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História O milagre de uma lágrima 8 ANOS DEPOIS - Premonições.


Escrita por: NanyBecks

Notas do Autor


Podemos nós evitar o destino?

Capítulo 14 - Premonições.


Uma manhã chuvosa tomou conta do Rio de Janeiro e pegou muita gente desprevenida, ninguém esperava uma chuva torrencial no meio da madrugada. Clarisse passou a noite em claro apreensiva com as visões que tivera durante o dia. Era muito difícil para ela lidar com tudo que via sem saber o que de fato estava para acontecer. Uma angústia ela sentiu ao lembrar-se que mais uma vez estava sendo tomada por todos aqueles sentimentos incontroláveis que nunca soube como proceder. Não conseguia entender porque todas aquelas situações a tomavam sem que nada pudesse fazer, não havia nada de especial em ter visões conforme Ventura sempre dizia, ao contrário, isso a afastava a cada dia mais dos colegas que a viam como uma criança esquisita. Por diversas vezes Clarisse tentou contato com o padrinho sem sucesso, estava tão ocupado que quando viu as ligações no celular já eram dez horas da noite. Preocupado ele ligou para Érika que lhe informou não ter tomado conhecimento do motivo da ligação feita do telefone fixo, só Clarisse poderia ter procurado-o e por ser tarde ele não insistiu em falar com a afilhada, conversaria com ela no outro dia.
            Curiosa, Érika procurou pela filha para perguntar a respeito da ligação feita, ela não tinha permissão para ligar para ninguém da família sem antes comunicar um dos pais. Sem querer dar detalhes a mãe sobre o motivo de ter procurado Ventura, Clarisse desculpou-se dizendo estar apenas com saudades do padrinho. De nada adiantaria contar o verdadeiro motivo de tê-lo procurado, sua mãe além de não acreditar, lhe daria uma boa bronca por ficar incomodando Ventura com questões tão triviais.

 

COLÉGIO VICENTE MARQUES (C.V.M)

 

 A turma do segundo ano do Ensino Fundamental estavam em uma das salas de aula fazendo um trabalho de português, Bárbara professora do módulo levou algumas revistas para que eles pudessem recortar e colar em uma cartolina algumas palavras.
 

BÁRBARA: Hoje vamos fazer um trabalho diferente. Quero que façam um grupo de 4. Vou dar algumas revistas e vocês vão recortar algumas palavras dissílabas e proparoxítonas. -Disse enquanto entregava algumas revistas aos alunos-

     Clarisse, Filipi, Analise e Natália uniram-se em uma mesa redonda próxima a porta enquanto os demais alunos se juntaram em outros cantos da sala para realizarem o trabalho solicitado.

FILIPI: Vamos procurar. -Abriu a revista-
CLARISSE: Deixa que eu recorto as palavras. -Pegou a tesoura sobre a mesa-
 

Analise e Natália ficaram responsáveis por fazer a colagem das palavras na cartolina banca assim que os colegas terminassem de procurar e recortar todas as palavras que encontrassem.
           Clarisse que folheava junto com Filipi uma revista deparou-se com uma notícia que a deixou muito amedrontada.

 

Título da notícia:

 

"Polícia prende assaltante em um tiroteio na Rocinha"

 

Assim que leu o titulo da matéria em um preto garrafal, Clarisse imediatamente foi tomada por sua visão, porém, naquele momento ela tornou-se clara o suficiente para dar todo o conteúdo significativo do que realmente representava tantas sirenes e polícias. Clara sofreria um assalto e levará um tiro em um assalto que a deixará em risco de vida no hospital. 
          Assustada com o que acabara de descobrir Clarisse parou de folhear a revista, paralisou seu olhar e começou a chorar em desespero.
FILIPI: Clarisse o que foi? -Perguntou ao ver a amiga imóvel e chorando-
ANALISE: Você está passando mal? –Preocupou-se ao ver a colega paralisada-

 

Clarisse não respondeu a pergunta de Analise.

FILIPI: Tia, a Clarisse está chorando. -Chamou por Bárbara um pouco a frente-

Bárbara que acabara de entregar a última revista a um de seus alunos, voltou-se para Filipi assim que o ouviu chamar e aproximou-se de Clarisse preocupada com sua afeição.

BÁRBARA: Clarisse o que aconteceu? -Tocou seus cabelos- Fala para mim o que aconteceu? 

 

Clarisse continuou com seu olhar fixo na notícia que vira na revista que sequer ouviu Bárbara chamar seu nome.

- Clarisse! –Chamou mais uma vez-

 

O chamado de Bárbara tirou Clarisse do transe e suas visões cessaram. Ela assustada com tudo que vira olhou para sua professora e em um profundo desespero saiu correndo da sala.
ANALISE: O que deu nela? -Perguntou sem entender o comportamento da amiga-
BÁRBARA: Crianças fiquem aí que eu já volto.
TIAGO: Para mim essa menina é doida! -Cochichou com um dos amigos com uma pitada de maldade-

 

Clarisse que saíra correndo da sala sentou-se em um dos bancos espalhados pelo corredor. Sentia-se sufocada com tudo que vira e principalmente por saber o risco que a irmã correrá ao sofrer um assalto que não poderá evitar.
            Bárbara abriu a porta da sala à procura de Clarisse e ao vê-la no final do corredor aproximou-se. 

BÁRBARA: Clarisse o que aconteceu que você saiu correndo da sala? -Sentou-se ao lado de sua aluna-
CLARISSE: Engoli um osso de galinha. -Respondeu ofegante passando a mão na garganta-
BÁRBARA: Osso de galinha? Quando? 
CLARISSE: Desde domingo e ele não saiu. Quando ele agarra na minha garganta é porque vai acontecer alguma coisa ruim com a Clara. -Chorou em desespero-
BÁRBARA: O que pode acontecer com ela?
CLARISSE: Um assalto. Tinha polícias e sirenes.
BÁRBARA: Não estou entendendo nada meu amor. Acalma-se. -Acariciou o rosto de Clarisse que estava coberto de lágrimas-
CLARISSE: Eu tive uma visão. A Clara corre perigo. -Fitou Bárbara em desespero-
BÁRBARA: Tente se acalmar. Foi só uma visão. -Disse serena-
CLARISSE: Você também não acredita em mim.
BÁRBARA: Não precisa chorar assim meu amor.
CLARISSE: Eu quero ir para casa.
BÁRBARA: Já está quase terminando a aula.
CLARISSE: Eu quero ir embora agora! -Alterou o tom de voz-

 

Bárbara suspirou pesarosa, Clarisse estava em mais uma de suas "crises" e de nada adiantaria suas argumentações na tentativa de que ficasse bem. Quando sua aluna se desespera por conta de suas visões a única coisa que pode ser feita é levá-la para casa para que se acalme.

BÁRBARA: Vamos falar com a Camille.

 

Bábara deu as mãos para Clarisse e seguiram pelo longo corredor até a sala de Camille.

CAMILLE: Entra. -Disse ao ouvir uma batida na porta-

 

Bárbara abriu a porta e adentrou a sala com Clarisse que não conseguia conter seu choro.

BÁRBARA: Camille eu estou com um probleminha aqui. A Clarisse está chorando e quer ir embora.
CAMILLE: Aconteceu alguma coisa? -Perguntou preocupada-
BÁRBARA: Não sei. Ela começou a chorar de repente.

 

Camille levantou-se da mesa onde estava e aproximou-se de Clarisse. Sua aluna estava mais uma vez tendo suas "crises" que ninguém sabia como lidar.

CAMILLE: Clarisse você não quer conversar um pouquinho com a tia?
BÁRBARA: Vou voltar para a sala. Deixei a turma sozinha.
CAMILLE: Obrigada Bárbara. -Sorriu agradecida-

 

Bárbara retirou-se da sala fechando a porta.

- O que está acontecendo Clarisse?
CLARISSE: Tenho um osso de galinha agarrado na garganta desde domingo.
CAMILLE: Se eu te disser que é apenas uma sensação ruim você acredita em mim?
CLARISSE: Não porque eu sinto ele aqui. -Apontou para a garganta-
CAMILLE: Então me diz como ele foi parar aí.
CLARISSE: Não sei. Ele agarra de vez em quando e por mais que eu tente não consigo engolir.
CAMILLE: Você sabe por que ele agarra?
CLARISSE: Sempre que... 

 

Clarisse pausou sua fala porque não queria dizer a Camille o que realmente havia visto em relação ao que acontecerá com a irmã.

CAMILLE: Continua. -Insistiu-
CLARISSE: Sempre que vai acontecer alguma coisa ruim com a minha irmã. -Fitou Camille em desespero-
CAMILLE: Que tipo de coisa ruim?
CLARISSE: Coisas ruins e eu não quero que aconteça. Tem muitos tiros, polícias, bandidos, armas e ela corre perigo. Tenho que protegê-la. Me leva para casa tia! -Desesperou-se- Me leva! -Insistiu chorando-
CAMILLE: Se acalma querida. Pára de chorar. -Disse serena- Como você sabe que algo vai acontecer com a Clara?
CLARISSE: Eu vi. Ela corre perigo! Liga para a minha irmã tia Camille! Liga para ela! -Apelou desesperada-
CAMILLE: Não posso ligar meu amor. Sua mãe não me deu permissão para ligar para a Clara.
CLARISSE: Liga para a minha irmã tia, por favor! -Implorou-

 

Camille percebeu o desespero de sua aluna e pegou sobre sua mesa um copo com água. Precisava que Clarisse se acalmasse ou armaria ali mesmo um escândalo chamando a atenção de toda a escola.

CAMILLE: Bebe um pouquinho. -Entregou-lhe o copo-
CLARISSE: Não quero água! -Empurrou o copo com violência- Quero ir embora! -Gritou-
CAMILLE: Se comportando assim não vai resolver a situação. -Comentou colocando o copo sobre uma mesa-

 

Irritada, Clarisse agarrou Camille pelo braço e insistiu que ligasse para Clara.

CLARISSE: Liga para ela! Liga para ela!
CAMILLE: Hei Clarisse! -Conteve-a olhando-a nos olhos- Se acalma.

 

Clarisse que segurava o braço de Camille com desespero soltou-o assim que a olhou. Ela conseguiu com sua voz firme fazer com que se acalmasse.

CLARISSE: Eu quero ir embora tia! -Disse chorando- Me deixa ir embora.
CAMILLE: Eu vou ligar para a sua mãe e peço para ela vir te buscar está bem? Acalma-se.

 

Clarisse acenou com a cabeça enquanto sentia suas lágrimas escorrerem por seu rosto. Camille dirigiu-se até sua mesa e pegou o celular para ligar para Érika, não havia que pudesse fazer naquele momento a não ser liberar sua aluna para casa. 

