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História O Pecado de Anúbis - 2 - KANUBIS, ET NEPEM MANUBIS, VAICS NI NO QEUNIS


Escrita por: CaioHSF

Capítulo 3 - 2 - KANUBIS, ET NEPEM MANUBIS, VAICS NI NO QEUNIS


[Ankh]  KANUBIS, ET NEPEM MANUBIS, VAICS NI NO QEUNIS [Ankh]

Quando foi encontrado na margem do Nilo, Anúbis segurava um símbolo com força em suas jovens mãozinhas. Ele nunca chorou. Nenhuma vez. Sempre mórbido, o menino-chacal raramente expressou suas emoções exteriormente de alguma forma comum. O símbolo era como uma cruz, mas com algo semelhante a um laço na haste superior. Lembrava um hieróglifo, mas era diferente de tudo o que os chacais já viram ou conheciam dos humanos e deuses. Era feito de madeira muito escura, e macio como areia. Ele nunca se separou do símbolo, e o batizou de Ankh.

Mesmo que os chacais tenham se acostumado com aquelas formas negras e esguias da cruz de Anúbis, não se esqueceram do seu temor.

Bast dizia que era um hieróglifo dos uquebitis.

– O que é um uquebiti? – ele perguntou.

A menina se pendurava de cabeça para baixo na árvore, se segurando com a resistente e peluda cauda de gato. Algumas flores brancas enfeitavam seu cabelo lanoso preto-azulado, e ela comia uma fruta que brilhava amarela.

– Quem sabe? – ela respondeu como se perguntasse para o céu. A cada segundo seus olhos estavam em um lugar diferente. Sempre indo de um lugar a outro com muita energia, nunca parada, sempre em busca de aventuras, como se até as mais simples brisas do vento da primavera fossem um mistério a ser desvendado. E que só ela, a intrépida Bast, poderia desvendar. – O Ptah disse que eles eram como anjos.

Anúbis pensou enquanto tocava a água do pequeno oásis com os dedos dos pés.

– O que são anjos?

– Eu não sei. Ou não lembro. Não é fácil lembrar de tudo que o professor fala. Ainda mais quando ele diz que sabe de tudo. Mas eu duvido que ele saiba mesmo de tudo. Ninguém pode saber de tudo.

Ela falava em rash-nenayum, a língua dos deuses, mas com sotaque tsaidzai, a língua dos gatos. Gatos eram noturnos e carnívoros, como os chacais. Mas eles jogavam líquidos nos seus mortos na esperança de que ficassem preservados, mas não ficavam. Os chacais apenas os enterravam abaixo de uma pequena pirâmide. Gatos eram criaturas sombrias, não tanto quanto Anúbis, que sempre preferia estar onde havia velório ao invés de onde havia festa. Deve-se pensar no fim para se valorizar o presente, porque só quando se pensa na morte é que se lembra de como a vida é importante e frágil. As pessoas são como as folhas, passa um vento e já não há mais sinal delas. Isso é a morte.

– Toth falou que eles eram kuraxi.

Isso era uma palavra feia na língua dos gatos, que era usada para ofender alguém chamando de tolo, desprovido de juízo ou autocontrole. A boca de Bast nunca foi a mais limpa do Egito. Os deuses sempre presavam por uma boa educação e padrões de sua nobreza e realeza. Tudo tinha que ser o mais elegante e perfeito, cada detalhe, das unhas dos pés às tranças do cabelo. Mas Bast era jovem, rebelde e ousada, ainda acreditando em seus sonhos e sentindo livre, com todo o universo a disposição de uma deusa para escolher qualquer coisa, ou até ser livre para escolher nada. Ela era uma pessoa incrível, e sempre seria a melhor amiga de Anúbis. Pelo menos era isso o que eles gostavam de pensar.

 

– Então você é a coisa dos chacais... – observou uma voz poderosa que Anúbis não conseguia identificar de que lugar do grande salão com os tronos ela vinha. Néftis se sentava no trono menor a esquerda do trono maior, ambos de puro ouro e pedras coloridas. A deusa vestia um longo vestido branco transparente, e uma coroa com uma ave abraçando seu cabelo negro que não parecia ser uma peruca, mas seu próprio cabelo, que flutuava como se ela estivesse embaixo d’água. Seus olhos verdes escuros eram tão lindos quanto os de Ísis deveriam ser. O castanho escuro de uma poesia eterna, que viu a luz do sol nascer em seu interior, mas continuou negra e perfeita em seu valor.

Anúbis se assustou quando viu um deus caminhando como um leão em busca da presa, o cabelo vermelho era feito de fogo e os olhos alaranjados eram pequenos e puxados para os cantos. Seu nariz era fino e pontudo, e as orelhas se levantavam até um palmo acima da cabeça. Tinha quase dois metros de altura e tudo em seu ser indicava poderes divinos e terrores arcanos de um antigo ser imortal e maligno, que matou o céu e poderia devorar o mundo.

