao arranha-céus, às grandes livrarias que Lysandre tanto sentia falta e aos cabelos esvoaçantes. Se ainda escrevesse, os definiria como um bando de pássaros recém-libertos na natureza. Observando tudo de outra perspectiva, ele apenas sentou na varanda até que ela fosse um ponto distante. 

Não precisava voltar a escrever para identificar que, se antes Emma agia como um rouxinol preso, agora era ele que se encontrava cercado por barras bem firmes de metal. Acima de tudo, Lysandre não tinha a menor ideia de estar gostando do fato de apenas conseguir sair de sua gaiola quando era ela quem a estava abrindo do lado de fora. 

Soltando um longo suspiro, ao invés de entrar em casa de imediato Lysandre se deitou no chão de madeira, aproveitando-se do frio do piso para ver se resfriava as memórias por mais algum tempo. 

───── ⋆⋅☆⋅⋆ ───── 

 Nas terceira e quarta conversas mensais, srta. Perrin e Lysandre discutiram o andamento dos livros conforme eram lidos. Lysandre refez o convite para a reunião com o irmão e a cunhada, e mais uma vez recebeu o silêncio como resposta. Ao menos, podia dormir de consciência limpa de ao menos ter tentado. No fundo, apesar de chateado por não a ver mais do que uma vez na semana ⎼ correção, não muito mais do que uma hora por semana ⎼, Lysandre presenciou a estranha sensação de saber que ela estava agindo do modo correto. 

O grande dia (ao menos, era assim que o havia intitulado em seu calendário) amanheceu mais frio do que os costumeiros de outono. Lysandre vestiu o sobretudo aposentado no armário, e pôs-se a experimentar algumas das receitas que encontrou na internet ⎼ batatas recheadas, café cremoso, torta de maçã e um bolo instantâneo apenas de garantia para que se os anteriores dessem errado. Leigh e Rosa chegaram por volta das 13h30, cheios de carinho e fome excessiva. Mesmo que não o disseram em voz alta, suas reações traduziram a surpresa da proatividade do amigo. 

― Pensei que estaríamos em quatro hoje… ― Rosa começou tentando de qualquer maneira arrancar alguma informação extra do cunhado. A menina que você comentou não pode vir, querido? 

Lysandre tamborilou os dedos no copo de suco, dando de ombros.  

― Parece que não. 

― Não há problema nisso, acontece uma vez na vida de todo mundo. Não é, Leigh? 

Parando a batata no meio do caminho para a boca, Leigh piscou em plena confusão. 

― O que? 

― Um fora! Até parece que foi ontem que estávamos consolando-o quando a…  

Rosalya se interrompeu, visto o olhar de censura que recebeu do noivo. Pigarreando, ela também voltou a se concentrar nas batatas em seu prato. Lysandre intercalou o olhar entre os dois, registrando a atmosfera pesada no ar. Por isso, piscou algumas vezes e forçou um sorriso. 

― Não foi um fora, primeiramente porque não foi um encontro. 

― Não precisa ser um encontro romântico para ser um fora, querido ― se aquela era a tentativa de Rosalya em consolá-lo, Lysandre precisava admitir que ela tinha métodos extremamente questionáveis. ― E também está tudo bem, você ainda tem a nós para passar a tarde com você. 

Leigh, que possuía métodos distintos e certamente mais sutis que os da noiva, apenas sorriu e colocou uma mão no ombro do irmão. O mais novo, por sua vez, agradeceu com um meneio de cabeça. Doía mesmo que já esperasse que ela não comparecesse. Para confirmar as boas intenções, Leigh acrescentou: 

― Também podemos marcar outras ocasiões, com mais calma. 

― Não me lembro de você ter mencionado o nome dela, aliás…  

Lysandre suspirou, finalizando seu prato de batatas. Ele teve a impressão de ter escutado uma bronca curta do irmão, contudo sua atenção já não pertencia mais aos dois. Leigh e Rosa sempre conversavam com ele como se estivessem pisando em ovos ⎼ e ele sequer tinha algum palpite do porquê. Perder os pais era algo a colocar no topo da lista, mas… de que eles tinham morrido? Doença? Acidente? Ambos?  

Pensando por esse lado, foi até bom que Emma tivesse resolvido não aparecer. 

Quer dizer, ao menos era esse o pensamento predominante, até que a batida característica na porta ecoou por todo o corredor até a cozinha. Leigh e Rosa se entreolharam, com a sobrancelhas erguidas e um sorriso de escanteio. Lysandre limpou a garganta e caminhou com uma calma surpreendente até a porta, abrindo-a com cuidado. 

