A senhora Lim era claramente mandona e o pai de Sara, o senhor Lim, apenas sua força bruta, como se não passasse de uma armadura feita sob medida para a pequena mulher que carregava a bíblia sob o braço. O fim daquela tarde estava muito bonito, pensava Charlie, os olhos sobre os pais de sua aluna recebiam um pouco dos raios alaranjados, deixando o tom azul de lado para ganhar um tom mais esverdeado, quase castanho; era uma pena perdê-lo enfiado em uma sala abafada como a do diretor Slugworth.
“O que houve, Bucket?” Arthur Slugworth havia surgido dois minutos antes do expediente de Charlie acabar. O rosto ressecado incomodado com algo, o nariz pontudo arreganhado para deixar o ventilar melhor o cérebro enquanto entendia os motivos de ter os pais de uma das melhores alunas na porta de sua sala. “O senhor e a senhora Lim estão querendo falar contigo. Disseram algo sobre obscenidades.”
“Sara Lim se recusa a fazer um trabalho,” o Bucket explicou, deixando a mochila novamente sobre a mesa. “Parece que Deus não ia gostar de que alguém saiba que existe outras formas de se relacionar.”
Arthur era um diretor peculiar. Enquanto não suportava que as coisas saíssem de ordem, também detestava se intrometer no plano de aula dos professores. Com exceção, claro, de Willy Wonka, mas aquilo era um assunto que Charlie não se importava em aprofundar. “Ah, tabus. Vocês, jovens,” cuspiu a palavra, “amam tentar quebrar tabus. Custa muito ensinar o básico?”
Sim, custava. Para Charlie era como viver sob tortura, contudo, não era o momento certo a se falar sobre isto. “Vá resolver isto na minha sala, Bucket,” ordenou o diretor. “E não me obrigue a te demitir!”
Pois bem, Charlie já tinha passado uma hora de seu expediente, provavelmente demoraria três horas para chegar em casa, já que estava entrando em horário de pico e o trânsito não perdoava ninguém, mas a senhora Lim não parava de falar e resmungar e citar pedaços da bíblia com tamanha velocidade que Charlie jamais conseguiria memorizá-los, fosse os versículos, capítulos ou ditos.
“Senhora Lim!” Bradou repentinamente e como resultado, o marido se empertigou na cadeira, pronto para atacar. “Fico feliz que a senhora tenha decorado a bíblia toda.”
“Não decorei, eu a estudei!”
Não importa, pensou o Bucket enquanto seu estômago começava a resmungar de fome. “Indiferente, minha senhora. Mas sua filha fará o trabalho, caso queira nota. Não vou mudar isto.”
“O senhor não entendeu,” a ameaça finalmente estava sendo lançada, o professor percebeu. “Ou o senhor livra minha filha deste trabalho ou perderá seu emprego e seu diploma.”
“Uma ameaça, senhora?”
“Um alerta,” ela sussurrou ameaçadoramente.
“Posso lhe dizer que isto, de fato, não foi um alerta.” O professor rebateu. Porque, se tinha algo que ele tinha conhecimento, era como as ameaças começavam.
“Está chamando minha mulher de mentirosa?” O senhor Lim socou a mesa.
“Gostaria de saber como chegou a esta humilde conclusão,” Charlie olhou com pena para o enorme homem que poderia esmagá-lo com apenas uma mão. “É normal o senhor entender só o que deseja?”
“Eu vou quebrar tua cara moleque!”
“Isto foi uma ameaça!” Charlie afirmou. Estava quase se divertindo. “E, caso não saibam, posso processá-los só pela ameaça empregada a mim, logo, acho que o silêncio é o melhor caminho para evitar um conflito judicial, não?”
Os pais de Sara estavam furiosos, ao ponto de seus rostos brancos ficarem vermelhos. Eles eram uma clássica família preconceituosa que fingia não ser preconceituosa. Olhos claros, cabelos tão loiros que eram quase brancos e suas roupas não tinham um traço escuro. Charlie não se surpreenderia se um deles falasse que não eram racistas, pois até tinham amigos negros; na verdade estava até esperando os dois dizerem não somos preconceituosos com as formas de amar, mas não queremos que nossa filha seja “estimulada” ao pecado.