Ele sentou no trono maior ao lado de Néftis, e olhou para o jeito que Anúbis o encarava. Abaixou suas orelhas, encurtou e arredondou seu nariz, seu cabelo se tornou uma massa de pelos ruivos encaracolados. Os olhos ainda eram alaranjados, finos e alongados. Sua pele era de um marrom avermelhado muito escuro como um barro cruel. Ele era como um humano, mas Anúbis olhou para os olhos dele, e conseguiu ver as cicatrizes de uma alma de dor e sofrimento. Eram olhos cansados e antigos, carregados de mágoas e tristezas, agora convertidas em uma fúria descomunal.

Serpentes aladas cuspidoras de fogo estavam perto do trono, e os guardas eram escorpiões segurando lanças de lâminas de ouro.

– Não me parece grande coisa. É só mais um humano. – falou em rash-nenayum. Bast lhe disse uma vez que a língua dos deuses era como o sol. Uma brilhante e incompreensível luz incondicional que todos podiam entender dentro de sua mente, se o deus assim permitir.

Os olhos dele o encarando eram como dois infernos do tamanho de universos. Julgando com os olhos cada côvado (forma de medida da antiguidade que ia da ponta do dedo médio ao cotovelo) do plebeu, e não expressando muitas coisas além de desprezo, nojo e algo que parecia humor. Néftis sorria como uma máscara cruel, e seus dedos de unhas compridas eram como garras no ombro negro e inflexível da divindade de Seth.

– Não se engane. Ele é mais do que aparenta. – ela disse e piscou para Anúbis. Não sabia como reagir a isso.

Nunca esteve em um lugar tão grande. Era como um complexo de palácios em forma de pirâmide gigantescas e brancas, cercadas por uma muralha de obeliscos com fogo, e imensas estátuas de um gigantesco Seth pintado de vermelho. Todo o faraônico zigurate (um tipo de palácio em forma de pirâmide https://lh6.googleusercontent.com/-sonFdg62bMA/U_zX775FadI/AAAAAAAAEwU/FX-5E6p8XmQ/w709-h402-no/reconstrucao-do-zigurate-de-ur.jpg) era protegido por escorpiões gigantes vindos do vale Tormento, próximo ao vale Desespero de onde vinham os escaravelhos gigantes, governados pelo tirano Escaravelho Mestre.

A arquitetura do interior do salão era estranha, a maneira como as linhas verticais iam até o teto e todas as pinturas eram de Seth. Os escorpiões usavam perucas ruivas e outros servos da palácio também. Tudo imprimia nos corações uma sensação de impotência e pequeneza diante da glória de Seth, a fonte de todo mal. Mas Anúbis não sentiu medo. E se sentiu, escondeu de si mesmo.

– Vamos ver. – disse a rainha. Estalou os dedos e, imediatamente, surgiu um escaravelho carregando uma bandeja de ouro com um jarro e duas taças cheias. O escaravelho serviu Anúbis, que segurou a taça com força mas não bebeu.

– Deve estar com sede. – apontou a rainha do Deserto erguendo uma sobrancelha escura.

Com mais um estalar de dedos, o escravo se foi, deixando a bandeja em uma mesa. No terceiro estalo, quatro grandes odres de vinho surgiram na frente de Anúbis. Todos fechados. Tentou entender o que era aquilo.

– Meu súdito menino-chacal, tenho sede. – disse Seth. – Três destes odres estão cheios de veneno de naja haje, uma gota no seu sangue e em questão de minutos seu coração para. Mas em um dos odres há o melhor vinho da adega dos deuses, do Deserto ou Kemet (significa “Terra dos Pretos”, é o antigo nome do Egito.). Me diga onde está o vinho sem veneno.

Olhou para os odres. Os cheiros eram os mesmos, mas veneno tem cheiro de morte, principalmente de naja haje. Anúbis conhecia o cheiro da morte, estava acostumado, era um perfume digno da mais bela das flores.

– Não há vinho bom. Qualquer um deles não mataria sua sede, mas sim você.

Houve alguma alteração na alma de Seth.

– O verdadeiro vinho está na mesa.

Pegou a taça envenenada, e bebeu. Aprendera há tempos que a morte estava do seu lado.

Néftis observou o olhar de Seth no menino. Ele sorriu, pela primeira vez em muito tempo. O deus vermelho não era satisfeito no Deserto, e queria mais que tudo o trono do irmão Osíris. Mataria por isso. Mas agora, talvez o menino tivesse ascendido algum brilho nos olhos sombrios de Seth, um brilho que nem Néftis podia mais ascender.

– Se é verdade, então pegue do jarro na mesa, e venha beber comigo. – Seth disse.

 

Anos antes, Anúbis pediu para Bast que perguntasse aos deuses de Osíris sobre o Ankh. Ela era a jovem princesa felina, treinada por seu pai Ptah para se tornar uma grande deusa no futuro. Anúbis conhecia, pelo menos de nome, os principais deuses. Toth era o mais inteligente e professor de Bast. Ele poderia saber.

Mas ele não pode. A gata levou um desenho do Ankh para ele analisar, mas Toth apenas disse que não sabia, se esquivando rápida e estranhamente. Com certeza estava mentindo.