Emma ensaiava ajeitar o volume dos fios, bem como o suéter dobrado nas mangas, atrapalhando na sobreposição com o cardigã. Ao vê-lo, abriu um sorriso maior do que os de costume. Lysandre apoiou-se no batente da porta, ainda pensando sobre como deveria reagir àquilo. 

― Oi! Ainda dá tempo de entrar? 

― Eu… pensei que não viria…  

Ela o estudou com os olhos escuros, avaliando se suas palavras eram de rejeição, descontentamento ou apenas surpresa genuína. Abraçando o próprio corpo, ela baixou o olhar para os próprios pés.  

― Também pensei que não viria. Mas… o dia inteiro só pensei em estar aqui. Então, no último minuto, saí com a minha magrela. Meus joelhos estão me matando, porém até agora imagino que tenha valido a pena, não é…?  

O coração de Lysandre se aqueceu mediante as palavras. Uma vez que ela não era dada a sentimentalismos, aquilo fora como uma bomba-relógio entregue em suas mãos. Para não brincar de batata-quente e jogar a bomba para o alto, ele fez que sim com a cabeça e abriu mais a porta. 

― Nesse caso, queira entrar, por favor? Está um frio danado aí fora. 

― Está mesmo… agora que parei que deu para notar ― rindo de nervoso, ela permitiu que ele passasse um braço ao redor de seus ombros, abrigando-a com o calor de seu corpo. ― Sorte que aqui dentro está melhor.  

― Eu liguei a lareira. E o forno complementou. 

Ela gargalhou suavemente. Preservando o suéter, Lysandre tão somente recolheu sua bolsa à tiracolo e pendurou-a no cabideiro, recebendo um sorriso como agradecimento. Recompondo-se, ambos se apartaram por hora. Os dois pombinhos na cozinha não tardaram a estender as cabeças para avaliar a nova peça. 

― Quem é a beldade? ― Rosa sorriu largamente, levantando-se para beijar Emma dos dois lados do rosto. ― Eu amei o seu perfume. E esse cardigã é simplesmente um primor. Não concorda, Leigh? 

― Eu o fiz, querida ― Leigh riu baixo, também estendendo a mão para cumprimentá-la.  

Lysandre sorriu, visto que a aparente hostilidade sumira no mesmo momento que ela surgiu.  

― É mesmo! Você é o dono daquela loja no centro ― Emma riu, sentando-se no balcão como se fossem velhos amigos. Enquanto isso, Lysandre tomou partido em servi-la das tão faladas batatas no dia, arrancando um sorriso doce da assistente social. ― Obrigada. Não sabia que também era o designer das peças, eu as acho lindas! 

― Eu quem agradeço. Você mora por lá? 

― Ah, sim! Meu apartamento é no andar de cima do McKenna’s, conhecem? 

― Santo Deus, aquele bar é caótico ― Rosalya gargalhou, alcançando a mão do noivo para que pudessem entrelaçar os dedos. ― Como consegue dormir com o barulho? 

Lysandre sentou-se ao lado da assistente social, suspeitando que ela tinha tomado de vez seu lugar sob os holofotes do irmão e da cunhada. É claro que isso não lhe causou ciúmes; pelo contrário, foi-lhe um motivo de felicidade deixar de ser o centro das atenções. De certa forma, agora também poderia dedicar sua porção de atenção para o que Emma tinha a dizer. 

― É esse meu maior segredo: eu não durmo, de fato, apenas finjo que sim. Isso que estão contemplando é apenas a casca do que já foi um corpo saudável. 

Os três riram, permitindo que ela desse a primeira garfada em sua batata recheada. Emma o fez com deleite, abrindo um sorriso de bochechas cheias. Lysandre desviou o olhar da cena, fornecendo alguma privacidade em meio a tantos olhares novos. Infelizmente, Rosalya prosseguiu com suas investidas: 

― Que grosseria a nossa! Já fomos conversando e sequer fomos apresentados. Me chamo Rosalya, e este é Leigh, meu noivo. É um prazer conhecê-la…?  

Emma ergueu uma sobrancelha com sutileza, que Lysandre interpretou como eu sei exatamente quem são. No entanto, deixou o garfo e a faca no prato, enxugou a palma das mãos na calça e deixou-as por lá mesmo quando anunciou: 

― É mesmo. Que falta de tato a minha… meu nome é Emmalyn. O prazer é todo meu. 