_______

            Érika e Clara foram as primeiras a chegar à Climédia, elas deixaram Clarisse na escola e se dirigiram para a clínica, ao menos Érika tinha muito trabalho e ficaria em sua sala por toda a manhã fechando algumas finanças.  Ventura e Angélica chegaram meia hora depois e não tiveram tempo nem de olhar o celular, tinham muitos pacientes para atender. Angélica muitas vezes queixou-se da quantidade de horas que passava no consultório do pai sem ver a luz solar, nem podia sair para dar uma volta já que chovia torrencialmente e reclamando ela ficou até o horário do almoço. Ele já cansado de ouvir as lamúrias da filha a respeito dos atendimentos de neurologia questionou-a do interesse em estar acompanhando atendimentos de uma área da qual nunca se interessou, faria muito mais sentido que estivesse junto a Adalto na Clínica Geral do que na Neurologia que nunca sequer a obrigou estar e a dispensou dos atendimentos. Se as pessoas nascem com determinadas aptidões, clínica não era nem de longe a melhor opção para aquela garota reclamona, ela era impaciente demais para ficar trancafiada entre quatro paredes. Angélica mais do que depressa justificou o interesse pautado em ficar ao lado do pai, pois admirava a paciência e dedicação que tinha com aqueles pacientes que adentravam em seu consultório e ficavam por horas contando seus problemas como se ele fosse um psicólogo e não um médico. Clara por sua vez nem viu a hora passar acompanhando os atendimentos obstétricos com Daniel, aprendera muitas coisas apenas observando os seus atendimentos e ajudando-o a realizar pequenos procedimentos. Era realmente uma pena que seu amor pela pediatria falasse mais alto.

 

RESTAURANTE VERO.

 

Clara, Ventura, Angélica, Érika e Leonardo almoçavam no Vero, eles conseguiram sair meia hora mais cedo do que de costume. Daniel teve que realizar um parto antecipado e não pôde desfrutar da companhia dos companheiros deixando Clara com tempo livre o que causou indignação em Angélica, Ventura nunca lhe deu qualquer trégua nem para tomar uma água, muito mal ela conseguiu responder as mensagens deixadas por Eduardo em seu WhatsApp e não deixou de comentar o quando o namorado deveria sofrer como estagiário na mão do pai.
              A conversa que girava em torno da reclamação de Angélica por seu pai ser extremamente exigente tomou outro contorno ao voltar-se para os preparativos do casamento de Clara que falava sobre sua festa com muito entusiasmo. Sempre desejara casar como mandava o figurino social e estava a 1 mês de realizar seu tão desejado sonho. Ela nem podia acreditar que já havia se passado cinco anos desde que noivaram.

VENTURA: Não vai comer mais nada filha? -Perguntou ao ver a filha comer apenas salada-
CLARA: Se eu engordar eu não entro no meu vestido. -Comeu um alface-
ANGÉLICA: Impossível alguém engordar comendo só mato. –Intrometeu-se dando uma garfada em seu bife no prato-
VENTURA: Você vai ser a noiva mais linda do mundo e a Geli a madrinha. -Sorriu olhando para as filhas que almoçavam uma ao lado da outra-

 

Eduardo entrou no Vero e com o olhar procurou pela namorada, Angélica havia dito por mensagem que saiu meia hora mais cedo do horário normal e iria para o Vero almoçar e ele na intenção de fazer uma surpresa dirigiu-se até lá. 
           Ventura olhou para a porta principal e viu o genro se aproximar, ele que vinha por trás de Angélica pediu ao sogro de que fizesse silêncio e tampou os olhos da namorada. Ela que sentiu uma mão sobre seus olhos passou as mãos e logo suspeitou ser Eduardo, só ele seria capaz de fazer aquele tipo de brincadeira.

ANGÉLICA: Eduardo Shuverfest. -Respondeu com segurança-
EDUARDO: Como você faz isso? -Surpreendeu-se e beijou-lhe os lábios-
ANGÉLICA: Tenho alguns segredos escondidos. -Comentou misteriosa- O que está fazendo aqui? Achei que estivesse no CAIS.
EDUARDO: Só passei lá para assinar alguns papéis. 
VENTURA: Senta aí Eduardo e almoce com a gente.
EDUARDO: Obrigado professor. -Sentou-se em uma cadeira ao lado de Angélica-
LEONARDO: Eu acho tão engraçado o Eduardo te chamar de professor.
VENTURA: Todo mundo acha.

 

O garçom que vira Eduardo chegar aproximou-se da mesa onde estavam.

GARÇOM: Posso ajudar?
EDUARDO: Traz esse prato para mim? -Mostrou uma foto no cardápio-
GARÇOM: Claro! -Anotou o pedido no celular e retirou-se-
ANGÉLICA: Onde você estava ontem a noite que tentei falar com você e não consegui? Usou de seu tom desconfiado-
EDUARDO: Dormindo.
ANGÉLICA: E se eu estivesse com uma insuportável dor de cabeça e sem ninguém para me ajudar?
EDUARDO: Acho isso impossível, mas você iria ligar para a Helen e ela me daria o recado. -Sorriu-

    

 Ouviu-se um toque no celular.

ÉRIKA: É o meu. -Comentou ao ver o seu celular tocar sobre a mesa- Façam suas apostas, Carlos ou Lene?
VENTURA: Lene acertei?
ÉRIKA: Não é nenhum dos dois. -Estranhou ao ver o número do CVM- Alô? -Atendeu-
CAMILLE: Érika é a Camille! -Identificou-se do outro lado da linha- Eu estou com a Clarisse e ela não está se sentindo muito bem, acho que precisa ir para casa. Você pode vir buscá-la?
ÉRIKA: Claro, mas o que aconteceu? -Preocupou-se-
CAMILLE: Eu prefiro conversar com você pessoalmente.
ÉRIKA: Eu já estou indo. Obrigada. Tchau. -Desligou-
CLARA: Quem era?
ÉRIKA: Era... é... -Enrolou-se-

 

Érika não queria dizer a Clara que a ligação que recebera era de Camille dizendo ter tido problemas com Clarisse. A filha sempre fica muito preocupada quando a irmã apresenta algum problema e se falasse era certo de que deixaria de almoçar para acompanhá-la ao CVM.

CLARA: Mãe? Quem era? -Insistiu ao perceber o silêncio da mãe-
ÉRIKA: Era a Cláudia da enfermagem do Vitte. 
VENTURA: Problemas?
ÉRIKA: Acho que sim. Vou ter ir lá agora.
VENTURA: No horário de almoço?
ÉRIKA: Preciso ir gente. -Levantou-se- Bom apetite para vocês. Beijo filha. Beijo Geli. Tchau Edu. -Disse apressada-
EDUARDO: Tchau Érika.
VENTURA: Tchau miss responsabilidade. -Brincou-

 

Érika agitada saiu pela porta principal do Vero, já suspeitava que Clarisse teve mais uma vez suas visões que sempre a deixa muito descontrolada, Camille não ligaria para ir buscá-la se não fosse alguma coisa extremamente séria. 
           Clara ficou confusa ao ver sua mãe sair apressada do restaurante, ela não sairia daquela forma apenas para resolver um problema no Vitte faltando meia hora para o horário de expediente, Marlene estava lá e poderia segurar as pontas até que chegasse. Sem dúvida Érika não quis dizer o que de fato estava acontecendo para não preocupá-la e encucada ela ficou até Ventura chamar por seu nome para que continuasse a contar sobre os planos para a lua de mel.

____

 

Erika foi até seu carro na calçada em frente ao Vero, ao fechar a porta ela retirou seu celular da bolsa e mandou uma mensagem de voz no whatsapp para Marlene avisando que chegaria atrasada no Vitte, pois tinha que resolver um problema com Clarisse na escola.  Ela ligou o som e saiu com o carro em direção ao CVM, por ficar no mesmo bairro que o Vero não demoraria a chegar. Enquanto dirigia Érika não deixava de pensar com quem seria a tragédia que Clarisse estava premunindo, a filha não comentou nada com ela, mas desde o dia em que quase foi atropelada na rua do condomínio tem percebido-a apreensiva e distante. Ela chegou a perguntar por duas vezes o que estava acontecendo, mas Clarisse negou a responder dizendo ser apenas saudade da irmã que nunca fica em casa para dar-lhe atenção.
             Por ser cética, Érika faz de tudo para não acreditar que todas as questões com o sobrenatural que Clarisse apresenta nada têm de verdade além de mera imaginação que acaba por ocasionar coincidências, pelo menos é assim que ela tenta acreditar mesmo sabendo que nada é como pensa. O que Érika não quer é assumir que a filha estava ali mostrando para ela que todo o seu ceticismo na verdade não se mantém, ela consegue premunir situações que acontecem e ela não podia mais continuar tratando todos aqueles fenômenos como meras coincidências.
                Um choque de crenças se deu em Érika desde que Clarisse nasceu. Além de ter medo de tudo que dizia respeito ao sobrenatural ela não podia assumir depois de quase 50 anos que tudo aquilo que acreditava não existir acontecia exatamente com sua filha sem que ela nada pudesse fazer, já havia passado por situações semelhantes com Clara que era extremamente intuitiva. A filha conseguia captar de longe qualquer sentimento das pessoas que lhe eram próximas, mas Érika nunca viu essa sensibilidade de Clara como algo que dizia respeito ao sobrenatural, ela era apenas uma menina sensitiva e nunca deu a devida atenção. Clara por ser espírita sempre conseguiu compreender tudo o que sentia e porque sentia sem precisar contar com a mãe para lhe dar apoio. Mesmo que suas intuições lhe trouxessem algum grau de sofrimento nunca chegou a se desestabilizar com elas, ela tinha plena consciência de que nada podia fazer em relação a tudo que sentia, mas Clarisse além de não ter conhecimento de espiritismo era nova demais para lidar com todos os fenômenos que apresentava. 
                   Se o destino enviou Clara com toda sua sensibilidade para que Érika tomasse conhecimento de que existia mais coisas no universo além daquilo que seus olhos viam ela parece não ter aprendido corretamente a lição e ganhou de presente Clarisse que parece ter vindo ao mundo com toda as suas especificidades apenas para colocar em cheque todos as suas crenças construída a décadas. Oito anos se passaram e ela ainda continua acreditando que a filha mais nova não passa de uma psicótica em potencial mesmo que Ventura lhe diga que Clarisse não tem qualquer característica para desenvolver psicose, mas ela prefere apoiar-se nessa possibilidade a aceitar que todas as suas crenças sobre a inexistência de algo sobrenatural estavam erradas.

 

COLÉGIO VICENTE MARQUES (C.V.M)

 

Érika estacionou o carro na calçada em frente ao CVM, já havia passado o horário das aulas e o colégio estava vazio. Os alunos que ali estavam aguardavam as aulas extracurriculares como, dança, futebol e o curso pré-vestibular. Ela desligou o som, saiu do carro, trancou-o, entrou no jardim externo e foi até Firmino que cuidava da sua pequena plantação.

ÉRIKA: Oi Firmino! -Cumprimentou- A Camille me ligou. Parece que a Clarisse está passando mal.
FIRMINO: Pode entrar Érika. Ela está na direção.
ÉRIKA: Obrigada. -Agradeceu com um sorriso-

 

Érika adentrou a recepção, cumprimentou a recepcionista e seguiu pelo longo corredor até a sala de Camille.

CAMILLE: Pode entrar. -Disse assim que ouviu uma batida na porta-

 

Érika abriu a porta. Clarisse que estava sentada em uma das cadeiras ao lado de Camille levantou-se e correu para abraçar a mãe assim que a viu entrar.

CLARISSE: Mãe! -A abraçou-
ÉRIKA: O que aconteceu filha? -Preocupou-se-
CLARISSE: A Clara mãe! -Disse em desespero- Cadê ela? Por que ela não veio com você? -Segurou as mãos da mãe e fitou-a amedrontada-
ÉRIKA: Ela está almoçando com o Ventura e a Angélica no Vero. 
CLARISSE: Ela está bem mãe? Está?
ÉRIKA: Está bem sim filha.
CLARISSE: Deixa eu falar com ela?