Aquela espécie era abominável para Charlie. Não pelo fato de serem brancos ou terem olhos claros, poxa vida, o Bucket mesmo tinha olhos azuis, não? Mas ele detestava quem usava a violência fantasiada de regra divina; pessoas que agrediam, maldiziam os outros, faziam piadas cruéis maquiadas com risinhos tampados por dedos delicados.
“Agora, se vocês estão me dizendo que a bíblia condena relacionamentos que não são heteronormativos, sua filha poderá fazer o trabalho usando a bíblia.”
Ambos ficaram lívidos.
“Mas a bíblia é…” A senhora Lim começou a falar, gaguejando. “O trabalho é…”
“Fico feliz que seu raciocínio rápido tenha lhe dado a conclusão da nossa conversa.” Charlie sibilou enquanto se levantava. “Se me derem licença…” pediu com a mão na maçaneta da porta.
“Mas ela não vai ter tempo!” A senhora Lim gritou saltando da cadeira, o móvel arrastando pelo chão com o movimento brusco.
Charlie olhou por cima do ombro. “Faça e eu ajudarei,” zombou antes de sair.
Pois, assim como a senhora a Lim, ele já tinha estudado a bíblia sagrada inúmeras vezes.
Todo mundo me avisou que você iria me deixar...
Mas que ultrajante! Willy pensou agoniado, o rosto ainda contorcido pela raiva de terem dito que seu cabelo era engraçado! Engraçado? Era um corte clássico, refinado e… Aquilo era fio branco? O reflexo no espelho ficou horrorizado. Ele nunca tinha tido um fio branco antes! Aquele maldito Bucket!
“Willy, tem certeza disto?”
“Corta!” Ralhou com desgosto.
“Willy, eu não sou cabeleireiro e…”
“Eu mandei cortar, Mark!”
Mark Richards abriu e fechou a tesoura em sua mão esquerda, olhando atentamente para o cabelo liso de Willy. Os dois haviam se conhecido na faculdade, virado amigos por escolha de Mark, se tornado porto seguro um do outro depois de saberem que ambos entendiam o que era ser rejeitado.
“O que te fez pensar em cortar o cabelo?” Mark perguntou enquanto pegava uma mecha, analisando o que faria com o amigo. Tinha tantos planos
“Nada.”
“Este nada possui sobrenome, não?”
Tinha, Wonka pensou amargurado. Tudo o que ele mais queria era não ser afetado por Charlie, não pensar naquele babaca quando acordava ou quando ia dormir, nem ficar preocupado quando ele adoecia e não ia para o trabalho. Se chovia, se tinha uma tempestade de neve, se o sol estava perigoso, tudo isto atiçava um instinto em Willy que o fazia querer saber se o Bucket estava bem, bem agasalhado, com sapatos impermeáveis, bebendo bastante líquido… Sendo assim, era correto afirmar que Willy Wonka estava cortando o cabelo por culpa de Charlie. Era a primeira vez, em mais de dez anos, que iria mudar o corte e era por culpa de Charlie um dia ter dito que ele ficava fofo de franjinhas que ele nunca havia mudado o estilo das madeixas.
“Você vai se arrepender, Wonka. No primeiro corte de mecha,” Mark estava o olhando pelo reflexo do espelho, os olhos claros sorrindo junto com os lábios finos.
“Corte logo ho…”men teria dito se não ficasse mortificado ao sentir a tesoura levando seu cabelo para outra fase. O que ele estava fazendo? Por que deixava Charlie Bucket tomar conta de sua vida? Lhe dominar tão facilmente?
Não importava, ele sabia. Não dava para lutar contra aquela porcaria de sentimento que mantinha-se aceso mesmo quando só haviam motivos para odiar o outro. Tinha sido abandonado, enxotado da casa, exposto em rua, recebido a culpa por ter separado a família Bucket e, ainda assim, depois de toda aquela desgraça, ele olhava para aquela porcaria de rostinho bonito e se derretia.
Tinha vontade de espancá-lo, claro, e também tinha vontade de usar aquele corpo até a pele sair, mas ainda se derretia por inteiro só de ver o sorriso amplo que Charlie tinha, com os olhos sorrindo junto.
“Willy?” O amigo o olhava pelo espelho com um tanto de preocupação e um tanto de diversão. Metade do cabelo liso de Willy já estava no chão e a outra parte parecia completamente desalinhada.
“Mark?” Usou de um tom despreocupado para dizer que estava escutando.
“Não vai me responder ou não escutou?”
