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  3. 3 de Dezembro, 2018 - Segunda (23h41)

História O Monótono Diário de Isaac - 3 de Dezembro, 2018 - Segunda (23h41)


Escrita por: lyanklevian

Notas do Autor


(se você tiver WATTPAD, recomendo ler por lá que tem imagens e coisas compondo as notas de autor que as tornam mais legais)

NÃO PULE ESSA INTRO, É IMPORTANTE.

. . .

Readers do meu coração, hoje faz EXATAMENTE 6 meses desde o último capítulo que publiquei de Isaac. Meio ano.

Meio... fucking... ano. (ó_ò) (T__T)

Não me orgulho desse afastamento, pois isso esfria tudo: leitores esquecem da história (e da autora), autora perde fio da meada... Uma droga. Só coisa ruim.

Desde a metade do ano passado eu estava tendo alguns problemas gerais que acabaram gerando um bloqueio criativo horrendo. Daqueles que eu sentava e não saía NADA. Não passava um dia sem que eu quisesse enterrar minha cara no primeiro buraco de lagarto que encontrasse (e olha que onde moro tem um monte).

Enfim, não vou me alongar falando de meus problemas (e não precisa mandar DM pedindo para eu dar detalhes, porque não é de meu feitio falar dessas coisas, hehe). Basta saber que já estou muito melhor, e que estou voltando aos meus processos criativos. Não com a eficácia que eu gostaria, mas... Certamente é melhor do que o "nada" de antes.

Bom, depois de tanto tempo afastada do diário, precisei reler algumas partes (justo esses últimos, que são mais dolorosos, num momento que eu estava recolhendo meus cacos... foi foda). Só depois de pegar o fio da meada voltei a escrever o capítulo (ouvindo sons binaurais no Spotify, com incenso de baunilha, para ajudar na concentração).

Eu estava tendo um excesso de preocupações na hora de escrever, e isso é péssimo! Tenho colocado o foco na FORMA em vez de simplesmente por a história para fora. Este é um dos maiores erros de quem escreve... Afinal, a FORMA só aparece depois da revisão. O primeiro rascunho é um treco mal feito mesmo (e isso é normal), e tenho que aceitar que vocês vão acabar vendo isso. Entenda: deixar vocês lerem meu livro SEM REVISÃO é tipo mostrar meu pior lado como escritora, sabe? E isso gera umas paranoias muito loucas em mim.

O_o

Então quero reforçar a vocês algo que eu sempre falava no início dos capítulos: isso é apenas o RASCUNHO de um livro. O que vocês estão vendo é como uma casa no tijolo. Sem reboque, sem azulejo, sem porta nem janela.

E não falo isso para depreciar este livro. De jeito nenhum. É apenas para você entender que isso não é o produto final. É uma versão rascunho e sem revisão de algo que estou tendo a coragem (ou a falta de vergonha na cara, como preferir) de compartilhar com vocês.

Mas garanto uma coisa: é do fundo de minha alma. 🥰

E por falar em produto final, a versão definitiva de Isaac terá umas alterações significativas. Inclusive, duas delas tenho que falar desde já para vocês, senão os capítulos seguintes podem gerar confusão:

MUDANÇA 1) A mãe de Isaac terá morrido quando ele ainda era bebê. Ele cresceu com a avó e o pai, apenas. A única mãe dele é a avó. Então todas as cenas em que a mãe apareceu, na verdade é a avó paterna dele, que age como mãe. Beleza? Nada chocante até aqui.

MUDANÇA 2) O noivo da Jaqueline, Jonas, vai ser primo de Isaac, mas de uma forma que ainda não posso revelar. Eu queria manter isso como surpresa, mas se eu não te contasse, poderia MESMO causar confusão nos capítulos seguintes (pois já vou começar a escrever com essa nova mentalidade). Então basta saberem: Jonas é primo do Isaac.

(◉_◉)

Sei muito bem que ele é um personagem apagado e tão importante quanto aquela planta no quintal que você esquece de regar... Mas essa é uma das coisas que serão trabalhadas na revisão. Lembre-se: este conto é uma casa no tijolo, sem reboque, nem piso, nem janela e nem porta. Uma bagunça só. Mas cujos contornos já podem ser vislumbrados por quem tem sensibilidade.

Tipo você, que me acompanha 💙

Uma ultima coisa: este capítulo (que você vai ler mais abaixo) ainda não está completo.

CALMA, NÃO SE IRRITE 😅

Eu sei... Eu deveria vir aqui e fazer a coisa completa, mas... Não deu. É sério.

Como eu não queria faltar com a palavra (pois a promessa era de os capítulos voltarem HOJE), resolvi publicar em duas partes (hoje é a primeira parte). É que o capítulo é grande, então não deu mesmo para terminar tudo esse fim de semana. Mas até quarta-feira já termino e posto o restante, ok?

O mais importante de tudo é: O MONÓTONO DIÁRIO DE ISAAC voltou.

Minha intenção é publicar às segundas. É que segunda-feira é um dia normalmente odiado. Então quem sabe um "capitulinho" não ajude a melhorar, não é mesmo?

Então é isso. Desabafo feito, avisos dados. Tudo o que resta agora é soltar o e-mail de nosso querido Isaac.



(depois do capítulo tem um aviso legalzinho, então não deixe de ler, tá? ^_^)



Obrigada, de verdade! Por não ter desistido de mim e de meu trabalho apesar de todo esse hiato.

Putz, sério mesmo... Obrigada, obrigada, obrigada!!!

Capítulo 137 - 3 de Dezembro, 2018 - Segunda (23h41)


Fanfic / Fanfiction O Monótono Diário de Isaac - 3 de Dezembro, 2018 - Segunda (23h41)

03 de Dezembro, 2018 – Segunda (23h41)


De: [email protected]
Para: [email protected]
Assunto: Viadjá pa sêmpi no tio Dáki

 

Hey, amiga! Boa tarde! Faz pouco tempo desde o último e-mail que mandei, mas para mim a impressão é que se passaram semanas! E essa é uma sensação bem esquisita.

Eu explico.