 

Érika agachou-se e olhou para Clarisse. A filha estava muito desesperada e teme que aconteça alguma coisa com Clara.

ÉRIKA: O que está acontecendo Clarisse?
CLARISSE: Quero a Clara mãe! Quero ficar com ela. -Disse chorando-
ÉRIKA: Ela está trabalhando filha. O que está acontecendo? Me fala! -Usou de um tom firme-
CLARISSE: Minha irmã vai... 

 

Clarisse pausou mais uma vez sua fala. Não tinha forças para dizer a mãe tudo que havia visto em relação a irmã.

ÉRIKA: Vai o quê? Fala logo! -Gritou-
CAMILLE: Calma Érika. Ela está nervosa. -Interveio serena-
ÉRIKA: Nervosa estou eu agora. -Respondeu enquanto olhou para Camille-
CLARISSE: O osso de galinha está na minha garganta de novo e não me deixa falar. Me leva embora mãe! -Sacudiu a mãe segurando seu braço- A Clara! -Gritou-
ÉRIKA: O que tem a Clara?
CLARISSE: Ela corre perigo! Eu sinto! Eu vejo! Quero falar com ela! -Desesperou-se-

 

Érika deu-se conta de que a filha estava mais uma vez premunindo o que iria acontecer com a irmã e assustou-se. Ela nunca conseguiu lidar com todas as situações que a filha premunia sem poder fazer nada. Saber que alguma coisa grave acontecerá a Clara ainda mais próximo ao casamento a deixou totalmente transtornada.

ÉRIKA: Sua irmã está trabalhando e você sabe que não pode falar com ela agora! -Interveio rude- Pára de chorar imediatamente Clarisse! -Gritou-

 

Clarisse olhou a mãe que fôra tão dura e saiu correndo da sala de Camille.

CAMILLE: Clarisse vem cá meu amor! -Chamou sua aluna assim que a viu sair pela porta-

 

Érika preocupada sentou-se na cadeira a seu lado e apoiou a cabeça sobre uma das mãos.

ÉRIKA: Não acredito que isso está acontecendo de novo.

 

Camille sentou-se ao lado de Érika. 

CAMILLE: Eu sei que é complicado lidar com isso Érika, mas brigar com ela só vai deixá-la mais nervosa.
ÉRIKA: É sempre assim desde que nasceu e eu não entendo o porquê. Se não dá para evitar nada não faz sentido ter algo desse tipo.
CAMILLE: Tem coisas que a gente apenas aceita.
ÉRIKA: Aceitar como? Ela tem esses sonhos e visões desde pequena. Sabe de tudo que vai acontecer com a Clara ou com qualquer um da família. Sente dores inexplicáveis, conta histórias sem nexo e me assusta. Não entendo nada disso e acho que nem quero entender. Já levei a médicos, neurologistas, psiquiatras, psicólogos e nada.
CAMILLE: O caso dela não é de doença Érika, você sabe muito bem disso. Até quando vai negar que sua filha tem algo que não se explica, mas que precisa ser cuidado? Tem que haver algum tipo de conduta para que ela entenda todas essas visões e saiba lidar. A Clarisse sofre muito. -Disse gentil- 
ÉRIKA: Eu não sei o que fazer Camille. Vou levá-la para casa. -Finalizou- Obrigada por me chamar. -Levantou-se-
CAMILLE: Tudo bem.

 

Camille e Érika saíram da sala e seguiram pelo corredor onde encontraram Clarisse sentada em um dos bancos chorando por mais vez sentir-se incompreendida por sua mãe.

ÉRIKA: Vamos filha. -Chamou ao aproximar-se-
CAMILLE: Clarisse, não quero te ver tristinha assim amanhã está bem? -Acariciou Clarisse com ternura-

 

Clarisse deu de ombros as palavras doces de Camille e olhou para sua mãe com um semblante cansado. Queria logo ir para casa e ficar em seu quarto pensando em tudo que estava para acontecer e sabe que não poderá evitar.

CLARISSE: Eu quero ir embora mãe. -Puxou Érika pela mão-
CAMILLE: Não vai dar nem um abraço na tia? 

 

Clarisse soltou as mãos de Érika e abraçou Camille com seu rosto manchado pelas lágrimas-

CLARISSE: Tchau! -Despediu-se-
FIRMINO: Tchau pequena criatura! -Despediu-se assim que a viu passar pelo portão-
ÉRIKA: Tchau Firmino!
FIRMINO: Tchau Érika!

Firmino olhou para Camille que ficou a pensar em toda a situação com pesar, Clarisse estava em uma situação muito delicada por Érika não acreditar que a filha passava por um sofrimento com algo que ela não sabia lidar. Se até ela que era tão cética em tudo que dizia respeito ao que chamam de paranormal se atreveu a ler alguns artigos e livro a respeito do assunto para compreender e ajudar sua aluna qual era o problema em Érika fazer o mesmo? Estava claro o quanto Clarisse se desesperava sempre que tinha o que eles chamavam de “crise” e por tudo que já havia lido sabia que existiam condutas não científicas que podiam ajudar sua aluna a lidar com tudo que sentia e via, mas Érika nunca aceitou e inclusive ameaçou tirar a filha do colégio quando Camille solicitou que procurasse um parapsicólogo.
             Clarisse tinha seis anos e produzia o que a doutrina espírita chamava de efeitos inteligentes, ela aproximava-se das pessoas e dava-lhe recados, muitos deles de um conforto tão grande que era impossível acreditar que vinha de uma criança de seis anos de idade. Clarisse utilizava-se de um vocabulário rebuscado e de uma sensibilidade inexplicável, a forma como ela conseguia tocar o coração daqueles que se aproximava dizendo ter recados para dar deixava Camille perplexa, além de usar muito bem a oralidade ela escrevia cartas que dizia ser de parentes já mortos que tinham algo a comunicar. As cartas e os dizeres que Clarisse utilizava acabaram assustando muitos daqueles que não estavam preparados para receber e compreender o que aquela pequena garotinha tinha para dizer, Érika mesmo foi uma que por intermédio da filha recebeu várias cartas de sua mãe, mas nunca leu nenhuma delas por achar que estava imaginando coisas e inclusive brincando com algo que era muito sério, o sentimento de saudade das pessoas em relação a morte de um ente querido. A confusão gerada no CVM por conta das cartas de Clarisse obrigou Camille a tomar uma conduta um tanto quanto rígida para proteger sua aluna que aos seis anos começou a receber ameaças de todos aqueles pais assustados com as cartas que recebiam. Ela exigiu que todos aqueles adultos parassem de ameaçar uma criança ou denunciaria todos eles a polícia, claro que essa ameaça a fez perder vários alunos, mas no fundo nem se importou, o CVM tinha como ideologia não tolerar qualquer tipo de discriminação. Ela por diversas vezes orientou Clarisse a não entregar as cartas que escrevia e muito menos falar com pessoas que não conhecia sobre receber recados de parentes, mas era espontâneo e fugia de seu controle.
                 Preocupada, Camille chamou Érika para conversar a respeito da filha, leu em um dos livros que a parapsicologia era a área que cuidava dos fenômenos que Clarisse estava apresentando no momento e sugeriu que procurasse um profissional para que ajudasse a filha a controlar tudo o que produzia. Érika irritou-se tanto com a proposta feita por Camille que ameaçou tirá-la da escola caso continuasse misturando educação com misticismo, se continuasse, não demoraria muito a mandar procurar um Centro Espírita o que para ela era inadmissível se tratando de uma escola laica. Como diretora de uma escola jamais poderia fazer qualquer orientação daquele tipo e desde então ela nunca mais falou mais nada a respeito.
                       Camille chegou a ter algumas conversas com Clara quando buscava a irmã na escola. Ela que estudou no CVM dos 3 aos 17 anos sabia da orientação religiosa de Clara relatou algumas situações que Clarisse passava na tentativa de que a irmã pudesse dar a ela algum suporte emocional e até mesmo alguma orientação a respeito do que fazer quando apresentasse algum fenômeno visto como paranormal. Ventura também foi procurado em algumas conversas informais quando ia nas apresentações da afilhada na escola e os três foram bons parceiros na tentativa de ajudar Clarisse até Érika descobrir e proibir que ela fizesse contato com qualquer um dos dois para falar a respeito das questões emocionais da filha, por isso Camille não tem permissão para ligar para nenhum dos dois. Ter perdido o contato com Clara e Ventura que tanto a ajudava a compreender e a lidar com Clarisse a deixou de mãos e pés atados e agora o sentimento de angústia a tomava por não saber como ajudar aquela garotinha que tanto sofre.

_____

 

Uma tarde nublada caiu sobre a cidade do Rio de Janeiro e com ela um clima frio de 19 graus às quatro da tarde. A frente fria parece que chegou para ficar. No HUE Ventura não conseguiu sair de sua sala nem para tomar um café na cafeteria, estava ocupado demais revendo relatórios que deveriam ser entregues para a direção no final do dia e deixou Eduardo e André a cargo dos atendimentos neurológicos. Angélica e Clara também tiveram uma tarde tumultuada, um acidente com um ônibus de excursão movimentou toda a emergência já que não tinha outro hospital para encaminhar todos os feridos, a situação só foi amenizada depois das três quando finalmente conseguiram atender os pacientes que aguardavam atendimento médico na recepção. Pâmela teve um enorme esforço para controlar as reclamações e alguns estresses protagonizados no balcão da recepção por conta da demora nos atendimentos.

 

HOSPITAL UNIVERSITÁRIO ELDORADO (H.U.E)

 

Thomás e Sílvia estavam entre beijos e abraços no corredor da emergência do HUE. Teixeira havia pedido que ele avaliasse um paciente que deu entrada no pronto socorro em surto psicótico e depois de feita a avaliação acabou encontrando com a companheira que cumpre seu estágio rotatório na ortopedia. Eles combinaram de se encontrar após a aula para darem uma volta.
                Angélica acabara de dar alta a pedido de Álisson a um paciente de 24 anos que adentrou a emergência com uma crise renal, ela que  vinha pelo mesmo corredor carregando uma prancheta nas mãos viu Thomás despedir-se de Sílvia com um beijo.

ANGÉLICA: Ai que bonitinho! Beijinho no corredor do hospital. -Brincou-
THOMÁS: Acha que é só você que fica se atracando com o Eduardo pelos cantos?
ANGÉLICA: Quero só ver quando o Teixeira descobrir.
THOMÁS: Não estou nem um pouco preocupado com ele.
ANGÉLICA: Quer dizer que você e a Sílvia estão saindo juntos mesmo? Quem diria.
THOMÁS: Eu não tenho nada a perder e muito menos ela.

 

Teixeira que vinha das enfermarias passou pelo mesmo corredor onde Angélica e Thomás conversavam.


TEIXEIRA: Thomás, tem paciente na psiquiatria para visitar. -Aproximou-se rude- Chega de perder tempo com conversa fiada no corredor porque pelo que eu sei não nasceu em berço de ouro e tem que ralar muito. -Olhou para Angélica e saiu em direção as escadas que davam acesso ao andar superior do hospital-

 

Thomás olhou para a companheira, suspirou irritado e subiu atrás de Teixeira. Angélica seguiu para a recepção da emergência carregando seu prontuário quando foi quase atropelada por uma maca que adentrou o corredor empurrada por dois paramédicos.