“A primeira opção,” Wonka arriscou, as mãos se fechando nervosamente sobre a capa que protegia a queda de cabelo.
Mark riu, não acreditando que o amigo havia escutado alguma coisa que ele tinha dito desde o primeiro corte de cabelo. “E o que eu perguntei?”
“Merda.” Willy sussurrou.
“Ah, eu sabia. Agora, se me permite perguntar, esta mudança será só de cabelo?”
Mudar todo o senso de moda por conta de uma pessoa já era demais, pensou, mas não disse nada. Manteve os olhos no corte que recebia, passando a ponderar em como era irônica a vida de Mark, que tinha muita habilidade em cortar cabelos, mas vivia sendo barman. E como barman o loiro tinha muita habilidade também, fazendo drinks perigosos, capazes de esconder o sabor do álcool com tanta perfeição que até um especialista poderia deixar de sentir.
Mark era perfeito. Bonito, gentil, esperto. Tinha um humor afiado, um jeito esquisito de ver a vida e as pessoas e era a paixão das velhinhas, que sempre choramingavam que as netas e netos nunca estavam solteiros para conhecê-lo.
Só que as velhinhas teriam uma decepção maior se soubessem que nunca teriam netos, caso Mark estivesse na vida deles. Isto porque, mesmo capaz de amar e viver com alguém, o loiro nunca sentia atração sexual por ninguém. Willy nunca entendeu como isto funcionava, como era ser um assexuado, mas, pelo que Mark dizia, era bem simples. “Pense em mim como um chiclete. Você pode mastigar, mas não engolir.”
“Ele disse que meu cabelo é engraçado.” Willy resmungou. Os olhos ficando tristes, quase deprimidos como os de um cachorrinho que será deixado sozinho, abandonado pela família que está partindo e não sabe-se quando voltará.
“Não é engraçado, é fofo.” Mark sussurrou. Os olhos fixados no cocoruto de Willy, os dedos brincando com o fio liso demais, incapaz de ficar de outra forma que não fosse para baixo, liso, escorrido, sem graça.
“Mas?” Wonka impulsionou o amigo a seguir falando, afinal Mark deixara bem claro que teria um mas naquela história.
“Willy, você já não é um adolescente. É um homem. E deveria se por..”
“Eu me porto como um homem, Mark! Veja minhas roupas! Já viu como meu sapato está lustrado?” O pé do professor surgiu sob a capa, a luz refletiu sobre a superfície lustrada da vestimenta.
Era elegante, bonito, mas não muito prático, achava Mark. A falta de praticidade era algo de Willy, que preferia ser marcante a ser algo comum. Ele era a única pessoa que Mark conhecia que ia ao alfaiate fazer suas roupas, também era tão consciente sobre seu lixo, que virava um chato capaz de bater em uma velhota só por ela não reciclar seu lixo da maneira correta.
“Pare de se mexer ou vou errar o corte e ter que raspar sua cabeça!”
“Nem ouse!” Ladrou Wonka, os dentes alinhados enfatizando o perigo que o erro se mostrava.
A tesoura beijou os fios e o encontro tornou-se a tragédia já esperava. A sensação dos fios gemendo sob a lâmina deixou o professor tenso e o coração bateu agoniado. Ele não havia mudado de corte desde… desde… Suas narinas dilataram e o queixo tremeu, mas ele não iria chorar por um motivo tão tolo.
O que importava que ele não mudava de corte desde que estava no ensino médio? Quem ligava para os sentimentos, se você podia só ignorar tudo e seguir em frente?
Foi nisto que Willy Wonka focou enquanto a tesoura mudava uma parte de quem ele havia sido e era.
… Lou...qui...nho
“Merda,” Willy resmungou. Tudo parecia errado naquele dia, desde o despertador não tocar, ao cabelo não ficar bom de jeito algum e Mark levar uma vida para lhe explicar como deveria finalizar aquela droga de corte. O resultado final não havia ficado tão ruim, mas era a primeira vez, em décadas, que Wonka se atrasava para algo, deixando o dia com um gostinho amargo.
A sala dos professores estava cheia quando ele entrou emburrado, resmungando algo incompreensível quando lhe desejaram “bom dia, atrasadinho,” aplicando uma zombaria que nada legal.
Não. Aquele não era um bom dia, ele não queria que se tornasse um bom dia e ele não faria ser um bom dia. Este, pelo menos, era seu pensamento primordial, mas as coisas mudaram quando um de seus colegas resolveu lembrá-lo de que “só Wonka ou o Bucket para ficarem irritados num dia como hoje”.