Lembra do que eu falei sobre a mudança do Lucas? Bom, naquele mesmo dia comentamos com a Jaqueline sobre essa decisão, e ela ficou super dividida entre a alegria e a preocupação. Olhou para mim e fez praticamente a mesma pergunta que o irmão havia feito na terça à noite: “Tudo bem mesmo, Dáki? Você tá pronto pra uma mudança dessas depois de tudo o que rolou? Você sabe que, se ele vier, vai ter que ser definitivo, né?

Eu sei”, respondi tentando dar o meu melhor sorriso (que não foi tão bom assim, mas foi o bastante para convencer minha cunhada de que eu estava decidido).

Estávamos na varanda de casa, curtindo uma sombra em meio ao calor. O Nicolas estava na cadeira de rodas alugada, olhando para mim e para a irmã, que perguntou:

Já falou com a Dona Rosa?

E o Nick respondeu tirando o celular do bolso.

Vou fazer isso agora”.

Enquanto ele aguardava ser atendido, eu e a Jack ficamos encarando-o meio tensos. E após os cumprimentos básicos e papo raso de elevador, ele finalmente desembuchou:

Nós estamos prontos para receber o Lucas aqui… O que a senhora acha?

Ele deu uma piscada para mim e para a Jack, com um semi sorriso no rosto. Em seguida a tranquilizou falando que o quarto e a cama estão prontos, e que só faltaria a permissão dela.

Por um momento, a voz da avó do Lucas que escapava do celular silenciou. Depois de tudo o que nos aconteceu, é compreensível que ela ficasse em dúvida. A Dona Rosa sabe apenas uma parte de tudo o que rolou (basicamente, apenas o que saiu no jornal: sequestro, seguido de acidente e morte “acidental” de criminoso). Ela não tem ideia do show de horrores que envolveu a mim e ao Nicolas, e desconfio que se soubesse talvez teria negado sem pensar duas vezes.

Mas, para nosso alívio, não foi o que aconteceu. Depois daquela pausa de quem reflete profundamente, ouvi ela dizer no outro lado da linha: “Ahh… Vou sentir saudades desse pequeno ao meu lado todos os dias! Já estou tão acostumada! Ele mora aqui desde sempre…

Nessa hora parece que alguém soprou ar gelado em meu estômago, ao mesmo tempo em que queimavam meu peito. A sensação foi tão forte que acabei colocando as mãos perto do coração, e senti que ele estava acelerado. Uma mão pousou em meu ombro, e olhei para o lado. Era a Jack, abrindo um sorriso de fada enquanto comemorava em silêncio para não interromper a ligação do Nick, que também tinha um sorriso bobo no rosto ao agradecer a Dona Rosa com dezenas de promessas de que tudo ficaria bem.

Demorou para eu me ligar que também estava sorrindo pra valer. E só notei isso porque minhas bochechas começaram a doer depois de um tempo. Minha cunhada me abraçou, e eu estiquei o braço para que o Nicolas também fizesse parte dessa comemoração silenciosa (não queríamos fazer algazarra ao telefone… vai que a Dona Rosa mudasse de ideia caso ouvisse um bando de doido gritando). Notei que o Nick secou rapidamente os olhos com o indicador e o polegar, e depois se virou para nós com um sorriso que parecia ser de alívio.

A Jaqueline entrou em casa dizendo que pegaria um vinho para comemorar.

Não está cedo demais pra beber?”, o Nick perguntou.

Nunca é cedo demais para comemorar algo tão bom! Jon, vem aqui porque tem novidade!

O Jonas estava na mesinha do caixa da floricultura – que fica próxima ao portão, bem afastada da varanda onde conversávamos –, então não tinha ouvido nada. Quando ele chegou, sem pressa, já havia dado tempo de a Jaqueline pegar a garrafa de vinho (e nenhuma taça), abrí-la e dar o primeiro gole no bico.

O Lu vai vir morar com a gente, Jon!”, ela disse, passando-lhe a garrafa.

Oxe”, ele soltou, já arregalando os olhos e se voltando para mim. “Tá certo isso aê, depois daquela maré de azar? Quero dizer… Não que eu ache ruim, mas… Vai saber, né?

A impressão que eu tive era a de que ele havia pescado um pensamento no fundo do limbo de minha mente, e cuspido para todos verem. E talvez a Jaqueline tenha notado isso, porque deu nele um tapão no braço.

Enquanto eles trocavam a garrafa de vinho entre si (evitando me oferecer por motivos que nem preciso explicar), o Nicolas pedia silêncio com o dedo, pois estava novamente ao celular. Tenho certeza que, se ele não estivesse em cadeira de rodas, teria descido a escada da varanda e se embrenhado entre as árvores para falar em paz.

Do outro lado da linha, quem atendia era o conselho tutelar.

É certo que o Nicolas, como pai (e atual portador da guarda oficial do Pinguinho, yêêêy), teria todo o direito de trazê-lo para morar conosco sem precisar dar satisfações a (quase) ninguém. Mas, como o Jonas fez o desfavor de lembrar, depois de todas as merdas que aconteceram, os membros do conselho pediram para que qualquer mudança fosse comunicada.

Para encurtar as partes enfadonhas, já adianto que na quinta-feira, o dia seguinte à ligação, vieram duas pessoas do Conselho visitar nossa casa (ainda tenho crises de satisfação ao dizer “nossa casa”), e verificar se tudo estava dentro dos conformes. Eles checaram tudo mesmo, desde o quarto do Lucas (o que achei natural), até as condições do banheiro e da cozinha.

O legal é que, ao entrarem no quarto do Lucas, deu para notar que ficaram impressionados. Eles elevaram as sobrancelhas, sabe? E ficaram comentando entre si que gostariam de um quarto daqueles quando crianças. E realmente, eu mesmo babo naquele quarto, imaginando como minha infância seria diferente se eu tivesse um daqueles só para mim. Como eu dividia um quarto minúsculo com minha avó, nunca soube o que era ter um espaço só meu até me mudar para cá (sensação que não durou muito – o que não lamento nada, pois dividir a cama com o Nicolas é ainda melhor do que o mais lindo dos sonhos).