- Batida de carro. Trauma craniano. Grávida de sete meses. O airbag não abriu. -Disse a paramédica ao perceber a aproximação de Cézar e Angélica-
CÉZAR: Tipagem e prova cruzada. Cadê o Álisson? -Perguntou levando a maca para uma das salas de trauma-
ENEIDA: Já o bipei.

 

Clara estava concentrada fazendo algumas anotações sobre o balcão na sala de trauma assustou-se ao ver a maca entrar.
             Angélica assim que viu a irmã imediatamente a chamou para que ajudasse no atendimento, por se tratar de uma grávida Clara poderia ser suma ajuda por trabalhar ao lado de Daniel na Climédia.

ANGÉLICA: Clara me dá uma ajuda aqui.
CLARA: O que foi? -Colocou o prontuário sobre uma mesa e aproximou-se da maca-
ANGÉLICA: Grávida de sete meses sofreu um acidente de carro, não tenho qualquer experiência nisso.
CLARA: Preciso de um monitor fetal aqui. -Solicitou enquanto examinava a paciente- 

Eneida foi para o canto esquerdo da sala e arrastou o monitor solicitado por Clara.

- Os batimentos estão bons. Sente dor de cabeça? –Continuou-
- Não sinto nada. -Respondeu a paciente- Ai! -Gritou em um gemido de dor-

 

Angélica que mantinha os olhos no monitor cardíaco assustou-se com o gemido.

ANGÉLICA: O que foi?
CLARA: Trabalho de parto. -Disse após ter feito o toque na paciente-
ANGÉLICA: Mas ela está com 28 semanas. É cedo demais.
CLARA: Dois centímetros de dilatação.
ENEIDA: Vai querer parar o trabalho de parto agora?

 

A pergunta de Eneida fez com que Clara sentisse uma pitada de insegurança. Mesmo que acompanhasse Daniel nos atendimentos à grávidas na Climédia ela não tinha qualquer aval para tomar uma decisão que não competia a sua área.

CLARA: Alguém chama um obstetra, por favor.
ENEIDA: O Álvaro está em um parto de emergência.
CLARA: E os internos?
ENEIDA: Já bipei três vezes.
ANGÉLICA: É você quem vai ter que decidir Clara. É hora de colocar o que aprendeu com o Daniel em prática - Olhou a irmã com firmeza-
ENEIDA: Contrações de dois em dois minutos. -Avaliou- Clara? -Fitou Clara esperando uma resposta-

 

Clara respirou fundo, mesmo sendo da pediatria era ela quem teria que dar as orientações do caso por não ter nenhum interno disponível.

CLARA: Não gosto de nada disso. -Avaliou olhando o monitor fetal- Pulmão prematuro na certa. Batimentos cardíacos?
ENEIDA: 135 e baixando. -Respondeu-
ANGÉLICA: A situação fetal deve ser acidótica. 
CÉZAR: A bolsa arrebentou. -Comentou ao ver o chão encher-se de água-
CLARA: Ótimo! Vamos fazer o parto. Avise a obstetrícia que estamos subindo. Avisem também a UTI neonatal que estamos levando um prematuro de 28 semanas.

 

Clara junto a Eneida e Cézar saíram pela gigantesca porta empurrando a maca.

ANGÉLICA: Clara você vai sozinha? -Gritou ao vê-la passar pela porta-
CLARA: Sim. Avise ao Amorim que fui para a obstetrícia. -Saiu-

 

No andar da neurologia Eduardo fechou a porta de uma das enfermarias masculinas. Acabara de fazer uma avaliação a um paciente que deu entrada na emergência na noite anterior com desmaios consecutivos. Ventura solicitou que ele desse um parecer sobre o caso que não parecia ser grave, mas que merecia uma atenção clínica por se tratar de um morador de rua. Com o prontuário nas mãos Eduardo bateu na porta da sala de Ventura e entrou.

EDUARDO: Verifiquei o quadro do Romoaldo. Está com tremores e tonturas.
VENTURA: Sugere alguma coisa? -Perguntou sentado em sua mesa avaliando alguns relatórios-
EDUARDO: Acho que tem mais a ver com o quadro de desnutrição que apresenta do que algo que mereça atenção neurológica,
VENTURA: Descartou isso? -Olhou para seu acadêmico-
EDUARDO: Sim. Fiz os exames complementares. -Colocou o prontuário sobre a mesa de Ventura-
VENTURA: Obrigado. -Voltou a olhar para os relatórios que analisava minutos antes de Eduardo entrar-

 

Eduardo percebeu a forma seca com que Ventura o tratou. Desde o dia anterior percebera uma diferença do sogro na forma de dirigir-se a ele, ficara de fato muito chateado com o que aconteceu a Angélica e por tê-la deixado dirigir sozinha. Desde o último acidente que sofreram Eduardo prometeu que não permitiria que a namorada cometesse imprudências como aquela por estar bêbada e não ter conseguido evitar lhe deixou muito envergonhado.

EDUARDO: Professor, eu sei que não deveria ter deixado a Angélica voltar dirigindo, mas...

 

Ventura interpelou a fala de Eduardo.

VENTURA: Mas você estava tão ruim quanto ela para evitar.
EDUARDO: É. -Disse envergonhado-

Ventura que mantinha seus olhos no relatório que conferia voltou-se para o genro.

VENTURA: Eduardo longe de mim querer me meter na forma como você conduz seu relacionamento com a minha filha, mas a Angélica tem um grave problema de limite quando se trata de bebida alcoólica, vocês sofreram um acidente grave a dois anos. É a minha filha e eu me preocupo com ela.
EDUARDO: Eu sei. Eu também, mas não queria que isso atrapalhasse meu estágio na neurologia.
VENTURA: O seu estágio na neurologia nada tem a ver com seu relacionamento com a Angélica. Você continua sendo meu acadêmico como sempre foi. 

 

A conversa foi interrompida por André que abrira a porta sem antes bater.

ANDRÉ: Ventura? -Chamou-o da porta-
VENTURA: Entra André.

 

André aproximou-se.

ANDRÉ: Estou indo embora. Terminei o plantão.
VENTURA: Eu te enviei ontem a correção da monografia. Durma e dê uma olhada depois.
ANDRÉ: Eu verei.
VENTURA: Bom descanso.
ANDRÉ: Tchau Edu! -Despediu-se-
EDUARDO: Tchau André!

 

André saiu fechando a porta.

VENTURA: Eduardo me passe sua percepção sobre o Romoaldo. 

 

Eduardo sentou-se na cadeira em frente a Ventura e começou a relatar sobre os procedimentos tomados com o paciente que o levou a acreditar que os sintomas que apresentava baseava-se apenas em uma desnutrição e não em um quadro neurológico. Ventura sempre teve muito cuidado quando a avaliação neurológica se tratava de moradores de rua, muitos médicos não tinham a boa vontade de fazer uma anamnese detalhada e comumente atrelava determinados sintomas à situação de rua e não a um quadro que realmente merecesse uma atenção da neurologia. 
               Angélica na recepção da emergência arquivava seus prontuários em seu escaninho, eram quinze para as seis e já estava no final de seu expediente. Clara em um semblante triste aproximou-se da irmã. 

ANGÉLICA: E o bebê? -Perguntou assim que q viu se aproximar-
CLARA: Nasceu no elevador e foi para a UTI.
ANGÉLICA: Tem chance? -Continuou a arrumar os prontuários-
CLARA: Para Deus sim, para mim? Não. -Disse em um tom chateado-

Angélica voltou seu olhar para a irmã. Terminara de arquivar o último prontuário.

ANGÉLICA: Está arrasada né?
CLARA: Não me acostumei ainda com essas coisas.
ANGÉLICA: Será que a gente se acostuma?
CLARA: Tomara que não. Se acostumar com a morte é perder a sensibilidade.
ANGÉLICA: Quer tomar um suco comigo?
CLARA: Vamos. -Sorriu-

 

Para Clara sempre foi uma situação triste deparar-se com a morte de uma criança, se tratando de um prematuro sua dor parecia ser maior. O que a trazia algum conforto era sua crença religiosa de que cada um tinha um tempo de vida e um objetivo na Terra mesmo se tratando de mortes prematuras. Angélica que não se sentia tão mobilizada com a morte como a irmã conseguiu confortá-la dizendo que isso aconteceria com freqüência na medicina e que ela deveria se adaptar, Clara chegou até a questioná-la se nunca ficara triste com alguma morte que já presenciara e a resposta negativa da irmã a deixou um tanto preocupada, nem o médico mais frio não deixaria de se sensibilizar com a morte de algum paciente, afinal, o objetivo da medicina era salvar vidas e cada morte não deixava de ser vista como um fracasso, ao menos, era assim que Clara pensava. 
                Clara e Angélica lidam com a morte de forma muito diferentes, Clara é mais sensível e mesmo sendo espírita lamenta todas elas, já Angélica não tem qualquer apego sentimental a nenhum paciente que atende e encara a finitude como uma conseqüência da vida que todos irão passar cedo ou tarde, ela mesma não tem preocupação com sua própria morte, muitas vezes até achou que seria o melhor que poderia acontecer para o alívio do seu sofrimento. A frieza com que a irmã lidava com as questões médicas sempre chamou a atenção de Clara, muitas vezes Angélica realizou procedimentos altamente invasivos e dolorosos como uma punção lombar sem sentir qualquer comoção por aquele que estava diante dela enquanto ela sentia-se incomodada em pegar uma veia de uma criança por saber que causaria dor, a irmã tinha mesm todo o perfil para procedimentos emergenciais.
                Clara deitou-se sobre os ombros de Angélica que a aconchegou em seu colo com um abraço, havia muito tempo que não conseguiam partilhar momentos tão íntimos como naquela tarde, elas mal conseguiam conversar sobre outros assuntos que não fizessem referência a medicina quanto estavam juntas. Apesar de irmãs, Clara e Angélica são muito diferentes uma da outra, Angélica é possessiva, ciumenta, dominadora, egocêntrica e autoritária. Clara é dócil, alegre, paciente e extremamente tranqüila o que acaba equilibrando a relação e evitando muitas brigas. Angélica sentia-se feliz por conseguir dar um conforto à irmã que estava muito chateada com a possibilidade de morte de uma criança. Conseguir tornar-se se próxima de Clara ao ponto de trocarem intimidades era para ela uma vitória.