O professor de economia doméstica finalmente se deu ao trabalho de prestar atenção ao seu redor, ganhando a visão de seus colegas usando roupas mais bonitas, penteados mais elaborados e maquiagens um pouco mais pesadas. Tirando, claro, Violet e Teavee, que nunca se esforçavam mais do que era esperado.
“Como é?” Perguntou para ninguém em especial.
“A festa de Valentine’s day é hoje, não se lembra?” Teavee respondeu, os olhos pregados no celular como se a vida dele dependesse disto. “Tu não cortou o cabelo por isto?”
Não! Willy chiou mentalmente. Não ousou pensar alto ou dizer o que havia pensado, pois sabia que se o fizesse, iriam perguntar qual havia sido o motivo de verdade e se ele dissesse qual havia sido o motivo, então também teria que viver com a realidade que ainda não era palatável.
“Certeza que foi por culpa do Bucket,” a voz de Beauregarde surgiu como um fantasma pronto para atazanar a vida de alguém.
Willy girou o rosto na direção dela com a certeza de que estava com toda a sua ira aparecendo em seu rosto. “Como?” Controlou a voz para que ela saísse o menos irritada possível.
“Ele diz que você é fofo e engraçado em um dia e no outro corta o cabelo? Foi por culpa do Bucket.”
“Acha mesmo?” Wonka rebateu. Os olhos perdendo e ganhando foco na loira que corria sérios riscos de vida, assim como a liberdade de Willy estava para ser extinta quando ele fosse preso por assassinato.
“Certeza.” Teavee concordou com um rosnado preguiçoso.
“Pois como eu conseguiria uma vaga em meu cabeleireiro de anos se houvesse marcado tão em cima da hora?”
“Tantas respostas para uma pergunta,” algum outro colega respondeu com um suspiro.
“Além disto,” Willy continuou após limpar a garganta, engolindo o desconforto de ser o centro das atenções por um motivo desgastante, “minha vida particular se diz respeito a mim em exclusividade”.
O sinal para o início das aulas tocou em seguida, sendo a carta de alforria para Willy. Ele saiu pela porta tão rápido quanto havia entrado, ignorando qualquer coisa que não fosse relacionada com o trabalho dele e, por isto, não enxergou o Bucket apressado que vinha em sua direção com a cara virada para o relógio.
Primeiro, Wonka sentiu o choque, o cheiro, o calor e o desespero do coração apaixonado. Em seguida, seu ombro latejou junto com os joelhos e só então ele notou que a escola estava quieta demais para um dia normal. Willy sabia que na vida haviam momentos em que não se podia enxergar, mesmo vendo. A concentração estava tão além dos olhos, que nem se uma pessoa pintada de ouro passasse à sua frente, seria algo notável.
Ele sabia disto porque havia vivido muito tempo deste jeito. A vida passando, ele existindo, o Bucket lhe dominando a mente. Como podia a vida ser tão perfeita em um segundo e no outro se tornar o inferno?
“Wonka?”
O pomo de adão de Willy se remexeu agoniado. “Bucket,” cuspiu.
“Estou atrasado e você não está ajudando,” Charlie sussurrou, os olhos correndo rapidamente para a esquerda e então voltando aos olhos de Wonka.
“E por que diabos você está indo no contra-fluxo?” Willy resmungou ainda parado.
“Não diria que estamos com tempo ou conforto para jogar conversa fora,” o Bucket brincou em meio a um sorriso falso. Era falso, Willy notou, pois seus olhos não se remexeram, não se franziram. “Mas, para amansar seu ego, eu esqueci meu diário no armário.”
Willy estranhou a situação por completo, mas só quando olhou na direção que o outro havia olhado é que notou o motivo de tamanha estranheza. Ele estava sobre o Bucket, um dos joelhos entre as pernas do professor de literatura, um braço sobre o peito do colega de trabalho e o outro no chão. Caído sobre o homem que já tinha invadido seus sonhos naquela mesma posição muito mais vezes do que se era sadio.
“Mas que merda de dia!” Ladrou antes de se recompor.
Ele poderia ter brigado com os alunos curiosos ou poderia ter ajudado o outro caído a se levantar, mas não. Não iria se desgastar mais do que já havia feito. Além disso, se abrisse a boca falaria mais do que deveria e poderia se colocar em uma situação muito ruim.