Ah, que satisfação foi aquela de ver a aprovação dos membros do Conselho Tutelar sobre o quarto do Lucas! A estante de brinquedos, com duas prateleiras reservadas aos livrinhos infantis, foi o destaque. Eles pediram permissão para abrir o guarda-roupas, e viram que estava quase tudo lá (o restante das roupas minúsculas estava com a avó do Pinguinho, o que é óbvio a qualquer ser humano que pensa minimamente).

Depois da excursão deles pelo Pântano dos Mosquitos (com o Nicolas se esforçando mais do que devia para acompanhar, usando muletas e fingindo que a perna não doía, coitado) ainda ficamos conversando por quase uma hora (nessa hora ele ao menos sentou). Aliás, deixe-me corrigir: o Nicolas, a Jaqueline e o Jonas é que conversavam mais. Eu ficava mais ouvindo e olhando para eles como quem assiste a uma partida de vôlei: bola de um lado, bola do outro… Olha para cá, olha para lá… Concordava às vezes com o que falavam, mesmo que eu estivesse quase invisível ali e minha concordância fosse quase tão importante quanto uma folha morta que se desprendia do galho mais alto (a folha era, provavelmente, mais notável que minhas opiniões).

O assunto girava principalmente a respeito dos planos futuros para os estudos do Pinguinho, e depois eles contaram sobre a trágica morte dos pais dos gêmeos num acidente com raio durante uma viagem a dois à praia, quando o Lucas ainda era recém nascido. Enquanto eles contavam o caso, com vozes baixas, passou pela minha cabeça que é o tipo de coisa perfeita para acontecer em minha vida cheia de “sorte para o azar”, mas fiquei quieto. Mesmo que estivesse apenas eu e o Nicolas, nunca teria coragem de falar isso em voz alta (você é a única para quem acabei soltando essa pérola arrancada de meu limbo mental).

Depois de um momento de constrangimento geral em que as visitas diziam sentir muito pelo passado dos avós do Lucas (seguida pela resposta dos gêmeos dizendo que já superaram), o foco finalmente chegou onde eu mais temia: a minha existência, que eu até aquele momento estava grato por ser desprezada como um inseto inofensivo passando por perto.

De repente eu era o foco.

E você… Isaac, não é? Essa casa é realmente sua?

Sabe quando todos da roda de repente param tudo o que estão fazendo e olham para você? Ah, como me senti mal… Acabei dando um passo para trás, quase como se eles estivessem me ameaçando de morte.

Percebi que o Nicolas abriu a boca para falar algo, mas o Jonas foi mais rápido. Deu umas batidinhas em meus ombros e disse:

É verdade! Esse doido comprou o casarão do Senhor Roberto. Lembram dele? Morreu faz uns oito anos na cozinha!”, perguntou, olhando para os membros do Conselho.

Ah, aquele que foi devorado pelos próprios cães, e só descobriram por causa do mau cheiro do cadáver?”, perguntou um dos caras que nos visitavam, fazendo minha existência voltar a ser como a da folha, que agora eu pisoteava para fazer aquele crec agradável sob a sola de meu tênis sujo de terra.

Aparentemente foi esse meu passo para trás, de quem quer sumir dali, que fez com que a atenção se voltasse para mim uma segunda vez. Parecia que a tensão de antes havia se esmigalhado – junto com a folha –, pois os olhares que se voltavam para mim não eram mais de predadores, e sim de curiosos (se bem que, entre predadores e curiosos a sensação de estar sendo devorado é a mesma).

Você é realmente…”, hesitou o membro do Conselho, com aquela cara de quem quer perguntar se eu sou mesmo gay (sério, estava na cara que ele queria perguntar sobre isso).

Então o outro resolveu o embaraço de uma forma menos idiota:

Você e o pai do Lucas estão num relacionamento sério, não é?

O Nicolas ficou olhando para mim por alguns segundos. Sinto que se eu travasse, ele responderia prontamente, mas não foi necessário. Meu coração estava disparado a ponto de doer, mas consegui articular a língua:

Ah, sim… A gente está namorando.

Quando eu disse isso, ouvi a Jaqueline soltar o ar dos pulmões, com cara de alívio. Em seguida ela segurou minha mão, que estava tremendo atrás das costas.

Podem ficar de boa. O relacionamento deles é sério”, ela disse. Ela com certeza deve ter captado no ar uma dúvida por parte deles, já que uma parte da sociedade se esquece que pessoas como eu (e como o Nick) têm sentimentos e amam de verdade.

A resposta dos dois foi um suspiro. Sabe quando alguém desiste de uma discussão e deixa nas mãos do destino? Algo como “fazer o quê, né”… Tipo isso. Eu não tenho como me enfiar no pensamento deles (e nem quero), mas tenho para mim que desaprovam dois homens juntos com uma criança pequena por perto. Devem ser daquela laia de ignorantes que acham que a criança vai ser influenciada e virar “bicha” (e se for, e daí, porra? Que inferno de sociedade, vão se foder).

Ah, enfim… Eles deram o aval deles, concordando com a mudança do Pinguinho para nosso casarão de madeira pintado de branco. O restante daquela quinta-feira foi de planos que começamos a fazer, sonhando acordado sobre a chegada do Lucas.

Por várias horas, foi como se eu tivesse realmente me esquecido de todas as coisas ruins que aconteceram. Bom, esquecer, não me esqueci, mas… Pela primeira vez desde aquele dia meus pensamentos começaram a mudar para algo mais longe das sombras pegajosas com cheiro de podridão.

À noite o Nicolas fez uma chamada de vídeo para o Lucas, e ficamos um tempo conversando. O Pinguinho contou coisas bobas sobre as quais eu ouviria a vida toda sem me cansar. Coisas leves de criança, como o fato de a ponta do lápis ter saído quase inteira quando ele a puxou para fora. Ele foi todo contente buscar a ponta do lápis para mostrar, e deixou o celular no chão nesse meio tempo. Ficamos dois minutos olhando para um tela que mostrava o teto da sala de Dona Rosa até ele voltar e pegar o celular novamente para focar em seu rostinho pequeno de sorriso fácil.