Então, houve o estalo. Foi como se tudo que Lysandre estivesse segurando dentro de si voltasse em velocidade recorde, provocando-lhe inclusive uma ânsia. Lynn. Esta era a palavra-chave para o motivo de não saber onde procurar. Fora ela o estopim de seu cataclismo mental. Era ela que seu cérebro queria evitar a todo custo. E desde quando Emma se chamava Emmalyn? Melhor ainda, quando saíra de srta. Perrin para apenas Emma? 

Segurando o próprio garfo com força, Lysandre mal notou quando sua pressão começou a cair. Por sorte, ao seu lado estava a mulher cruelmente observadora, que estendeu uma mão até a dobra de seu braço com cuidado. 

― Está tudo bem? Está mais pálido que o normal…  

― Ah, sim ― disfarçou ele, buscando o copo de água na mesa. Tomou um gole, fingindo despreocupação. ― Eu… acho que coloquei muito tempero na minha. O sal… minha nossa. 

Leigh e Rosa riram da confusão do amigo, porém Emma permaneceu fitando-o com insistência. Deu-se por vencida apenas quando ele retribuiu o gesto. Os olhos bicolores eram intensos e pouco sutis em matéria de garantir que estava bem; pelo contrário, mais se assemelhava com um oráculo analisando o passado e o futuro. Por este motivo, Emma limpou a garganta e voltou a atenção aos outros convidados. 

― Como vocês ficaram amigos, Emma? ― diferentemente da noiva, Leigh era sincero em seus questionamentos. 

― Nos esbarramos por acaso ― ela sorriu, voltando ao estado de poucas palavras. ― Nós… fazemos companhia um para o outro, costuma funcionar bem então eu sempre estou voltando. 

Lysandre agradeceu silenciosamente por Emma não ter mencionado a parte de ser ela sua assistente social. Para ele, não se tratava de mentira, mas sim de omissão. Era bom que eles se preocupassem, não o tratassem como se tivesse algum distúrbio retrógrado.  

E era exatamente por este motivo que não poderia contá-la que já era possível navegar entre suas memórias sem se afogar. Porque precisava dela por perto. E Emma só estava ali para fazer companhia a um desmemoriado patético, não por Lysandre. Não é…? 

― Foi você quem o fez cozinhar? ― Rosalya gracejou. ― Porque, se for, precisamos agradecê-la duas vezes! 

― Talvez eu tenha dado um empurrãozinho, nada demais. Não é justo levar os créditos quando não dei mais que uma sugestão rasa. 

Após o almoço, os três trocaram conversas neutras, ninguém além de Rosalya querendo ultrapassar o limite da pessoalidade. Lysandre ocupou-se de ouvir, assimilar as memórias novas e fingir que tudo ia bem. No entanto, enquanto novos amigos eram feitos, os maremotos de pensamento chacoalhavam a noção de tempo de Lysandre. 

Primeiro, Lynn foi embora. Enquanto ele insistia para que desse certo, ela argumentara que a distância seria impossível de se suportar. Na época, Lysandre fazia parte do time dos românticos esperançosos, então para ele foi um baque de hipocrisia. Duas pessoas que se amavam deveriam ficar juntas independente dos empecilhos, não? Porque Lysandre permaneceu ao seu lado enquanto se mudava para longe. E ele fizera o favor de afastá-la enquanto o pai morria numa cama de hospital. Então, quando a mãe também partira, Lysandre já não tinha mais ninguém.  

Leigh tentara insistir para que ficasse ao seu lado na cidade, mas a impotência o manteve isolado no interior. Daí, ele apenas adormeceu. Abandonou da própria mente uma ex-namorada, pai e mãe. Consequente, irmão, cunhada e amigos. E nenhum deles sentia falta. Não falta suficiente para fazer visitas e ligações mais frequentes. Qual teria sido a última vez que Castiel o telefonou? Com o sucesso crescente da banda, não lhe sobrava tempo para o melhor amigo…? Lysandre também suspeitava que não fora apenas um sintoma da amnésia; não lhe vinha à cabeça a última vez que tiveram contato. 

Grunhindo em decorrência das lágrimas que acumulavam no canto dos olhos, ele voltou o foco para as conversas paralelas: 

― … lavá-las, para tirar um pouquinho do peso de me atrasar ― Emma dizia, sorrindo. Daí, virou-se para o anfitrião e brincou: ― Concorda, Lysandre? 

― Eu? Eu sou louco de discordar? 