Soltando um suspiro pesado, Willy entrou em sua sala, sendo recebido pelos alunos que já o esperavam. Suas aulas não eram pesadas, mas também não eram fáceis. Desde de muito cedo ele ensinava disciplina, organização, limpeza e respeito. Mesmo seguindo as receitas, muitos erravam e foi assim que ele aprendeu a adaptar suas receitas com dicas e truques, tornando a culinária e os cuidados com a casa um ato possível para todos.
A aula que era mal vista logo tinha se tornado um refúgio para os adolescentes que estavam descobrindo sobre a vida e o universo. Isto, claro, era um dos maiores orgulhos de Willy. Saber que confiavam nele, na aula dele.
Porque… Bom, enquanto era recebido com o sussurros de sua turma que conversava amenidades, Willy Wonka percebeu que de críticas e cobranças, a vida já estava cheia demais.
“O brownie é um dos doces mais apreciados pelas pessoas e sabem por qual motivo?”
Sua voz silenciou a conversa baixa e seus passos cantarolaram alto até que ele chegasse a bancada principal.
“Por que não precisa ser doce?” Alguém respondeu com confiança.
“Exato,” Willy respondeu, seus olhos brilhando para a turma atenta. “E, se não precisam ser doces, então podem ser?”
“Salgados!” Alguém soltou ansioso, fazendo Willy sorrir quando os colegas não riram.
“Eu diria amargo,” outro aluno disse pensativo.
“Por qual motivo diria que amargo?” Incentivou.
O aluno coçou o queixo, “nunca vi chocolate salgado”.
“É uma boa teoria, Jack. E sua teoria está certa,” falou ao aluno que citou o chocolate amargo. “Brownies, meus queridos, podem ser amargos. Talvez dê para fazê-los salgados, mas eu, particularmente, não gosto de bolos salgados. Embaralha meu cérebro.”
Caminhando com tranquilidade até o armário de ingredientes, Willy seguiu com sua aula. “Mas, devo dizer, existem chocolates salgados e, ironicamente, demorou muito tempo para que alguém pensasse em colocar açúcar no cacau.”
“Senhor Wonka, eu não consigo imaginar um chocolate salgado.”
Willy olhou para a garota por cima dos ombros, as mãos segurando parte dos ingredientes que precisaria para realizar o bolinho comentado. “Devo dizer, senhorita Mitchel, que eu também não imaginava até, claro, prová-lo.”
“O senhor gostou?”
“Detestei,” respondeu voltando para a sua própria bancada. “Só que o meu gosto não é algo unânime. É preciso entender que somos todos diferentes e estamos convivendo em um mundo igual.” Willy observou a turma atenta, curiosos com algo que envolvia história, geografia e matemática ao mesmo tempo. Podia-se dizer que também envolviam gramática, já que a escrita se fazia necessária em uma receita e literatura, com as crenças e rituais que envolviam o fruto. “Então, como o Valentine’s day está chegando, vou ensiná-los uma receita fácil e ótima para presentear ou ganhar dinheiro vendendo”.
A turma ficou agitada, do jeito que Willy esperava que ficassem, do jeito que ele ficou quando aprendeu, aos quinze anos, a fazer aquele bolinho. Olhando para os adolescentes com orgulho da turma que tinha, Wonka se pegou mergulhando no dia em que fez o brownie para Charlie. O sorriso de Willy foi morrendo, pesando em seus ombros, ardendo no peito.
“Professor Wonka! Professor Wonka!” O professor piscou atordoado enquanto saia de seu devaneio.
“Sim?”
“Posso lhe fazer uma pergunta pessoal?”
Willy observou a turma que lhe encarava em silêncio. Há quanto tempo estava perdido em pensamentos? O que tinha perdido? “Qual seria?”
“O senhor cortou o cabelo para ficar mais bonito e ter alguém no Valentine’s day?”
Meu santo cacau torrado! Wonka arfou. Sentia suas bochechas ficando avermelhadas pela vergonha daquela pergunta e por não fazer ideia de como iria respondê-la. Gostava daquela turma e de dar aula, já que ensinar lhe fazia pensar que era útil e esquecer de seus problemas, mas… “Não, eu…”
Oh, caramba. Seus olhos corriam entre os alunos ansioso.