Quando a ligação terminou, a Jaqueline se aproximou e declarou:

Dáki, amanhã é a última sexta-feira de Novembro, e vai ter promoção em todas as lojas. Você vai comigo”. Note que ela não perguntou se eu queria ir junto. Ela simplesmente declarou que eu iria, e pronto. “Tem umas coisas que preciso comprar, e vamos aproveitar e pegar umas roupinhas novas para o Lu, também… Essas logo ficarão pequenas!

Na manhã de sexta-feira acordei alguns minutos antes do combinado com a Jack. Tive outro pesadelo, onde eu era perseguido ao longo de uma torre, escadaria acima. Quando cheguei ao topo, comecei a morder meu perseguidor, arrancando pedaços com os dentes e cuspindo-os pelas janelas da torre. A pessoa que me perseguia era o Marcus, e o sangue vertia de todos os nacos de carne que eu arrancada dele. Depois ele se desequilibrou, e ficou pendurado na beirada da torre. Eu olhei para ele, mordendo-o novamente para que caísse.

A sensação ao acordar foi horrível, principalmente pelo fato de eu ter arrancado pedaços dele com os dentes (que fique bem claro: no sonho!). Mas teve certo alívio também ao notar que era apenas um pesadelo.

Fiquei um tempo deitado, olhando para o Nicolas dormindo, e fui me acalmando. Tentei não lembrar de tudo o que passou, tentei deixar para lá o fato de ter sido invadido pela cria de Satanás, mas não consegui. Aquela coisa estranha em minha pele estava lá, e fui para o chuveiro, me esfregar. Não com a esponja, pois os ferimentos que eu mesmo fiz com a fricção estão doloridos. Mas usei um sabonete bactericida em toda a área de minha virilha, e entre as nádegas. Em seguida, usei uma pomada que compraram para mim (pois eu estava acabando com a do Nicolas, que ele precisa passar na perna), e me vesti para ir ao centro da cidade com minha cunhada.

Quando voltei ao quarto (o cantinho fofo do Lucas), vi que meu namorado já estava acordado, acomodado na cadeira de rodas, olhando para as árvores pela sacada que dá vista para as árvores lá fora. Ele sequer estranhou minha ausência no colchão ao lado da cama, pois tem sido comum eu acordar mais cedo para tomar banho. Ou melhor, para me exorcizar.

Como você está, Zak?

Dei de ombros e forcei um sorriso, indo até ele para ser abraçado na cintura. Ele encostou a cabeça em minha barriga, ainda nua por eu não ter vestido a camiseta, e beijou a cicatriz ao lado de meu umbigo.

Outro pesadelo?

Uhum, mas não quero ficar contando… Basta você saber que tinha sangue e morte envolvido. De novo…

Ele suspirou e encostou o queixo em minha barriga, olhando para mim. A barba rala fazia cócegas, então abri um sorriso mínimo. Notando isso, ele friccionou o queixo ainda mais em meu flanco, e o sorriso virou risada. Eu não me afastei. Sabia que se eu saísse de perto ele não conseguiria me perseguir, por estar com a perna machucada, então continuei ali, recebendo aquelas cócegas horríveis (sério, cócegas é desagradável pra cacete), mais ao mesmo tempo feliz por ele estar fazendo aquilo. Um ato quase masoquista de minha parte, pois detesto sentir cócegas (principalmente no flanco, onde sou mais sensível pra isso), mas foi o que fez eu me sentir melhor naquela manhã de sexta-feira.

As cócegas viraram beijos leves, e aos poucos se tornaram beijos úmidos. Ele não tocava a língua em minha pele, mas eu sentia a saliva de seus lábios sendo depositada em mim, descendo pelo meu umbigo. Descendo bastante. Esses toques da boca do Nicolas tão próximos de minha virilha causaram uma confusão aqui dentro. Havia um Isaac que queria afastá-lo, e outro que desejava mais. Essa confusão chegou a doer.

Ah… Nick…”, sussurrei, afastando-o. “Ainda não consigo…

Os olhos verdes se voltaram para mim, transbordando compreensão naquele sorriso bondoso que só vi nos Belson até agora, em toda a minha vida.

Eu teimo em sempre pensar que não mereço essa dádiva toda, mas ao mesmo tempo a quero inteira para mim. Os dois Isaacs que ocupam minha alma têm opiniões diversas demais às vezes. Um quer matar o outro, de tanto que se odeiam, e isso faz com que eu me odeie como um todo, de tão confuso é essa coisa de estar vivo.

Mas sou grato por existir, no fim das contas. E parece que nisso minhas duas partes têm concordado ultimamente. Eu quero estar vivo. Quero estar com ele. Com eles todos.

Ah, olha só eu dispersando dos relatos novamente…

Depois daquele sorriso de matar Isaac, encostei minha testa na do Nicolas, depois me curvei mais até alcançar o pescoço dele. Sentir o cheiro leve de suor de meu namorado logo pela manhã me causa um rebuliço no peito, como se uma injeção de força corresse minhas veias. Beijei-o perto da clavícula, não num ato erótico, mas admirando a pele que se arrepiava sob meus lábios.

Obrigado”, falei, tocando a ponta de nossos narizes.

Hum… Pelo quê?

Pela cara dele, era mais uma pergunta de desafio do que de curiosidade. Antes que eu respondesse, a Jack me chamou lá de baixo, dizendo que já estava pronta.

E deixei-o sem uma resposta verbal, apenas sorrindo para que soubesse que minha gratidão era por tudo. Absolutamente tudo. E sei que ele entendeu, pois deu uma piscadela antes de eu sumir no corredor que dava para as escadas.

Fui até o carro, onde a Jaqueline já me aguardava com os óculos escuros que a faz parecer mais legal do que já é (se eu curtisse garotas, certamente me apaixonaria por ela, não tenha dúvidas, pois minha cunhada estava incrível com o cabelão solto, decote provocante, salto e saia curta). Sério, ela estava estonteante. Quase mudo de time (não, brincadeira).

Bóra, gatinho?