_____

 

Érika estava deitada em sua cama pensativa. Não conseguiu ir ao Vitte por conta de Clarisse. Assim que chegaram em casa ela começou a apresentar febre e vômitos. Esse era um quadro comum sempre que se desequilibrava emocionalmente e ela nem viu a necessidade de procurar Ventura para que desse uma olhada na filha, sem dúvida ele diria que era emocional e lhe receitaria um antitérmico como sempre fizera. Abraçada ao travesseiro refletia amedrontada sobre o que poderia acontecer com Clara, a filha já havia passado por muitas coisas e escapado de outras mais por conta das premonições de Clarisse. Ao mesmo tempo em que não queria acreditar na existência de algo sobrenatural não podia negar que eles existiam a sua revelia, sua filha era uma prova viva. Por alguns minutos ela ficou ali, deitada e refletindo sobre como procederia com Clarisse, talvez fosse uma boa idéia retornar a terapia. Ela não teve muitos avanços em todos os psicólogos que passou, mas Érika acreditava que por ela ser muito nova não conseguiu compreender de forma adequada todas as orientações dadas. A outra opção seria voltar com toda a medicação que tomara aos cinco anos, elas foram as únicas coisas que conseguiram controlar tudo que acontecia com Clarisse, mas isso ocasionou uma divergência tão grande com Ventura e Clara que Érika acabou cedendo para o bem estar da família, mas nenhum dos dois deram caminhos satisfatórios que pudessem fazer com que Clarisse deixasse de sofrer. Sempre vinham com a conversa de que a filha tinha um dom e que a única forma de se "curar" era aprender a lidar com ele o que para ela era inconcebível. Dons não vêm de presente para trazer dor as pessoas, acreditava ela. 
                Érika tentou contato com Ventura por toda a tarde, mesmo que não aceite nada do que diz a respeito do caso de Clarisse sempre foi um bom confortador para sua horas de desespero, mas ele devia estar bastante ocupado no momento que nem visualizou suas mensagens deixadas no WhatsApp e tão pouco retornou as ligações no celular. Carlos também não estava disponível para ouví-la. Ela mandou uma mensagem para o marido assim que chegou em casa com Clarisse avisando que a filha estava novamente em crise e com febre, por isso não iria trabalhar para ficar cuidando dela, a única coisa que Carlos conseguiu responder foi chegaria tarde em casa por conta de uma reunião e conversariam sobre o assunto assim que regressasse. Angustiada, Erika levantou-se da cama e foi até o quarto da filha. Elas precisavam conversar sobre o que Clarisse havia visto com detalhes.

 

CASA DA FAMÍLIA GUIMARÃES DIÁZ

 

Clarisse estava sentada em sua mesa de estudos fazendo alguns desenhos. Sempre que se sente angustiada ela gosta de escrever ou desenhar. As folhas em branco foram preenchidas por pontos vermelhos e pretos. Clarisse sabia que todos aqueles rabiscos eram a tradução de tudo que vira horas antes quando estava na escola. A dor de não poder evitar qualquer situação ruim que possa acontecer com sua família era algo que muito a angustiava. Nem Clara e nem Ventura estavam disponíveis para conversar e sua mãe nem permitiria uma conversa sobre o assunto naquele momento. 
                  Érika abriu a porta e aproximou-se da filha, mesmo que não quisesse ter qualquer informação a respeito de um possível acidente com Clara, precisava deixar a filha melhor emocionalmente. Desde que chegaram ela não conseguiu comer nada e muito menos sair do quarto.

ÉRIKA: Cla, a gente precisa conversar.

 

Clarisse parou seu desenho e olhou para sua mãe amedrontada.

CLARISSE: Minha irmã corre perigo! -Disse apreensiva- Ela corre.
ÉRIKA: Filha, não tem que ficar apavorada com isso. -Sentou-se na cama ao lado de Clarisse- Você deve estar vendo muito jogo de violência nesse Youtube e por isso eu vou tirar o notebook do seu quarto. Você só vai assistir os desenhos da TV a cabo.
CLARISSE: Você não acredita em mim. Quero ligar para a Clara.
ÉRIKA: Sua irmã está na faculdade e logo ela chega. Eu andei pensando e acho que seja legal você voltar para o psicólogo. O que acha?
CLARISSE: Legal. -Disse um tanto desanimada-
ÉRIKA: Você era muito novinha quando te coloquei na primeira vez. Agora você já é uma mocinha e pode entender algumas coisas.
CLARISSE: Ele não vai me fazer parar de ter visões. –Afirmou contundente-
ÉRIKA: Mas pode te ajudar a entender tudo que acontece com você porque eu não posso filha. A mamãe não sabe como lidar com isso e eu não consigo te ajudar.
CLARISSE: Você tem medo.
ÉRIKA: É. Eu tenho medo. -Baixou seu olhar-

 

Era muito difícil para Érika assumir perante a filha que tinha medo de alguma coisa já que sempre se mostrou uma mãe forte e destemida.

CLARISSE: Pede para o dindinho vir me ver quando chegar?
ÉRIKA: Eu peço.
CLARISSE: Você não tem medo do que pode acontecer com a Clara?
ÉRIKA: Eu nem sei o que pode acontecer com ela.
CLARISSE: Ela vai estar no meio de polícias e bandidos. Pessoas vão morrer e ela também.

 

Ouvir de Clarisse que Clara iria morrer causou em Érika um extremo desconforto, ela tentou disfarçar, mas seu coração disparou e sentiu um frio na barrida diante da fala da filha. Ela sabe que Clarisse nunca se engana quando tem alguma visão.

ÉRIKA: Clarisse chega né? -Impediu que a filha continuasse com sua fala- Não vamos dar idéia para isso porque você lembra do que o Ventura falou, pensamentos ruins trazem sentimentos ruins. Nada vai acontecer a Clara porque sua irmã vai casar e você vai ser a dama mais linda do mundo! Agora você vai tomar um banho, fazer um lanche e aí a gente fica lá no meu quarto assistindo o desenho que você quiser. Tira a roupa e vai para o banho. 

 

Érika preferiu acreditar que Clarisse estava mais uma vez fantasiando uma situação e acreditando nela. Ela não poderia de forma alguma estar premunindo a morte da irmã.

CLARISSE: Mas nem está na hora de dormir. -Observou-
ÉRIKA: Mas você não vai fazer mais nada agora não é?
CLARISSE: É. –Confirmou-
ÉRIKA: Vai para o banheiro então.

 

Clarisse levantou-se da cadeira onde estava e enquanto caminhava para o seu closet voltou-se para a sua mãe.

CLARISSE: Mãe? Você vai ter que cuidar muito bem da Clara. -Fitou sua mãe entristecida-
ÉRIKA: Nós vamos cuidar. Você e eu. -Sorriu-
CLARISSE: Que horas o meu pai chega?
ÉRIKA: Só mais tarde, está em uma reunião. Liguei para ele. Vai para o banheiro.
CLARISSE: Está bem.

 

Clarisse levantou-se e foi para o banheiro tomar banho conforme solicitou sua mãe. Érika que trazia seu celular nas mãos tentou mais uma vez um contato com Ventura e ele não atendeu. Pensativa ela ficou se deveria ou não ir ao seu encontro, sua angústia estava enorme e não sabe se conseguirá suportar até o dia seguinte para conversarem na Climédia.

_____

 

Eram oito horas da noite, Clara, Angélica e Ventura chegaram na faculdade por volta das seis da tarde, enquanto as duas foram para as suas respectivas aulas, Ventura foi para a turma do primeiro período de medicina. Ele leciona Fisiologia I, uma matéria um tanto quanto temida pelos alunos dos anos iniciais. Eles ouviram dos veteranos que os índices de reprovação na disciplina era alto mesmo se tratando de um professor tão maleável como Ventura, mas a mais temida mesmo era Farmacologia lecionada por Teixeira, ele sim era um professor que não perdoava ninguém. Muitas solicitações de troca  foram feitas pelos alunos, Angélica inclusive foi uma que fomentou um abaixo-assinado no segundo ano justificando a troca por abuso de poder por parte de Teixeira. Ventura foi um dos professores cotados para lecionar a disciplina, mas ele além de não querer confusão seu colega de trabalho estava sobrecarregado de disciplinas e pegar mais uma acabaria por prejudicá-lo. Diante de sua negativa Teixeira continuou tocando o terror como sempre fez, por ser uma disciplina obrigatória os alunos nem tinham a opção de não cursá-la e por saber disso acabava cometendo vários abusos de poder. 

 

UNIVERSIDADE FEDERAL THEMES SOUZA (UFTS)

 

Angélica após sua aula foi para o laboratório de Anatomia treinar intubação. Esse era um procedimento que tinha muita dificuldade em realizar. O laboratório possuía 10 mesas de ferro com alguns bonecos para treino sobre eles e alguns bancos em volta. Aquele era o lugar que Angélica tinha mais dificuldade em frequentar, mesmo que se utilizem mais bonecos para a maioria dos estudos de medicina, ele ainda tinha alguns cadáveres e ela morre de medo de morto. O primeiro ano foi para Angélica o mais difícil, além de não lidar bem com cadáveres ela desmaiava sempre que sentia o forte cheiro de formol e toda a sua dificuldade em lidar com a prática a levou por diversas vezes a refletir se a medicina era mesmo a carreira que queria seguir por toda a vida. Seu medo era tão intenso que muitas vezes alegou estar vendo vultos por todo o anatômico e se não fosse pela ajuda de Clara ela não teria conseguido a aprovação na matéria de Anatomia I e II. Agora no quinto ano Angélica só entra no laboratório principalmente sozinha quando é estritamente necessário, só aquele ambiente frio e com cheiro forte já era o suficiente para provocar-lhe alterações senso-perceptivas e deixá-la totalmente perturbada. Só se atreveu a entrar sozinha porque teve dificuldade de intubar um acidentado que deu entrada na emergência com trauma de coluna após uma colisão com um caminhão. A frustração por não ter conseguido realizar o procedimento foi grande o suficiente para levá-la ao laboratório para treinar, ela era a interna de referência no HUE e não ter conseguido realizar um procedimento emergencial com desenvoltura a deixou completamente atordoada.
         Álisson que terminou sua aula de anatomia II no segundo período entrou no laboratório carregando algumas peças cranianas nas mãos. Ele levou algumas como exemplo para a aula dada. Angélica que tentava visualizar as cordas vocais do boneco em que treinava com um laringoscópio e deslizava o tubo próprio assustou-se assim que ele abriu a porta.

ANGÉLICA: Merda! -Reclamou assim que viu Álisson entrar-

 

Álisson deu uma risada e entrou no laboratório. Sem dúvida sua aluna estava simplesmente por não ter conseguido realizar com veemência o procedimento em um paciente e possivelmente só sairia dali quando o concluísse com perfeição.

ÁLISSON: Não sabia que estava logo aqui. Não iria para casa cedo? -Aproximou-se de um armário e guardou alguns materiais-
ANGÉLICA: Estou esperando meu pai que está no primeiro período.
ÁLISSON: O quê está fazendo? -Aproximou-se da maca onde Angélica estava-
ANGÉLICA: Tentando intubar esse boneco. -Respondeu enquanto tentava visualizar as cordas vocais-
ÁLISSON: Mais uma das suas compulsões para fazer tudo com perfeição? Todo mundo tem dificuldades para intubar no internato Angélica. Não tem que se penalizar por isso. 
ANGÉLICA: Eu não sou todo mundo. - Respondeu rude-
ÁLISSON: Você é a filha do Ventura, esqueci. 

 

Angélica não queria mais dar continuidade a conversa sobre sua mania de perfeição que tanto incomodava Álisson. De nada adiantava tudo que dizia a respeito de levar a prática médica com mais leveza, ela tinha que ser perfeita para continuar mantendo sua posição exemplar dentro do curso.
           Angélica e Clara são as meninas dos olhos do curso de medicina. Ainda no quinto ano elas já foram para milhares de congressos internacionais e tinham artigos publicados em revistas A1 de medicina e saúde coletiva que as levaram a ganhar alguns prêmios. Mesmo que a área acadêmica não fosse uma escolha de Angélica era ela quem ficava mais em evidência no que dizia respeito a pesquisa por ser mais ousada que a irmã. Ela conseguiu publicar um artigo junto com Ventura no terceiro ano sem ser da área de Neurologia.


ANGÉLICA: Enviei os dados da pesquisa para o seu e-mail. -Desconversou-
ÁLISSON: Eu vi, mas ainda não abri. Topa ir para o Congresso Internacional de Medicina em Nova York daqui 1 mês apresentar a pesquisa? Acho você a pessoa ideal, é minha assistente e tem inglês fluente.