“Claro que não, Antony,” uma das meninas disse com certo afinco, “todo mundo sabe que ninguém nessa cidade é bom o bastante para o professor Wonka.”
Willy queria saber o motivo, mas sua voz não saia.
“É mesmo? Por quê?” Antony parecia preparado para quebrar a opnião da colega.
“Porque ele é simpático, bonito e também não é não é chato como os outros adultos.” Willy sentiu a testa franzindo com aquele comentário.
“Mas deve ter alguém que não é assim, né?” Antony insistiu.
“Tem o professor Bucket,” um terceiro aluno se infiltrou no debate, levando Willy a quase cair duro no chão e finalmente receber o beijo da morte.
Que dia era aquele? Como e quando terminaria?
“Não, claro que não!” Antony chiou agudamente, fazendo o peito de Willy Wonka doer mais do que já doía só por escutar que Charlie Bucket, segundo seus alunos, era compatível com ele. “Os professores não podem namorar na escola. Um deles perderia o emprego.”
A turma pareceu ficar absurdamente deprimida com a possibilidade de perder um dos dois professores. Todos olharam para seus balcões vazios como se olhassem para um lago parado e pudessem ver todas as coisas ruins do mundo. Willy já tinha visto aquele olhar, aquela tristeza tão pura que todo mundo sabe que você está triste.
Charlie tinha aquele olhar, quando o aniversário dele chegava. Todos os anos, em quatorze de fevereiro, Willy via o Bucket cabisbaixo, murcho, buscando algo que ele nunca teria. “A receita de hoje não está nos livros, meus queridos,” Wonka disse em busca de arrancar aquele monstro de sua sala. “Então, por favor, peguem lápis e papel, pois irei ditá-la.”
Você me deixa louquinho
O cheiro era o que Willy mais gostava. Claro que ele amava sabores, principalmente doces, mas o cheiro de um bolo sendo assado, de um chocolate derretendo ao seu tempo, era algo perfeito. Os alunos estavam ansiosos, o tempo todo correndo seus olhos para os fornos que trabalhavam pacientemente, ignorando a ansiedade alheia.
Wonka lembrou de quando ficava assim. Dos doces que preparava com sua mãe achando que seu pai nunca saberia o que tinham aprontado, dos minutos que ele ficava com a cara quase colada ao vidro do forno, vendo a massa crescer, endurecer, ganhar vida. “Professor, o senhor sabe de outras coisas que são consumidas doces e salgadas?”
Willy fora pego desprevenido. “Como?”
“Você disse que há chocolate salgado, há outras coisas?” O aluno repetiu.
Willy pensou um pouco a respeito daquela pergunta. Ele sabia, sim, de outros exemplos, mas era um bom assunto para usar com a turma e distraí-los do brownie que assava. “Sei sim. Mas a pergunta é, seus colegas sabem?”
A turma começou a pensar no assunto, alguns questionando aos colegas qual era a pergunta. Houve um momento de silêncio pleno na sala, apenas o timer que Willy tinha acionado, sussurrou a passagem do tempo. “Não?” O professor instigou. “Eu conheço o ovo.”
Houve uma careta geral e a descrença banhando a todos. “Afinal, usamos ovo no omelete e no bolo, não?”
A epifania explodiu nos rostos que migravam do infantil ao adulto. “Tipo o amendoim?” Algum aluno gritou sorrindo.
“Sim.” Wonka concordou.
“O tomate?” Alguém arriscou.
“Eu não saberia dizer, minha cara, mas se há suco de tomate, então acho que podemos colocar na lista, certo?” Willy gostava de como seus alunos pensavam, de como respeitavam as ideias alheias e, principalmente, de como se animavam com os debates levantados.
Debater naquela aula era algo bem arriscado, principalmente pela quantidade de armas que haviam ao dispor de quem se irritasse. Era por este motivo que Willy cortava toda e qualquer zombaria logo no primeiro dia. Não queria que seus alunos se estressassem, nem que sentissem que eram inferiores por arriscar e errar ou por pensar diferente da maioria.
Ele queria que se sentissem protegidos. Do mesmo jeito que um dia Wonka ansiou por assim se sentir, mas fora abandonado por Charlie que por muito tempo nem mesmo teve a coragem de olhá-lo nos olhos. Custava ele ter pedido desculpas? Pelo menos um sinto muito?
Covardia era algo que Willy Wonka passou a abominar e tinha que ser muito covarde para não proteger os alunos que estavam tentando aprender algo, não?