Respondi um “bora” sem jeito enquanto olhava pela janela do passageiro, onde eu estava. Quando o carro passou pelo portão, o Jonas se aproximou para dar um beijo nela, e me encarou sério:

Cuida da minha noiva, pra ninguém roubar ela de mim!

Ela o chamou de bobo, e o beijou novamente. Sinto que se eu não fosse “eu” (se é que me entende), ele não ficaria tão de boa em ter um cara saindo com a futura esposa gostosa. Não que ele faça o tipo ciumento, mas a Jack é realmente alvo de olhares de todos os tipos de pessoas (e confesso que isso me deixa desconfortável, pois eu também acabo sendo, por estar ao lado de uma diva).

Assim que o carro fez a curva, perdendo nosso casarão de vista, a música foi ligada no carro, e o caminho até o centro de Eloporto foi banhando pelos toques de Take on Me, daquela banda A-Ha (que sempre me lembra alguém tendo uma ideia). Pop dos anos 80 não é o estilo de música que costumo ouvir (curto mais solo de guitarra acompanhada de um baixo e bateria num bom rock), mas os toques dessa música, que a Jaqueline deixou em looping infinito, fizeram com que aquela manhã se tornasse única.

Ela sabia a letra, então tive uma oportunidade de ouvi-la cantando em um inglês que me parecia perfeito. Ela começou a mover os ombros no ritmo da música, e olhava para mim, incentivando-me a fazer o mesmo.

Ah, você consegue imaginar o constrangimento que senti? Normalmente eu precisaria de umas quatro taças de vinho para fazer aquilo… Mas… A Jack continuou animada, e aumentou o volume quando a música recomeçou. Ainda faltavam uns bons quilômetros até o nosso destino, então devo confessar que minha cunhada teve tempo o suficiente para me convencer (e teve, por acaso, algum dia em que ela não conseguiu?).

Quando estávamos a poucos minutos do centro comercial de Eloporto eu já nem parecia o Isaac Rodrigues dos últimos dias, amiga. Imagine a cena: na medida do possível (para quem está sentado no banco de um carro), dancei com a Jaqueline no ritmo de Take on Me.

E a parte incrível: me diverti demais fazendo isso! Agora essa música, para mim, é sinônimo de andar de carro com a Jack (e, de preferência, com o volume bem alto).

Só fomos desligar o rádio quando estávamos quase chegando na loja que ela queria (ou melhor, asss lojasss, pois a ideia era rodar o centro todo). Ao sair do carro, ela colocou o óculos escuros no topo da cabeça, como uma tiara segurando a mechas loiras, e segurou em minha mão para andarmos no meio da multidão ao longo das calçadas largas do centro de Eloporto. Se alguém pensou que éramos um casal de namorados, certamente notou o fato de eu ser uma cabeça mais baixo que ela. Tanto por eu não ter uma altura exatamente privilegiada, quanto pelo fato de ela ser naturalmente mais alta que a média e estar de salto [lovely complex].

Me senti deslocado, confesso. Mesmo com uma mulher ao meu lado e não sendo visto como “o cara gay com rostinho de boneca”, ainda me sinto um esquisito no meio da multidão…

Levante a cabeça, Dáki. A fumaça do seu cérebro fervendo tá chegando aqui. Levante a cabeça e pare de pensar demais, senão suas engrenagens vão derreter”.

Ri de leve e olhei para frente, mas o sentimento de ser um esquisito continuou incomodando. Era uma unha afiada arranhando uma lousa nos confins de meu ser, como já tem sido há vinte anos. Não é de um minuto para outro que a coisa vai passar, não concorda? E tratamento de choque, daqueles que nos coloca mergulhado em nossos pavores, não é exatamente o estilo de terapia com o qual concordo.

Entramos em várias lojas de bugigangas, e naturalmente não saímos de mãos vazias. Essas lojas de cacarecos tem uma aura que hipnotiza nosso “eu consumista”, fazendo-nos comprar até as coisas mais inúteis do universo, apenas porque sim, obrigado. E a coisa mais legal que compramos lá foi uma luminária para o quarto do Lucas, daquelas que projetam estrelas nas paredes, sabe? Eu sempre via propagandas e fotos daquilo, mas nunca tinha visto um de verdade.

Em outras lojas, pegamos coisas para a cozinha, umas trocas de panelas e talheres, alguns bancos acolchoados que a Jaqueline achou que ficariam bem no canto da sala (e de fato, ficaram ótimos), e numa loja encontramos cortinas a um preço que poderíamos pagar.

Sim, finalmente as cortinas! Porque ainda estávamos tapando as janelas da sala com lençóis velhos.

Pegamos todo o conjunto de varões e parafusos, todos num tom branco para não deixar a casa parecendo a de um vampiro excluído da sociedade. Confesso que, se eu estivesse sozinho, talvez tivesse escolhido alguma cor escura, mas a Jaqueline estava certa (para variar) em sugerir cores claras. Já não basta o lado de dentro da casa ainda ser daquele tom tenebroso de madeira (o casarão foi pintado de branco somente pelo lado de fora).

Assim que guardamos os vários pacotes de compras no carro, fomos numa loja de roupas infantis, onde ajudei a escolher camisetas e bermudas para o Pinguinho. Escolhemos tamanhos ligeiramente maiores do que as que ele usa, já pensando no fato de que dará uma esticada nos próximos meses… E nem vou me alongar aqui nos pensamentos que me vieram sobre o Lucas crescer, pois é um misto de alegria e tristeza por saber que ele não vai ser um Pingo de gente para sempre.

Num certo momento, enquanto olhávamos as estampas das camisetas minúsculas, a Jack perguntou, bem baixinho para que apenas eu ouvisse em meio a tantos clientes: “E como você e meu irmão estão? Ele se fechou que nem ostra para você, ou está agindo que nem gente?

Ele tá ótimo comigo. Sou eu que… Ah, Jack… Sou fraco demais!

Era de fato o que eu achava. Falei isso lembrando daquela mesma manhã, em que o Nicolas havia me beijado abaixo do umbigo, me deixando com a desagradável sensação de alerta.