 

Angélica que mantinha seus olhos no procedimento que realizava voltou-o para Álisson a seu lado.

ANGÉLICA: Posso recusar?
ÁLISSON: Pode. Eu sei que você não gosta de congressos, mas acho que seria uma ótima experiência.

 

Angélica puxou o material de intubação do boneco, já acabara de realizar seu procedimento. Mesmo com uma grande habilidade para discursar a respeito de qualquer tema que dizia respeito às práticas emergenciais, Angélica não apreciava nenhum tipo de congresso por achá-los repetitivos demais. Sempre que seu supervisor a mandava para algum parecia estar assistindo sempre as mesmas coisas principalmente porque eram sempre os mesmos pesquisadores que relatavam seus estudos e ela mesma passou a ser um rosto conhecido e isso a incomodava. Por achar os congressos de medicina enfadonhos tem preferido ir aos que não diz respeito a seu curso como os psicologia ou de enfermagem que traziam outros conteúdos que a seu ver eram muito mais interessantes, até os seminários de iniciação cientifica produzidos pela faculdade tinham mais a acrescentar que aqueles congressos chiques e caros de medicina emergencial.

ANGÉLICA: Eu ia adorar Álisson, mas é próximo a semana do casamento da minha irmã e eu não vou ter tempo de preparar nada. -Respondeu guardando o material que utilizou-
ÁLISSON: Tudo bem. Eu vou ou mando o Jonas. Gostei da sua apresentação ontem apesar da ressaca.
ANGÉLICA: Nem me lembre! Ainda sinto os resquícios.
ÁLISSON: Acho que seu pai ia adorar que levasse o tema para o Congresso de Recife.
ANGÉLICA: Foi só uma idéia que eu tive. Nem sei se tenho condições de desenvolver algo dentro daquilo que propus.
ÁLISSON: Conversa com ele, quem sabe vocês publiquem mais alguma coisa juntos?
ANGÉLICA: Vamos ver.

 

Ouviu-se um toque no celular. Angélica retirou o seu do bolso do jaleco e olhou para a tela

-  É o Edu! Espero que ele esteja indo para casa assim não preciso esperar o meu pai. Até amanhã Álisson! -Despediu-se enquanto desbloqueava a tela do celular para ler o resto da mensagem deixada em seu whatsapp-
ÁLISSON: Tchau!

 

Angélica saiu do laboratório enviando uma mensagem para Eduardo avisando que o encontraria na cantina.
          Clara estava fazendo seu lanche com sanduíche natural e suco de uva junto a Cézar, Helen e Thomás enquanto aguardava Ventura para ir para casa. Ela contava aos amigos que estava chateada pelo bebê prematuro que atendeu e que possivelmente não teria muitas chances de vida.

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CLARA: Eu estou péssima até agora. A chance dele sobreviver são mínimas. –Disse com pesar-
HELEN: Mas amiga talvez isso seja o melhor que pode acontecer. Imagina o sofrimento dessa criança se sobreviver? Vai ficar totalmente limitada a uma cama.
CLARA: Pode ser, mas penso na mãe, ela sempre desejou um filho, não deve ser fácil. O que me dá um pouco de consolo é saber que cada um tem um tempo aqui na Terra.
HELEN: Falou igual o seu pai.
CLARA: Somos espíritas, não tem como falarmos diferentes um do outro.
ANGÉLICA: Só a Angélica que não acredita em nada espiritual.
CLARA: Eu acho que ela acredita, mas tem medo.
EDUARDO: Clara cadê a sua irmã? -Perguntou aproximando-se da mesa-
CLARA: Ela foi ao laboratório treinar intubação enquanto esperava o meu pai.
EDUARDO: Angélica em um laboratório de anatomia? Isso eu queria ver. Ela disse que já estava vindo. -Comentou olhando a mensagem deixada por Angélica no WhatsApp-
CLARA: Você conhece o vindo da Angélica não é Edu? -Abocanhou seu sanduíche-
EDUARDO: Você não está bolada comigo porque deixei a sua irmã voltar dirigindo, está? Eu nem consegui evitar Clara.
CLARA: Não fiquei bolada com você, apenas achei que vocês poderiam ter se controlado.
THOMÁS: Pedir isso aos dois é o mesmo que pedir a uma criança de cinco anos que não coma um saco de balas que você deixou no armário. -Intrometeu-se-
EDUARDO: Cadê a Sílvia, Thomás? Estava bêbado, mas vi vocês se pegando no Congress.
THOMÁS: Ela está na aula do Garcia.
EDUARDO: Corajoso você. -Debochou-
THOMÁS: Corajoso é namorar uma mulher feito a Angélica. Nem de graça eu quero mulher bonita para compromisso sério. Dá muito trabalho! 

 

Clara deu uma risada do comentário de Thomás. Eduardo realmente tinha sangue de barata para tolerar todas as cantadas que a irmã recebia dos colegas de curso e de desconhecidos principalmente em sua conta no Instagram.
             Angélica que vinha do laboratório de anatomia aproximou-se da mesa onde estavam o namorado e os amigos.


ANGÉLICA: Oi meu bem! -Deu-lhe um beijo nos lábios-
EDUARDO: Demorou abessa hein! -Reclamou-
ANGÉLICA: Cinco minutos Eduardo.
EDUARDO: Eu não sabia que tinha superado seu medo do anatômico.
ANGÉLICA: Não superei. 

 

Victor que saíra do estacionamento da UFTS ao passar pela cantina avistou Angélica junto a seus amigos e aproximou-se da mesa.

VICTOR: Oi! -Cumprimentou os colegas da mesa- Vim te buscar amor! -Voltou-se para Clara sentada comendo seu sanduíche- Quem sabe a gente consiga dar uma volta.
ANGÉLICA: Olha ele! Cheio de segundas intenções. -Comentou maliciosa-

 

Clara irritou-se com a brincadeira feita pela irmã no meio de uma mesa de conhecidos.
 
CLARA: Vai começar com as piadinhas Angélica? -Fitou-a com irritação-
ANGÉLICA: Nunca parei com elas. -Deu de ombros-
CLARA: Não precisa fazê-las por isso! -Finalizou rude-

 

Angélica percebeu a irritação da irmã. Ter feito aquela brincadeira a deixou muito constrangida.

ANGÉLICA: Desculpa.
CLARA: Vamos Victor. -Levantou-se da mesa tentando esconder sua irritação-
THOMÁS: Calma Clarinha! Que pressa é essa?
CLARA: Só quero chegar cedo em casa hoje. -Disfarçou-
ANGÉLICA: Tchau irmãzinha. 

 

Clara olhou para Angélica e não deu a ela qualquer resposta. Angélica não deixou de mais uma vez fazer um deboche apenas para aparecer frente aos amigos. 

VICTOR: Você ficou irritada por ter vindo te buscar? -Perguntou enquanto caminhavam para o estacionamento-
CLARA: Não. Me irritei com a piadinha sem graça da Angélica na frente de todo mundo. Ela não toma jeito! –Indignou-se-
VICTOR: Você sabe que ela é graciosa.
CLARA: Ela é sem noção! -Disse com uma pitada de severidade e fechou a cara em um semblante emburrado-
VICTOR: Não faz essa cara Clara. Eu vim te buscar para irmos á um lugar legal e quero te ver sorrindo.

 

Clara olhou para Victor, esboçou um sorriso e o beijou. O noivo havia feito a gentileza de ir até a faculdade buscá-la para fazerem alguma coisa  e ela não tinha o direito de estragar tudo por conta de uma gracinha de Angélica. 
           O beijo entre os dois foi interrompido por uma buzina. Álisson estava querendo sair com o carro e eles acabaram por fechar a passagem quando se beijaram no meio do estacionamento.

CLARA: Desculpa Álisson. -Usou de um tom alto para que ouvisse-

 

Álisson abaixou o vidro do carro.

ÁLISSON: Está chegando o dia do casamento. Como se sente? -Perguntou com o vidro abaixado-
CLARA: Ansiosa, eu acho. Esperamos você lá.
ÁLISSON: Irei com certeza. Eu e a esposa. Tchau para vocês.
CLARA: Tchau. -Despediu-se e saiu com o carro-

 

Clara e Victor abraçados seguiram para o carro conversando sobre onde poderiam ir às oito da noite. Victor havia pensando em levar a noiva ao cinema já que o filme que gostava havia estreado no dia anterior, mas Clara preferia sair para comer alguma coisa, o sanduíche natural que comeu não foi o suficiente para matar a sua fome.
           Érika adentrou com seu carro pela chancela da UFTS e seguiu para o estacionamento, esperava encontrar uma vaga já que elas sempre estão preenchidas no período da noite. Enquanto dirigia a procura de alguma rememorou todos os momentos que vivera com Ventura naquele lugar com tão pouca iluminação. Aquela que atualmente demonstra uma seriedade e uma moralidade fora do comum já fôra muito aventureira e teve seus momentos amorosos marcados nos arredores da UFTS. Não havia como adentrar aquela faculdade sem se lembrar de todas as situações que vivera com Ventura e principalmente da felicidade que sentiu quando soube que foi aprovada em uma universidade federal.
              Ambiciosa como sempre, Érika queria concluir uma faculdade que lhe desse muito dinheiro. Amália, sua mãe, sempre achou os sonhos da filha desmedidos. Como uma menina da zona rural e com uma escolaridade ruim poderia ingressar em uma faculdade federal? Ela tinha era que terminar os estudos e trabalhar naquilo que oferecessem naquele pacato vilarejo no interior do Mato Grosso, quizá conseguisse ser professora, mas Érika sempre foi muito esforçada. Seu sonho era poder dar uma condição de vida melhor àquela que sempre cuidou dela com todo carinho. Quando completou 18 anos, Érika foi morar em um quartinho cedido por uma igreja católica para estudar pré-vestibular. Sem dinheiro ela ajudava na limpeza e com alguns afazeres em troca de um lugar para dormir e se alimentar. Sua mãe achou uma loucura a filha sair de um vilarejo e se meter em uma cidade grande sem conhecer nada. Ouvia falar do Rio pelos noticiários e era inadmissível que Érika fosse para lá. Com certeza ela acabaria morrendo de fome, mas isso não foi o suficiente para segurá-la. Érika juntou algumas roupas que tinha e em uma única mala com alguns trocados pegou o ônibus e se foi. Depois ela pensava no que fazer para se manter, mas o primeiro passo tinha que ser dado. Foi aí que ela encontrou a igreja que a abrigou por dois anos. Sem qualquer condição de bancar qualquer curso pré-vestibular, ela pegou todo o conteúdo programático da prova e todos os dias ia à biblioteca municipal. Estudava todos os dias 8 horas por dia. Sabia que a entrada em uma faculdade federal não era fácil e precisava se dedicar ao máximo já que ia disputar vaga com pessoas que sempre estudaram em bons colégios e puderam pagar bons cursos de pré-vestibular. Escolhera administração por conta da sua facilidade com números. Dois anos ela ficou naquela rotina de estudos. Cada reprovação no vestibular a incentivava a cada dia mais à seguir em frente e a não desistir daquilo que sempre desejou. Além disso, ela precisava mostrar à sua mãe o quanto era capaz de tornar alguém bem sucedida mesmo tendo sido criada em um vilarejo rural. Por residir em Mato Grosso, Érika só podia visitar a mãe uma vez por ano e era ás festas de fim de ano a data escolhida. Depois de dois anos de estudo intenso ela foi a primeira colocada no curso da UFTS. Além dela, tinha sido aprovada em outras duas Universidades Federais da cidade mas optou pela UFTS por ser mais perto da onde estava ficando no momento. Seis meses depois conseguiu uma bolsa de estudos dada pelo governo. Não era um dinheiro que possibilitava luxos, mas ajudava a dar uma vida confortável até que terminasse a faculdade. Ela então saiu de seu quartinho cedido pela igreja e foi morar com sua melhor amiga Marlene e mais duas pessoas em uma república. Naquela época a vida no Rio de Janeiro não era tão cara e até conseguia mandar uns trocados para a mãe.
             Érika estava no segundo ano da faculdade quando conheceu Ventura, ele estava no  quarto de Medicina e se conheceram cruzando o corredor. Atualmente a UFTS tem um bloco para cada área, mas naquela época todos os cursos se concentravam em um único bloco e ali eles viveram momentos de intensa paixão, mesmo sendo extremamente tímida, Érika era uma mulher fogosa e aceitava as mais descabidas idéias de Ventura. Eles eram o casal perfeito e em sete anos de relacionamento nunca tiveram uma briga que pudesse abalar a relação por isso o término repentino dos dois chamou a atenção de todos que lhes eram próximos. 
              Érika saiu do carro, dirigiu-se ao bloco de ciências médicas e procurou pela secretaria do curso. Precisava saber se Ventura ainda se encontrava na universidade, havia tentado contato com ele por toda a tarde para conversar a respeito de Clarisse e ele não retornou nenhum telefonema e nem respondeu nenhuma mensagem deixada em seu WhatsApp, ele sequer visualizou-as. A única forma de encontrá-lo foi indo até a faculdade, Érika estava ansiosa demais para esperar até o dia seguinte na Climedia.