Rosa e Leigh riram, adiantando-se para abraçar o amigo. Apesar de hesitar, Lysandre afagou suas costas com carinho, apertando o abraço por um pouco mais de tempo. Um sorriso passou por entre seus lábios, bem como nos de Emma. Essa é a sensação de lar, por mais breve que seja.  

― Até mês que vem, então? ― Leigh sorriu, oferecendo um tapa sutil em seu ombro. 

― Até. Obrigado por hoje. 

Quanto tempo eu perdi entre as batatas e agora? Troquei a amnésia por lapsos temporais? 

Desta vez, Emma acompanhou-o até a porta, acenando junto a ele enquanto o utilitário esportivo partia para a cidade. Ambos compartilharam um suspiro cansado, para depois rirem da coincidência junto. Emma sorriu para ele, recostando-se no batente.  

― Eles são legais, não são? 

― Você quis dizer malucos ― Lysandre riu, conduzindo-a de volta para a cozinha. 

― Quando eu era adolescente, a moda era citar Alice e dizer que “as melhores pessoas são assim” ...  

― Você também é maluca. 

Emma suspirou de modo cômico, esfregando as palmas das mãos. Após a pausa dramática, ergueu uma sobrancelha. 

― As melhores pessoas são assim. 

Lysandre gargalhou com gosto, tomando para si o pano de prato. Entendendo o recado, Emma pôs-se a lavar a louça como havia sugerido. Por sorte, era apenas gordura e marcas de batom. Muito provavelmente, micróbios também… não resistindo a um arrepio, ele riu do próprio pensamento. 

Pensamento. Santo Deus, isso seria difícil. 

― Não precisa enxugar agora, deixa escorrendo ― Emma aconselhou, tomando o pano de suas mãos para poder enxugá-las.  

― Por que? 

― Porque não tomamos café e eu estou farejando café. 

Lysandre olhou para o fogão e o forno, com o café cremoso e os doces intocados. Grunhindo de frustração, ele se sentou na cadeira de uma forma patética. Massageando as têmporas, murmurou: 

― Ah, não, eu esqueci o café…  

Notando seu desconforto, Emma franziu os lábios e deixou o pano sobre a pia. Tomando para si a tarefa de servir o café, alcançou as xícaras na prateleira alta e serviu-as com cuidado. Em seguida, cortou um pedaço de cada ⎼ duas tortas e dois bolos ⎼, equilibrando os pratinhos com destreza. Sentando-se junto a ele, Emma empurrou com cuidado o conjunto “torta de inverno para desmemoriados”.  

Naquele momento, ele quase admitiu a verdade. Por um minuto, quis estender a mão e contá-la sobre tudo. Confiava nela, no entanto aos seus olhos nunca passaria de um paciente. Por isso, assentiu com a cabeça e optou por uma resposta neutra: 

― Obrigado…  

― Não esquenta. Estou aqui para ajudar.  

― É claro, é claro… desculpe.  

Erguendo a xícara aos lábios, Emma deleitou-se com o café. Lysandre pouco se surpreendeu ao notar estar dando mais atenção à mulher do que ao próprio café, contudo não poderia expor isso a ela sem se comprometer. Então, imitou seu gesto em silêncio. Arriscando-se a dizer mais do que o necessário, ele comentou: 

― Está muito quieta hoje. 

― Estou? Ah, perdoe-me. É que existe uma linha tênue entre as visitas de semana e as… adicionais sem compromisso. 

― Entendi. Então a srta. Perrin é tagarela e a Emma é a sua versão quieta? 

― Olhando por esse lado, você me pegou de calças curtas…  

Lysandre riu suavemente dos termos usados. Não resistindo ao impulso de abusar da própria sorte, também pigarreou. 

― Por que veio, Emma? Não é do seu feitio quebrar as regras. Não tinha um tipo de ética profissional que a impedia de me ver? Sem ser nos dias de consulta? Qual foi o motivo real de ter se dado ao trabalho de vir até aqui e…  

― Porque me pediu para vir ― ela sussurrou, interrompendo-o pacificamente. ― E porque me importo com você. Vim porque sabia que era importante para você e… acima de qualquer ética profissional, o amor aos… amigos é… m-mais importante. 

Ele fez que sim, encarando a própria xícara. Disfarçando, tomou um gole da bebida, feliz por ter ainda ter algo que lhe aquecesse a alma. Sentia o olhar inquietante de Emma perscrutando-o sem cuidado ⎼ velhos hábitos nunca morrem, não é? Erguendo os olhos para ela, pegou-a no flagra.  