Fraco?”, a Jack disse, por um momento se esquecendo de abaixar a voz, o que fez algumas pessoas olharem, curiosas. Foi num semi-sussurro que ela continuou: “Eu nunca, jamais, chamaria você de fraco, Dáki. Desde que te conheci você tem aguentado mais coisas do que eu própria iria suportar. Desde aquele seu pai, que…

Aquilo não é meu pai. Eu não tenho pai.

Ah, sim. Mas, desde o fato de ter convivido com aquele coiso por anos antes de se mudar, o incidente com o canivete na praça, a Sônia infernizando sua vida… E as coisas da semana passada. Enfim, Dáki, você pode estar todo machucado por dentro, mas fraco você não é”.

Eu não tive muita reação. Continuei olhando as roupas infantis, passando de uma para outra como quem procura uma palavra no dicionário.

Inclusive, você é uma das pessoas mais fortes que conheço”, finalizou ela.

Mas eu só consigo ser forte quando esqueço. Em todos os outros momentos sinto como se eu fosse definhar, e tenho vontade de desaparecer, ou de perder a memória”, falei, parando numa roupa particularmente vermelha como sangue. “Não sei se você viu, Jack, mas as partes do corpo dele estavam espalhadas pela estradinha de terra… Tinha um pedaço de carne esticada, segurando as duas metades da mesma perna. Pele enrolada, suja de terra… As tripas dele escapando, Nunca vi tanto sangue espalhado… E o cheiro, Jack… O cheiro…

Aquelas porcarias de lembranças estavam voltando. Tive ânsia de vômito no meio da loja, mas tapei a boca e apertei as pálpebras, forçando-me a pensar no vazio. Minha respiração estava acelerada, e ouvi alguém perguntar se eu precisava de uma ambulância. A voz da Jack dispensou a ajuda com doçura, e senti as mãos quentes dela em meus ombros.

Vem, Dáki, vamos tomar um ar…

Ela deixou o cesto de camisetas selecionadas com uma vendedora, pedindo para que reservasse, e fomos para o lado de fora. A quantidade de pessoas andando de um lado para outro era tão intensa lá fora quanto dentro da loja. Então a Jaqueline sentou-se comigo numa mureta, e puxou minha cabeça para o ombro dela, de forma que minha testa tocasse sua pele.

Feche os olhos, Dáki… Faz de conta que não tem ninguém. E pense em algo de que goste muito, ok?

O rosto do Nicolas foi a primeira coisa que me veio à mente. E ouvi a voz da Jack, que começou a cantarolar uma versão lenta e muito bonita de Take on Me. Com ela cantando daquele jeito, e eu prestando atenção à letra em inglês, a música soou meio triste. A tradução do trecho que ela escolheu é assim: “Não é preciso nem dizer que não valho muito, mas seguirei mesmo tropeçando, aprendendo aos poucos que a vida é boa”.

A cantiga dela teve o tom exato para que meu coração acelerado se acalmasse. Parecia que minha respiração estava tomando o ritmo lento da canção cantada vagarosamente por minha cunhada. E por um momento eu realmente esqueci que estava sentado em uma mureta ao lado de uma loja lotada de clientes, com transeuntes populando a calçada como um formigueiro remexido por uma criança incauta.

Quando minha mente começava a se embrenhar de volta à cena grotesca de morte, eu me forçava a mudar de canal, pensando em qualquer outra coisa.

Aos poucos fui abrindo meus olhos, e encarei as safiras à minha frente, tão parecidas com as do Nicolas, mas com maquiagem e cílios maiores. Havia uma marca mais escura escorrendo dos olhos dela até a bochecha.

Ah, Jack, acho que algo sujou aqui

Imediatamente ela buscou um espelho na bolsa e limpou o que eu sabia ser uma lágrima misturada com rímel. Em poucos segundos a diva estava recomposta, e fingi não perceber nada.

Pelo visto, aquelas merdas da semana anterior não afetaram apenas a mim e ao Nicolas.

Acho que já chega de lojas por enquanto… Não é?”, ela disse, respirando fundo e apertando minhas bochechas. “Vamos só pagar as roupas que escolhemos pro Lu, e ir embora. À noite a gente volta… Ainda tem uma coisa que preciso comprar”.

Quando perguntei do que se tratava, ela apenas piscou e mordeu a língua de lado, como se estivesse guardando um segredo.

Chegar em casa e ver o Nicolas atendendo a clientes (mesmo travado na cadeira) junto ao Jonas foi uma lufada de ar fresco em minha alma. Assim que os clientes saíram, nós almoçamos. Em seguida veio o momento pelo qual mais esperávamos, e foi a Jaqueline que anunciou:

Hora de buscar o Lu! A Dona Rosa avisou que as coisas dele estão prontas. Dáki, vem comigo de novo?

Eu olhei para o Nicolas, quase com pena, pois sei que ele queria muito estar lá nesse momento. Mas a movimentação de sair da cadeira de rodas para o carro, e de lá para a cadeira novamente, na casa de Dona Rosa, poderia fazer a perna dele piorar. De acordo com os médicos, ele sequer deveria sair da cama, mas foi teimoso o bastante para afirmar que acabaria enlouquecendo se ficasse preso lá em cima (de boa, eu certamente faria o mesmo).

Zak… Filma a reação dele pra mim?”, foi o pedido que o Nicolas me fez antes de a Jack dar a partida no carro. Os olhos eram uma mistura de brilho e lágrimas. Mostrei meu celular em mãos, à postos para gravar, e concordei com a cabeça. Mesmo se ele não pedisse, eu o teria feito.

Quando o carro já estava em movimento, foi a Jack que quase embargou a voz ao dizer: “Ah… A gente sempre sonhou com esse dia! Ele vai morar com a gente de verdade!

Está certo que eu conheci os Belson apenas há uns sete meses, mas o pouco que vi sobre a rotina deles com o Lucas (e a briga que deu para essa vitória da guarda) foi o suficiente para entender os sentimentos da Jack, porque eu também estava assim.

Um pouco antes de chegarmos na casa de Dona Rosa minha cunhada disse:

Valeu, Dáki…

Hein? Por que?