“Isso não tem como dar certo!”
“Mas se tem gente que toma, então tem!”
“Desculpem, mas o que falam?” O professor perguntou, seus pensamentos sendo cortados pelos alunos que pareciam tentar descobrir a resposta para a vida o universo e tudo mais.
“Antony disse que o abacate pode ser comido doce”.
Willy fez uma careta. “Isto não parece dar certo.”
“Mas tem gente que come professor,” Antony insistiu com firmeza. “Eu tava lendo que no Brasil é assim.”
O rosto de Willy ficou pensativo, formando um bico esquisito que deixava a sala cheia de risinhos, mas que ele nunca os percebia. Ele pensou, pensou mais um pouco, olhou em seu relógio de pulso e então perguntou para toda a sala “alguém poderia me emprestar a internet?”
É claro que disponibilizaram um celular e ele agilmente pesquisou sobre a possibilidade de se comer abacate com açúcar. A agilidade parecia desproporcional para alguém que não andava com celular e usava algo tão atípico quanto um relógio de bolso, mas assim era Willy Wonka, uma caixinha de surpresas viajando em seu próprio mundo.
Não é que ele não tivesse contato com tecnologia, mas definitivamente não perdia tempo com celulares que lhe davam a sensação de ser perseguido por todo mundo o tempo todo. Ele preferia a leveza de ter bolsos vazios.
“Hm,” gemeu interessado, os pés caminhando para a geladeira sem precisar olhar as barreiras do caminho. Ainda analisando a receita descoberta, ele retirou um abacate da geladeira, um litro de leite e buscou no armário de ferramentas o liquidificador. “Parece interessante.” Comentou devolvendo o aparelho ao aluno.
A receita era bem simples. Corte o abacate ao meio, tire um pouco de sua carne, coloque leite, açúcar e beba. Fácil, refrescante e bem esquisito. De receita memorizada, Wonka colocou os ingredientes e ativou o liquidificador sob o olhar atento da turma. Uns estavam enojados outros desejosos, mas nenhum ignorava que uma fruta comumente comida salgada, estava virando uma bebida doce.
“Alguem poderia pegar os copos para mim?” O professor pediu sem tirar os olhos da bebida verde que surgia sob seu olhar.
A sala ficou ruidosa, não só pelo liquidificador, mas por todos os movimentos que estavam ocorrendo em conjunto. Willy desligou o aparelho, buscou onde estavam os copos e encontrou a turma a sua frente, quietos, esperando o momento em que poderiam provar algo novo.
“Isto me lembra a poção polissuco,” um deles gemeu enquanto esperava os demais serem servidos.
Pela grossura, pela cor, realmente parecia, mas o cheiro era um tanto agradável. Willy Wonka mexeu um pouco o copo, apenas para testar a bebida mais um pouco antes do novo conhecimento. “Prontos para se tornarem uma pessoa nova?” Brincou com o fato da vitamina parecer a poção citada, principalmente, no segunda obra de Harry Potter.
O qual, por sinal, ele tinha assistido com Charlie, na primeira vez que foram ao cinema.
“Só não quero ser um gato,” Antony murmurou.
E todos provaram juntos.
Chorando baixinho
Naquele tempo, o coração de Willy sempre ficava agitado ao ver Charlie. Ele tentava esconder e até achava que fazia um bom trabalho com isto, mas o Bucket sempre notava que ele estava agitado. “O que está aprontando hoje?” Charlie perguntou.
A escola inteira estava vestida com tons de rosa, branco e vermelho. Alunos vestidos de cupido zanzavam com flores, entregando recados e presentinhos que os mais tímidos não tinham coragem de fazê-lo pessoalmente.
“Sua cara está péssima o dia todo,” Willy comentou enquanto se encostava no armário ao lado. Como resposta, Charlie soltou um rosnado baixo, voltando a vasculhar algo no próprio armário escolar. Ele era a única pessoa que não tinha colocado nada na porta do armário e guardava tão pouca coisa, que o pequeno espaço parecia enorme. “Não gosta do Valentine’s day?”
Charlie finalmente fechou o móvel de metal, batendo a porta com um pouco mais de força. “Nada contra, na verdade.”
“Mentiroso,” Willy rebateu sem se importar com o olhar perigoso que recebeu. “Quantos chocolates você recebeu?”