Depois de tanto ouvir que possuía olhos fantásticos por conta da heterocromia, Lysandre ainda os considerava opacos e tristes em demasia. Porém, ao olhar no fundo dos de Emma enxergava além de comuns olhos castanhos; enxergava o brilho vivo de uma alma que tinha de tudo para dar certo. Para ser livre de amarras como perder tempo visitando quem não tinha conserto. Pessoas como ele. Olhos que faziam-no sorrir, feliz por ter algum tempo extra em sua presença. 

― Está muito quieto hoje ― Emma devolveu a brincadeira, apoiando os cotovelos na mesa e o queixo nas palmas das mãos.  

― Estou? Ah, perdoe-me, é que há uma linha tênue entre o que penso e o que deixo de dizer. 

― Sabe muito bem o que penso de conter o que se está pensando, Lys. 

Ele riu fraco, ao passo que Emma beliscava um pedaço da torta de maçã. Esperou até que ela aproveitasse mais um pouco da grande bomba de glicose, antes que se arrependesse de, além de falar de mais, matá-la engasgada. Afinal, ela já estava acostumada a grandes pausas narrativas da parte de Lysandre.  

― Bem… estou quieto porque estou pensando em você, Emma. Pensando muito. 

Emma pausou o garfo na metade do caminho até a boca, voltando seu olhar para o nada. Após alguns segundos de silêncio constrangedor, Lysandre se questionou se agora não era a hora de tomar o café quente para queimar as cordas vocais e jamais voltar a se pronunciar novamente. Por sua vez, Emma pigarreou e devolveu o garfo para o prato, unindo as mãos e entrelaçando os dedos uns nos outros.  

― Eu falei demais, não falei…? 

― Não, eu imagino que tenha dito o suficiente ― ela riu fraco. ― Mas agradeço pela sinceridade. 

― E-eu vou entender se… se não…  

Lysandre se interrompeu, mordendo com força os lábios inferiores. Felizmente, Emma já havia trocado de lugar com a srta. Perrin; sua postura já havia se ajeitado na cadeira com cuidado, perscrutando-o com as pupilas dilatadas. Ou poderia ser apenas Lysandre que estivesse vendo demais ⎼ olhos escuros nesse nível? Fica difícil dizer quando de fato não estão com as pupilas dilatadas ⎼, ansioso para que dissesse algo decisivo no bom sentido. 

― Temo que isso que esteja sentindo seja transferência, e não… ― pigarreando uma vez mais, Emma recusou-se a enunciar o sentimento. ― É normal e até aceitável, com certa lógica. Passamos bastante tempo juntos nos últimos meses, você… tem me contado de como se sente, me vê como alguém de confiança e…  

― Emma, por favor. 

Mesmo sendo uma sentença curta, as palavras de Lysandre atingiram a assistente social como saraivadas de flechas ardentes. Ele suspeitava que, se estivesse de pé, aquele seria o momento para cambalear e buscar refúgio até que o peito se reconstituísse; ou, ao menos cicatrizasse. 

Por favor, Emma. Não me diga como devo me sentir. É tudo que todos tem feito no último ano. Que se dane a lógica, meu Deus…  

― Eu… acho que foi um longo dia ― ela sussurrou, tirando-o de seus devaneios.  

― Foi mesmo.  

― E penso que já vou indo, antes que esfrie mais. Tudo bem? 

Vá embora, como sempre. É o cronograma de praxe, não é? 

― Sem problemas. O que for melhor para você. 

Assentindo com a cabeça, ela recolheu os poucos pertences que trouxera. Já Lysandre encarregou-se de fitar o prato intocado com a torta e o bolo, bem como suspirar em frustração pela atitude de minutos antes. Emma não tinha culpa de tratá-lo com gentileza e ser mal-interpretada em resposta, certo?  

Afastando-se para uma distância saudável, Lysandre acompanhou-a até a porta. Sem a mão apoiada em suas costas, parecia… errado. Por isso, Lysandre respirou fundo antes de indagar: 

― Então… nos vemos semana que vem?  

Emma confirmou com a cabeça, sorrindo para ele. Contudo, o brilho característico de seus olhos já não existia mais. Abrigando-se do frio atrás do batente, Lysandre acenou para ela. De sua bicicleta com cestinha, ele pensou que Emmalyn ainda parecia saída de um filme clichê romântico ⎼ agora, no entanto, parecia muito mais um daqueles que não acabava bem para o protagonista. 

Parece que a memória ter retornado é o menor de dois males, afinal. 


Notas Finais




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