Por ter sugerido de o Lu ir morar na sua casa

Ah… A casa é nossa, agora. Sabe disso.

Ela deu um sorriso rápido, mantendo a atenção no trânsito.

Estou morando lá, sim, mas a casa é sua e do meu irmão, não minha. No início do próximo ano, Depois do casamento com o Jon, vou liberar seu quarto, aí vocês terão uma vida de casal de verdade.

Acho meio triste pensar nisso. Sei lá, você indo embora…

Ai, Dáki, por favor… Só vou morar em outra casa. Não exagera no drama porque eu já estou sensível”, ela disse, usando a ponta do dedo para secar o canto do olho. “Estamos quase chegando. Anima essa carranca deprimida, vai!

Ao sermos recebidos por Dona Rosa, o Lucas já veio gritando desde os fundos da casa, onde fica a edícula em que ela mora com o neto:

Tia Jaaaaquiiiiii, cê vai viadjá cadente? O tio Dáki tamém vai? E meu pai, cadê ele?

A Dona Rosa apenas suprimiu uma risadinha, e eu perguntei “Como assim, viajar?”, e a resposta do Pinguinho foi puxar minha mão até os fundos, na edícula. Antes que eu me esquecesse, comecei a gravar com meu celular. Queria que o Nicolas visse aquela empolgação aparentemente sem sentido dele.

Óia, tá tudo pronto pra viádhi! Mas a vovó disse que o lugar cadenti vai é supresa!

Ao olhar o pequeno quartinho que a Dona Rosa dividia com o Lucas, compreendi. Havia duas mochilas e algumas sacolas, todas cheias. As roupas do Lucas estavam lá (havíamos levado uma boa parcela mas, como já comentei, algumas coisas ficaram com a Dona Rosa enquanto ele estivesse com ela). Eram cobertas infantis, roupas minúsculas, brinquedos e pequenos acessórios do Pingo. Todos devidamente guardados para levarmos para minha casa – e nova casa dele. Eu comecei a dar risada, sempre lembrando de manter o foco da gravação no Lucas.

Então a Jack se ajoelhou em frente ao Pinguinho, e fez cara de sabichona.

Pois eu sei onde você vai!

Séio? Conta!

Lembra que tinha uma porta sempre trancada na casa do Tio Dáki? Aquela que seu pai não queria que você mexesse porque lá dentro era muito sujo?

Lembro!

Então… Nós decidimos que…

Eu já sei de tuto, tia Jack… Num picisa ficar escondendo de mim”.

Quando ele disse isso, levamos um susto. Deu pra ver a frustração estampada em minha cunhada. Ela olhou para Dona Rosa, meio que tentando entender se ela havia deixado escapar algo, mas a avó do Lucas deu de ombros, tão confusa quanto nós.

E então o Pinguinho explicou:

Ocês acham que eu sou bobo, mas eu sabo que tem um monstro icondido lá… Ele geme de noite, e dá pra ouvir lá da sala do tio. Não é verdade, tio Dáki?

Eu e a Dona Rosa gargalhamos, e foi um pouco difícil manter o foco da filmagem sem tremer tudo.

A Jaqueline não acompanhou o riso, e me olhou ligeiramente brava.

Por acaso meu irmão andou contando histórias de terror para ele naquelas festinhas do pijama de sexta e sábado?

Ahh, então… Só um pouco… Ele perguntou o que eram os sons de estalos que a madeira faz à noite, e ficava insistindo em querer abrir a porta trancada. E como ainda tinha muitas aranhas ali, o Nick inventou essa história…

Eu vou falar umas coisas pro meu irmão quando a gente voltar…

O Lucas deve ter percebido que a tia ficou brava, e colocou as mãos nos ombros dela.

Não, tia! Eu não tenho medo! Sou corajoso! Mas… O que a póita tem a ver com a viadhi?

Então, Lucas… Não tinha monstro nenhum ali”, ela massageou as têmporas, e respirou fundo. No instante seguinte a irritação deu lugar para a versão empolgada da Jack: “A verdade é que a gente estava preparando aquele quarto. Nós limpamos tudo, e agora tem uma caminha pra você lá!

Vixe, no quarto do monstro?

Ai, Jesus… Não, Lu… Não tem monstro lá! Eu vou matar o Nicolas…

A cara de irritação da Jaqueline estava, no mínimo, cômica. Dei meu celular para a Dona Rosa, pedindo que continuasse a filmagem, e me sentei no chão, de pernas cruzadas, para ficar da mesma altura que o Pinguinho.

A gente espantou o monstro de lá. Eu limpei tudo junto com a tia Jack, e espantamos o monstro. Agora ele mora em outro lugar, e não vai mais voltar.

Num tem plobêma. Se ele voltar eu bato nele, tio Dáki”.

A Jack, que estava agachada ao meu lado, pegou não mão fofa do Pinguinho e balançou.

Então, essas malas todas é pra você morar com a gente, Lu!

Ele arregalou os olhinhos de safira.

Sério?

Aham”, respondemos eu e minha cunhada.

Sério, sério mêmo? Você jura?

Juro, juradinho!

Ela estendeu o mindinho para o Lucas, que fez o mesmo, e eles selaram o juramento. Alguns segundos depois, ele fez carinha de quem está pensando muito em algo.

Mas é na casa do tio Dáki, né? Meu pai vai morar lá também?

A Jaqueline fez um jóia com o polegar:

Já estamos morando lá, Lu! Todo mundo na mesma casa! Eu, seu pai, o tio Dáki, e agora você tem um quarto todinho seu também!

Ele começou a dar pequenos pulos, com os olhinhos brilhando.

A vovó e o tio Claus também vão?

Nessa hora fiquei com um pouco de pena de jogarmos o balde de água fria na empolgação crescente do Lucas, e a própria Dona Rosa explicou que eles continuariam ali. O Lucas respirou fundo e fez uma carinha de determinação:

Não tem plobêma, vó! Venho te visitar sempe, tá bom? Fechô?

Fechou, meu amor”, respondeu a avó dele, usando um termo certamente aprendido pelo Claus. Achei engraçado isso na boca do Lucas (toda gíria que ele fala se torna naturalmente mais bonitinha, desde que não sejam os palavrões que eu uso às vezes).