“Quinze.” O mau humor do Bucket pareceu aumentar. “E doze cartões.”
“Muita coisa, não?”
Os dois seguiram caminhando pelo corredor empanturrado de adolescentes. As aulas do dia já haviam acabado, mas naquele dia, os alunos preferiam ficar trocando carícias e presentinhos por mais algumas horas, deixando professores e a equipe de faxina com bastante raiva pela bagunça e pelo trabalho a mais.
“Quantos você recebeu, Wonka?”
“Ah, eu não conto. Só recuso.” Explicou enquanto passava pela porta principal.
“Isto não é mal visto?”
“De certo modo, sim. Mas, veja bem, se eu não aceito, eu já quebro a esperança e ninguém se machuca mais do que precisa, não?”
Willy viu Charlie mordendo o lábio inferior enquanto pensava. Era uma mania dele, que só acontecia quando estava pensando seriamente a respeito de algo. Assim, Willy descobriu como o Bucket preferia literatura e gramática à exatas, como Charlie era muito mais disposto a escutar coisas que quebram o padrão do que as formas comuns de pensar e, principalmente, serviu para acender a chama de paixão que o amante de doces sentia.
Isto porque apenas com Wonka, Charlie mordia os lábios com tamanha facilidade. E, quando ele chegasse a uma resposta, então olharia para Willy, os olhos claros dilatando lentamente antes de finalmente vir a voz do Bucket.
“Nunca pensei deste jeito,” Charlie sussurrou.
Os dois seguiram caminhando, o silêncio incomodando um e deixando o outro em paz. As lojas, assim como a escola, estavam fantasiadas para a data amorosa e até mesmo algumas casas foram enfeitadas. Willy observava os desenhos, os anjinhos gorduchos, as cores quentes iluminando um sentimento tão quente quanto elas. “Você não gosta da data por ser seu aniversário?”
A pergunta fez com que Willy seguisse pelo caminho sozinho, pelo menos por alguns passos. Então ele parou, olhou para trás e viu o Bucket congelado no lugar. Os olhos dele estavam um pouco mais escuros por culpa do sol, mas arregalados em pânico, assim como a boca aberta de forma abobalhada.
“Como?” O restante da pergunta se prendeu na garganta de Charlie.
Willy retornou os passos percorridos sozinho, parando em frente ao vizinho que lhe deixava com o coração disparado, ansioso pelo dia seguinte, clamando para que a segunda-feira chegasse logo e ele pudesse fazer aquela caminhada junto de Charlie Bucket. “Você não parece gostar do seu aniversário, não?”
“Como sabe que hoje é meu aniversário, Willy?”
“Somos vizinhos, Bucket.”
“Há cinco anos, só.”
Willy recuou um passo, desviando o olhar para esconder seu nervosismo. Charlie nunca tinha dado uma festa, nunca tinha dito para ninguém quando era seu aniversário e sempre achava um jeito de desviar do assunto. Mas Willy podia ver ele abrindo os presentes que recebia dos pais, acordava junto dele, assustado com o senhor e a senhora Bucket entrando aos berros no quarto do filho. A noite, eles cantavam parabéns ao Bucket herdeiro e Charlie comia o bolo deitado na cama, vendo alguma coisa engraçada na tv.
Só que, definitivamente, Willy Wonka não podia dizer isto para Charlie. Que era um stalker, um perseguidor. Isso afastaria o Bucket sem dúvidas.
“Willy?” O Bucket deu um passo à frente. Wonka limpou a garganta e ergueu a sacolinha que carregava. Tinha deixado ela no armário durante o dia todo e esperava que o conteúdo ainda estivesse intacto, quando Charlie o abrisse. “O que é isto?” Charlie riu, de um jeito agressivo e não animado, “um presente de Valentine’s day?”
Um calor estranho subiu para as maçãs do rosto de Willy, mas ele manteve seu foco na raiva que sentiu por ser colocado como uma pessoa comum. Ele não queria ser comum e nem seria, pois sabia que as coisas comuns não agradavam Charlie Bucket.
“Claro que não,” ralhou. “É meu presente de aniversário”.
Foi a primeira vez que Willy fez um doce para alguém e o seu coração só foi se acalmar na manhã seguinte, quando os braços de Charlie envolveram seu corpo, o abraçando em agradecimento. “Este foi o melhor brownie que comi em toda a minha vida.”
Louquinho de amor
[Louquinho - Jão]
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