ÉRIKA: Boa noite! -Disse ao aproximar-se do balcão da secretaria- Eu procuro pelo Ventura.
LEILA: Vou avisar. Qual é o seu nome?
ÉRIKA: Érika.
LEILA: Um momento, Érika.

 

Leila retirou-se e foi até a sala dos professores procurar por Ventura, ela o viu entrar minutos antes de Érika chegar procurando-o.
          Érika enquanto esperava por ele caminhou pelo corredor observando alguns murais com avisos referente ao cursos que ali funcionavam. Como aquela faculdade remontava suas boas lembranças. Fazia muito tempo que não entrava naquele prédio, a última vez foi a três anos em um aniversário surpresa que Clara e Angélica fizeram para o pai. Ela sentiu-se alegre também não por lembrar do quanto foi feliz estudando ali, mas por Clara ter conseguido realizar seu sonho de cursar medicina. A filha se dedicou por três anos e mereceu estar em uma faculdade federal. 
              Ventura saiu da sala dos professores, a viu caminhando pelo corredor e não deixou de perceber que Érika só poderia estar se lembrando dos momentos que viveram juntos naqueles arredores. 

VENTURA: Não negue que a UFTS ainda remonta suas boas lembranças. -Cochichou em seus ouvidos após ter se aproximado vagarosamente-

 

Érika deu um pulo de susto ao ouvir a voz de Ventura.

ÉRIKA: Que susto, Ventura! Nunca neguei isso. Foram bons tempos. -Disse com um ar nostálgico-
VENTURA: Isso nós dois podemos dizer.

 

Érika esboçou um sorriso frente ao comentário de Ventura.

ÉRIKA: Preciso conversar com você. Tentei contato o dia inteiro e por isso resolvi te procurar aqui. Desculpa vir sem avisar.
VENTURA: Estive muito ocupado hoje Érika. Me desculpe. O que aconteceu?
ÉRIKA: Não queria tratar disso no meio do corredor.

 

O celular de Ventura soou com o toque de uma mensagem. Era Angélica avisando que ela e Clara já haviam ido para casa com seus respectivos companheiros e que ele não precisaria se preocupar em levá-las.

VENTURA: É o seu dia de sorte! -Comentou desligando a tela do celular- Angélica acabou de me mandar uma mensagem dizendo que já foi para casa com Eduardo e a Clara com o Victor, isso quer dizer que meu compromisso de pai se findou aqui. Conversamos no Congress o que acha? Assim você se preenche mais com boas lembranças.
ÉRIKA: Você não tem jeito. –Comentou com uma risada- Vamos!

 

Érika e Ventura seguiram caminhando até o estacionamento, ambos precisavam pegar seus carros. Enquanto dirigiam em direção ao Congress Érika não deixou de perceber o quanto Ventura era disponível para Angélica. Ela havia tentado contato com por todo o dia e ele sequer visualizou a mensagem, mas assim que ouviu um chamado da filha respondeu prontamente. Clara também já havia reclamado com a mãe pelo mesmo motivo, muitas vezes para conseguir uma comunicação com o pai ela tinha que pedir que Angélica ligasse ou enviasse uma mensagem para que ele respondesse prontamente.
            Érika observou e não comentou nada. Não sentiu-se no direito de cobrar atenção de Ventura, apenas Clara que era sua filha poderia reclamar da falta de contato, mas ela mesmo que comentasse nunca se incomodou verdadeiramente com a ausência de Ventura, entendia perfeitamente a relação que mantinha com Angélica e nunca foi de seu interesse disputar sua atenção com a irmã, ela também tinha Carlos que nunca deixou de ser um pai super disponível para as suas demandas.

 

BOATE CONGRESS

 

Érika e Ventura estacionaram seus carros em frente ao Congress, por não ser um dia de festas universitárias ou shows a área interna estava fechada e eles podiam ouvir uma música ao vivo na área externa de frente para o mar. Os dois sentaram em uma mesa onde pudessem contemplar o frescor marinho, pediram um vinho com fritas e começaram a conversar. Érika tinha alguma coisa muito séria para ter ido procurar Ventura na UFTS quase às dez da noite.

ÉRIKA: Me desculpa ter vindo te procurar agora, mas eu não iria conseguir esperar até te ver amanhã na Climédia.
VENTURA: O que aconteceu? -Perguntou pegando algumas batatas com um palito-
ÉRIKA: Aquele telefonema que recebi na hora do almoço não foi do Vitte, foi do CVM. Problemas com a Clarisse. Fui buscá-la chorando e muito desesperada porque ela teve uma visão de que algo muito ruim vai acontecer a Clara. -Disse um tanto amedrontada-
VENTURA: Como o quê? 

 

Érika silenciou-se. 

- Érika? -Insistiu assim que percebeu o seu silêncio-
ÉRIKA: Ela disse que a Clara vai morrer em um assalto. -Colocou as mãos sobre a face e chorou-
VENTURA: Calma! -Disse com tranqüilidade na tentativa de acalmar a companheira-

 

Érika retirou as mãos da face e fitou Ventura com os olhos lacrimejantes.

ÉRIKA: Minha filha vai morrer Ventura! -Disse em um choro desesperado-
VENTURA: Érika eu preciso que você se acalme para podermos conversar.

 

Érika respirou fundo, secou as lágrimas e tentou recuperar o equilíbrio emocional.

ÉRIKA: Eu não sei mais  o que fazer! Estou angustiada. A Clarisse falou com tanta firmeza que eu fiquei desesperada. Você é quem entende disso deve saber o que fazer.
VENTURA: Você me disse que não acreditava nessas coisas de sobrenatural. -Provocou enquanto bebia seu vinho-

 

Érika irritou-se com o comentário de Ventura. Ele não poderia estar fazendo aquele tipo de provocação em um momento tão delicado.

ÉRIKA: Não acho que esse seja o momento ideal para questionar as minhas convicções, Ventura.
VENTURA: Desculpa. 

 

O silêncio tomou conta da mesa. Ventura fez a provocação simplesmente por Érika não conseguir abrir mão de tudo que acreditava mesmo que a verdade estivesse diante de seus olhos. Se ela não aceitava qualquer explicação que dizia respeito ao sobrenatural e por isso, não havia qualquer sentido ela procurá-lo para pedir orientações. No mínimo acabariam brigando ferrenhamente como sempre acontecia quando tocavam no assunto.

ÉRIKA: Eu conversei com a Clarisse e achei que fosse melhor ela voltar a freqüentar um psicólogo. -Comentou quebrando o silêncio formado-
VENTURA: Os psicólogos não são capazes de lidar com as questões que a Clarisse apresenta Érika, eles não podem.
ÉRIKA: Como não podem?
VENTURA: A psicologia é uma ciência e enquanto ciência nenhum psicólogo pode se ater a fenômenos que não são comprovados cientificamente mesmo que acreditem neles. A única coisa que eles podem fazer é ajudar a Clarisse a lidar com o sofrimento emocional em decorrência do que acontece com ela, mas se você está esperando que a psicologia retire da sua filha todos esses fenômenos você vai gastar dinheiro à toa.
ÉRIKA: Então eu vou levá-la ao psiquiatra e voltar com os remédios. Ao menos com eles ela não tinha nada disso.
VENTURA: E também não tinha uma vida. A Clarisse não está doente Érika. Se você fizer ela tomar novamente aqueles remédios estará sendo negligente.

 

Érika foi tomada por um sentimento de incompreensão. Como Ventura poderia chamá-la de negligente quando tudo que fez foi principalmente por se importar com todo o sofrimento da filha?

ÉRIKA: Negligente eu fui quando ouvi você! -Elevou o tom de voz-  Eu nunca deveria ter seguido sua orientação e ter tirado os remédios da Clarisse. Negligente eu estou sendo agora vendo a minha filha sofrer e ser discriminada na escola por conta de tudo que acontece com ela! 
VENTURA:  Acreditar que ela tem um problema é mais confortante para você por que? Qual é a sua dificuldade em aceitar que sua filha não tem qualquer problema Érika? Eu já sei, você tem medo e mais do que isso, você não quer aceitar que tudo que sempre disse não acreditar está acontecendo debaixo dos seus olhos, mas é orgulhosa demais para assumir que sempre esteve errada, não é?
ÉRIKA: Você não tem o direito de me questionar dessa forma Ventura! -Disse irritada-
VENTURA: Por quê? Você não mudou nada desde que te conheci em relação a isso. Continua a mesma arrogante de sempre.

 

Ter sido chamada de arrogante por Ventura mexeu com toda a estrutura emocional de Érika que já estava abalada por conta do problema de Clarisse. Ele sabia que nada a deixava mais irritada do que ser apontada em suas falhas.

ÉRIKA: Cometi um erro vindo te procurar. -Disse irritada- Desfrute sozinho do seu vinho. -Levantou-se da mesa-

 

Érika que ameaçava sair da mesa parou seu caminhar ao ouvir Ventura.

VENTURA: Você sabe que não cometeu um erro, ao contrário, você sabe que sou o único que posso te ajudar em relação à Clarisse e por isso me procurou ou é difícil assumir isso também? -Provocou mais uma vez-

 

Érika suspirou e sentou-se na mesa. Não havia ido ali para brigar com Ventura, ao contrário, queria junto com ele encontrar uma solução para o problema da filha.

ÉRIKA: Não estou aqui para ouvir coisas a meu respeito, Ventura. Vim falar da Clarisse e do que pode ocorrer com Clara que é sua filha também só para lembrar. -Fez uma provocação-

 

Erika só provocou Ventura por achar que ele não estava dando a devida atenção ao que contava. Ele continuou mantendo seu ar sereno mesmo após ter dito que Clara estava correndo risco de morte, sem dúvida ele não faria isso se o fato fizesse referência a Angélica.