Depois disso ele soltou o mindinho da Jack (pois ainda estavam na posição de jura), e deu um pulo tão alto quanto ele conseguia. E começou a correr pela casa, gritando “êêêê”, até que parou perto da bagagem, e falou:

Eu vou viadjá pa sêmpi na casa do tio Dáki com o papai e a tia Jaquiiiii, êêêêê! Hoje é o dia mai feliz da minha vidaaa! Vou parar de ir de um lado pro oto!

Fiquei um pouco penalizado pela última coisa que ele falou. Não devia estar sendo fácil, coitado. Ele tinha os turnos na casa da mãe e do pai antes da internação da Sônia, depois ficou um tempo na casa da irmã de Dona Rosa, até passar a tempestade da guarda definitiva, e teve os dias em que ficou em minha casa, também. Na cabeça de uma criança, essa falta de padrão deve ser bem estressante. Eu no lugar dele certamente teria me perguntando: onde, afinal, é meu lar?

Ele corria para a avó e a abraçava, corria para mim, me abraçando, e em seguida era a vez da Jaqueline. Ele continuou nesse ciclo, voltando a abraçar avó, eu e Jack várias vezes. A impressão era que o Pinguinho não sabia como dar vazão à felicidade. Essa alegria toda durou até ele subir na cama de Dona Rosa para pular. Levou bronca. Foi nessa hora que a avó dele parou de filmar para descê-lo dali, com um tapinha de leve.

Nem deve ter doído, mas ele fez cara de choro, e um bico do tamanho das américas. A Jack bagunçou o cabelinho loiro dele.

Larga disso, Lu. Não faz manha porque hoje é um dia muito feliz. E na casa do Dáki você também não vai poder pular na cama.

Mas meu pai coloca o caxão no chão pra eu pular.

É colchão, Lu. E seu pai coloca o colchão no chão exatamente porque não pode pular em cima da cama. Quebra o estrado.

Ele cruzou os braços:

E daí? O hómi do jornal que a vovó assiste disse que o estrado já tá crebádu mêmo…

“…”

Enquanto eu ria com a Dona Rosa, a Jack levantava o colchão para mostrar as ripas de madeira da cama, explicando para o Lucas a diferença entre estado e estrado. Gosto desse método dela, explicando o porquê de não poder isso ou aquilo. O normal é dizer para a criança “não e pronto”, mas ela tem essa paciência que um dia desejo para mim.

No fim, o Lucas não apenas entendeu direitinho, como também pediu desculpas para a avó por quase quebrar o “estado” da cama (o erre dele não saiu).

Colocamos todas as coisas no porta-malas, e quando ele ia se despedindo de Dona Rosa, ela colocou as mãos na cintura e disse:

Mas eu quero visitar seu quarto, meu bem! Vou com vocês pra espiar sua nova casa. Eu posso?

Ao que o Pinguinho respondeu, com o maior sorriso: “Póti!

O caminho de volta para o Pântano dos Mosquitos foi curto, mas divertido. O Lucas estava extravasando toda a alegria contando causos de todos os tipos. De acordo com Dona Rosa, algumas coisas eram até versões muito exageradas da realidade, e que acabavam se tornando absurdas. Um desses causos loucos é de quando um gato invadiu a cozinha deles, atacando um frango que estava descongelando na pia. Dona Rosa contou que apenas espantaram o gato, mas na versão de Lucas houve uma perseguição pela casa em que o gato até andava pelas paredes.

Eu até fiz dodói corrêno atrás dele, ó!”, disse ele, mostrando um arranhão quase imperceptível na pele.

Isso foi de quando você escorregou lá no fundo, Lucas”, corrigiu a avó.

Ah, é mêmo… Foi mó loco!” falou ele, provavelmente com outra das gírias do tio.

Sabe aqueles pequenos momentos de nossas vidas que ficam gravados muito forte na memória, de tão maravilhoso? Essa minúscula viagem da casa de Dona Rosa ate nossa casa foi um desses momentos. A avó de Lucas estava na frente com a Jaqueline, que dirigia, então fiquei atrás com o Lucas. Ele fez questão que eu me sentasse no centro do banco, para ficarmos mais perto (como o Pinguinho fica na cadeirinha de segurança, não tem como vir para perto de mim). Às vezes ele me puxava para cochichar alguma coisa (que o gato invasor fez xixi num canto da casa), mas o que fez meu coração virar gelatina é o fato de ter feito questão de segurar em minha mão o tempo todo.

Tem noção do que é ter uma criança tão pequena (e tão dolorosamente fofa) confiando tanto em você? Fazia eu me sentir a pessoa mais importante do mundo, mesmo com todas as coisas ruins que fiz. Fazia o bloco de gelo mais resistente em meu peito derreter numa poça de emoção, quase afogando a lembrança de ter empurrado alguém para o vazio. E quando ele me olhava com um sorriso, eu pensava “ganhei meu dia”. Nem parecia que há poucos dias havia acontecido todas aquelas coisas. A sensação era como passar gel para queimaduras sobre a pele ardida: alívio imediato.

E o mais incrível era que o dia estava ainda na metade (sim, foi um dia longo, e ainda tenho muito o que lhe contar).

 

( . . . )

 


Notas Finais


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Bom, o aviso que eu tinha para dar é o seguinte:

O conto "O Gato do Piano" foi devidamente revisado, e preparei a CAPA dele para publicação oficial na Amazon 😍

É aquela história do Alex pianista (o ruivo), e do Miguel que estuda artes cênicas na faculdade. Lembra? Eu escrevi no dia dos namorados de 2018. ^_^

Também vou preparar as capas (e revisão) dos outros contos, mas por enquanto apenas esse está com publicação oficial.

Deixei num preço amigável para não assustar ninguém.

Está R$ 3,90 😁 Mais barato que um cheeseburguer.


Ah, quer ver como ficou a capa? Acessa lá: https://www.amazon.com.br/dp/B09TKLJVW8



MUUUITO obrigada!

K I S S E S ~ K I S S E S
Lyan K. Levian


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