VENTURA: Não entendi essa pitada de veneno em sua fala e vou desconsiderá-la por entender que está nervosa e por isso dizendo coisas sem pensar. Você tem idéia do quanto o seu ceticismo está impedindo de ajudar a sua filha?
ÉRIKA: Agora a culpa é minha?
VENTURA: Érika você é tão maluca que exigiu que a Camille assinasse um termo a impedindo de fazer contato comigo e com a Clara para falar a respeito da Clarisse!
ÉRIKA: A Clarisse é minha filha Ventura e eu não vou deixar que você e a Clara fiquem enchendo a cabeça dela com essas coisas de além.
VENTURA: Aé? E pretende lidar com isso como? Se você não aceita as minhas colocações eu não sou a melhor pessoa para você pedir ajuda. Eu só sei orientar dessa forma, é o que eu conheço e o que eu acredito.
ÉRIKA: E você vai fazer o quê? Mandar a menina tomar banho de sal grosso? Beber água de não sei do quê? Vocês dois me mandaram parar de dar os remédios para a Clarisse, mas não me deram qualquer solução para resolver o caso dela.

 

Ventura deu uma risada debochada. Ele já havia explicado a ela a diferença entre espiritismo e misticismo diversas vezes. Érika só podia ter feito um deboche fazendo tal comentário.

VENTURA: Tanto tempo convivendo comigo e ainda não aprendeu o que é espiritismo e o que é  misticismo Érika?
ÉRIKA: Que diferença isso faz no caso da Clarisse?
VENTURA: Nenhuma, mas não confunda mais uma coisa com a outra. O espiritismo tem base científica, o misticismo não.
ÉRIKA: Amanhã vou ligar para aquele psiquiatra que cuidou dela quando era mais nova.
VENTURA: Para aquele maluco que deu antipsicótico para uma criança de cinco anos de idade?-Interveio rude- Só passando por cima do meu cadáver Érika. -Ameaçou-
ÉRIKA: Não compete a você decidir isso Ventura. A Clarisse é minha filha e tudo que diz respeito à forma como a conduzimos competem apenas a mim e ao Carlos.
VENTURA: E a Clarisse é minha afilhada e eu como médico e psiquiatra vou fazer uma denúncia se você ousar medicar novamente sua filha. Isso é uma afronta a tudo que estudei e lutei por quatro anos, a desmedicalização do que chamamos de problemas psiquiátricos. Será que você não lembra o estado em que deixaram a Angélica quando fez  uso dessas medicações?
ÉRIKA: Você optou por cuidar da sua filha não usando medicação, mas eu tenho o direito de decidir como cuidar da minha. Você não pode querer enfiar goela abaixo todas as suas crenças e suas condutas só porque defendeu um doutorado em psiquiatria pautado na não medicação. A Clarisse está sofrendo e se ela tiver que ser medicada para ter uma vida feliz ela vai ser! –Disse firme-
VENTURA: Então é assim? -Irritou-se- Você vai fazer uso do seu poder e do seu orgulho e jogar no lixo os quatro anos que me dediquei a pesquisa do doutorado defendendo que ouvidores de vozes podem ter uma vida satisfatória sem precisar de medicação para acabar com elas? 
ÉRIKA: Não é pessoal Ventura.
VENTURA: É pessoal sim senhora! Érika pelo amor de Deus! -Elevou o tom de voz quase que em um imploro-  Você vai acabar com a vida da sua filha se continuar apelando para a psiquiatria para cuidar do caso dela.
ÉRIKA: Eu não tenho outra opção Ventura. -Disse em um lamento-
VENTURA: Por que mesmo diante de tudo que se apresenta você não acredita em sobrenatural?
ÉRIKA: É. A Clarisse tem um problema e eu preciso cuidar dela assim como você cuidou da Angélica. -Levantou-se da mesa, pegou  bolsa pendurada sobre a cadeira e saiu

 

Ventura deu um suspiro entristecido ao ver Érika sair pela porta principal do Congress, ela estava tomando uma decisão muito perigosa voltando a medicar Clarisse com antipsicóticos sem ter qualquer problema psiquiátrico, aliás, ele nem acredita que existam problemas psiquiátricos. Baseado nos estudos de Thomas Stephen Szasz, um psiquiatra húngaro que ousou criticar os fundamentos sociais e científicos da psiquiatria acreditava que o transtorno mental nunca existiu, ele foi apenas um mito criado pela indústria de saúde mental que surgiu apenas para legitimar a regulação dos comportamentos permitidos ou não pela psiquiatria e que veio substituir outras instâncias que assumiam o papel regulador como a igreja, mas que entanto, perdeu forma legitimadora. Na visão de Ventura em conformidade com o autor que estudou toda doença ou era biológica ou não podia ser considerada como doença e os transtornos mentais como eram conhecidos não tinham base orgânica demonstrada logo, não eram doenças e sim uma invenção médica. O que muitos têm chamado de transtornos tem o que Ventura chama de problemas de vida,  são aquelas pessoas que relatam sofrer, mas não conseguem saber a origem da perturbação, ou seja, não há uma situação compreensível. 
                  Ter ouvido Érika dizer que optará por usar a medicação para cuidar das questões emocionais que Clarisse trazia acabou por deixá-lo imensamente chateado, ela simplesmente jogou por água abaixo toda a teoria que tem lutado para defender, a ausência de transtornos mentais e acabaria por cronificar ainda mais o quadro da filha se fizer uso de medicações tão pesadas como a que fez quando tinha cinco anos de idade.
                Clarisse tornou-se uma menina apática  e perdeu metade da infância por não conseguir realizar atividades relacionadas à sua idade. Ela parou de brincar e de jogar vídeo-game, muitas vezes Ventura sentiu-se conversando um robô ao invés de uma criança cheia de vida e potencialidades. Ele vivenciou todo o processo de embotamento afetivo de Angélica em decorrência do grande uso de medicação que fizera quando ainda estava internada na Reviver, ela perdeu toda a capacidade criativa e social. Se Érika realmente optar por fazer uso da medicação em sua filha estará condenando Clarisse a um tormento emocional maior do que tem no momento já que nunca aprenderá a lidar com seus sintomas se não tiver sob o uso de medicação.

_____

 

Eram onze horas da noite, Clara e Victor acabaram optando por comer uma pizza vegetariana em um restaurante muito conhecido em Copacabana. Victor, claro, reclamou da escolha da noiva, ele mais do que ninguém detesta qualquer coisa que tenha legumes e vegetais misturados com massas. Esse tipo de alimentação tinha que ser puro. Clara riu frente ao comentário e continuou a comer, a ladainha do noivo a respeito de seu hábito alimentar ela já conhece há oito anos. Eles são o casal com muitas coisas incomuns, mas que dão super certo um com o outro. Victor é carente, possessivo, irritadinho, gosta de arte e matemática, assiste filmes de ação e não é fã de leitura, Clara é segura de si, não tem qualquer sentimento de ciúme em relação ao noivo, esbanja tranqüilidade, detesta matemática e gosta de filmes de romance e era exatamente toda essa diferença que dava equilíbrio a uma relação de oito anos.
                 Com seu jeito sereno e pacifico era Clara quem sempre conseguia contornar todos os rompantes emocionais de Victor principalmente no que dizia respeito as suas carências afetivas. Em cinco anos ele aprendeu que não conseguirá nada cobrando atenção da noiva 24 horas por dia, Clara dava de ombros a todas as suas reclamações sempre que achava-as exageradas, era certo que o tempo juntos diminuiu após sua entrada na faculdade e que o relacionamento mudou muito desde que se conheceram, mas ela compreendia que toda essa mudança fazia parte da construção de uma nova relação e tinha plena consciência que não podia esperar que uma união de oito anos tivesse a mesma configuração de quando eram adolescentes, eles cresceram, amadureceram e o relacionamento tomou outros contornos, mas Victor não conseguia compreender toda a mudança como natural e sempre reclamava que o namoro dos dois estava esfriando por Clara não estar mais se dedicando a ele como antes. Muitas vezes o noivo chegou a comparar seu relacionamento com o da cunhada, Angélica também era estudante de medicina e ainda assim não conseguia desgrudar de Eduardo. Eles tinham tempo para se verem, saírem juntos e até viajar, situação que nunca aconteceu no seu, Clara sempre estava ocupada e com o conteúdo atrasado.
               Depois da briga que tiveram a três meses por conta daquela argumentação Vitor não tocou mais no assunto, porém, nunca deixou de indagar sobre a dedicação em demasia da noiva à medicina, Clara era inteligente e não precisava se dedicar tanto ao curso como faz.

 

PRAÇA DOS AMORES.

 

Victor estacionou o carro em frente a casa de Clara e como sempre acontece a conversa girou em torno de sua reclamação por ter sempre que ficar procurando espaços na agenda de Clara. Ela mais uma vez explicou que tudo fazia parte de um momento que iria passar e com o casamento eles ficariam mais próximos, era apenas uma questão de paciência. Victor realmente espera que a justificativa de Clara seja real porque pelo conhece dos médicos é possível que o tempo juntos fique ainda mais escasso quando ela se formar.


VICTOR: Prontinho! Está entregue doutora. -Fitou Clara com um sorriso-
CLARA: Não quer subir um pouco?
VICTOR: Isso é um convite malicioso?

 

Clara deu uma risada da pergunta do noivo.


CLARA: Você não tem jeito mesmo.
VICTOR: O que eu posso fazer se não consigo evitar? -Piscou o olho direito enquanto acariciava o rosto da noiva-
CLARA: Para quê eu fui falar.
VICTOR: Como está sua agenda amanhã?
CLARA: Como sempre esteve, atolada.
VICTOR: Você não vai ter nenhum tempinho vago? -Dramatizou-
CLARA: Amor, eu vou tentar, mas você sabe como são essas coisas.
VICTOR: Eu sei. Não estou te cobrando. Só quero ficar com você um pouco. -Disse com ternura-
CLARA: Me desculpa se tenho me afastado de você por conta da faculdade, mas...

 

Victor interpelou a frase de Clara.

VICTOR: Psiu! Não se desculpe. Eu entendo perfeitamente.
CLARA: Eu te amo por isso. -Sorriu-
VICTOR: Eu também te amo. -Beijou-lhe os lábios-
CLARA: Se eu conseguir um tempo livre eu te ligo.
VICTOR: Eu vou esperar ansioso.
CLARA: Tchau amor! -Despediu-se-
VICTOR: Te mando mensagem amanhã.
CLARA: Vou amar. -Sorriu- Tchau.
VICTOR: Tchau amor.

 

Clara saiu do carro, abriu o portão de sua casa e entrou. A sala escura e silenciosa dava a entender que todos já estavam dormindo, já eram quase meia noite. Sem acender a luz Clara subiu as escadas, atravessou o corredor e entrou em seu quarto. A janela estava aberta e o vento balançava a cortina, possivelmente seria mais uma noite de chuva intensa. Ela acendeu a luz e a fechou, sua cama ficava embaixo da janela e não queria correr o risco de ficar molhada caso chovesse no meio da madrugada. Assim que virou-se para se trocar deparou-se com alguém que jamais esperava encontrar aquela hora da noite.

CLARA: Ahhhhh!!!!!!! -Gritou-

 

CONTINUA...

 


Notas Finais


Se vocês gostaram do capítulo não deixem de favoritar e comentar.
Obrigada pela leitura!


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