Osíris era o grande e poderoso deus bom, amado por todos a sua volta e sempre bondoso com todos. Seth era mal e impiedoso, odiado pelos deuses e homens, reinava sobre a parte do mundo que deuses e homens evitam. Não entendiam que o Deserto era um reino como qualquer outro, apesar de grande parte suas fronteiras – apesar de muitos acreditarem que o Deserto fosse infinito – serem formadas por areias, sol escaldante e demônios. O Deserto era imenso, mas os deuses nunca se importaram com ele. Anúbis nunca viu Osíris, ou sua esposa Ísis, Toth, Ptah... Somente a humilde Bast conhecia Anúbis e o deserto.

Seth podia ser terrivelmente mal, mas foi o único deus bom para as tribos do Deserto. Mesmo que passasse a maior parte de seu tempo planejando vingança com sua esposa louca, ele mantinha a ordem com ajuda de outros deuses guardiões como o jovem Sobek, protetor dos crocodilos e a bela Uadjit, uma deusa da corte do Egito a morar no Deserto. Era a guardiã das plantações de pairo no delta, e tinha a pele esverdeada como as plantas do papiro. Havia também Hatmehit, que era deusa dos peixes, Meretseguer, a deusa das serpentes, e Nakhbet, a perigosa deusa abutre com quem Anúbis algumas vezes encontrava quando estava passando as noites perambulando pelos túmulos em busca de inspiração para poesias.

Após algumas noites no palácio de Seth, Anúbis se sentiu livre o bastante para, em busca de respostas sobre si, mostrar para Néftis o Ankh no pescoço.

– É uma cruz. – a deusa disse.

– O que é uma cruz?

Ela pensou antes de responder, e sorriu para ele, brilhando os olhos escuros.

– Siga o caminho além daquela porta até as masmorras no subterrâneo, e nas bifurcações siga nove vezes para a esquerda.

Assim o fez. Não precisou se lembrar do caminho. Bastava seguir os gritos de um homem sendo torturado por Seth, amarrado em duas madeiras se cruzando em diagonal.

– Venha ver. – chamou Anúbis sem tirar os olhos do homem. Os braços e pernas amarados e cada dedo das mãos e pés martelados na madeira. Uma serpente estava apertando seu pescoço com a cauda e outras no chão mordiam suas pernas.

– Este é Hailt, o líder de uma equipe de idiotas que tentaram roubar meu tesouro. Este é o único que deixei vivo.

– Uma cruz.

– Linda, não é mesmo. Ele ficará com a vida e a morte em minhas mãos. Como um verdadeiro deus, eu domino seu sofrimento para durar o quanto eu quiser.

Os olhos de Seth se deliciavam com as lágrimas de sangue saindo dos olhos do homem agonizando, lágrimas chovendo em um grito de misericórdia. O rosto e o corpo se tornando mais pálidos a cada instante que o sangue era bebido pelas estranhas serpentes brancas no chão. Já vira humanos em várias ocasiões, mas nunca se sentiu como um deles. Infelizmente também não se sentia entre amigos quando estava com os chacais, ainda que fosse muito amado por sua família.

Este humano estava sofrendo muito.

– Misericórdia...

Seth voou até ele e apertou seu nariz com tanta força que ele esfarelou como areia. Segurava um cetro de ponta afiada contra o peito dele.

– Misericórdia?!! Sabe quem sou? Quem pensa que é para implorar algo como misericórdia a mim?

– És o demônio que matou Nut. Matou o céu. És o invejoso que morre todos os dias na solidão e amargura. – Anúbis observou o homem morrendo e ainda com coragem para desafiar o deus mais perigoso do mundo. – Você nunca terá o trono. Vida longa a Osíris!

            Houve uma série de raios no céu, como os de uma tempestade de areia. Mas eram gritos. Não do homem, mas do deus.

            – Se eu matei o céu e o tornei negro como os olhos do poder é porque sou mais forte. Mais forte que o céu e a terra. Mais forte que meu irmão, e mais forte que você.

            Quando Seth estava prestes a mata-lo com a lança, Anúbis o segurou.

            – Quer me impedir?

            O Ankh gelou no pescoço de Anúbis.

            – Não precisa ser assim.

            Tocou o Ankh no peito ferido do homem, que começou a ficar cada vez mais pálido, como se a vida fosse o abandonando. Ficou amarelo e depois, como se tivesse lepra ficou quase tão branco quanto a neve, e sua pele foi se soltando dos ossos, se decompondo, apodrecendo, retornando ao pó, mostrando ossos muito brancos que também morreriam. Anúbis pegou o coração e entregou para Seth, que bateu mais uma vez antes da morte definitiva. O homem gritou mais alto que a fúria de Seth na tempestade durante a uma hora que levou até sua pele esbranquiçar e cair. As paredes tremiam e as cobras fugiram assustadas.

           

No final de tudo, Seth riu.

            – Do pó ao pó. Talvez a morte deva ser justa.

            Em liriymnague, – que significa lamento de sangue ou lágrimas de sangue – a língua dos chacais, as palavras morte e justiça são parecidas: kanubis para morte e manubis para justiça. Antes de morrer, os chacais costumavam dizer: kanubis, et nepem manubis, vaics ni no qeunis. Morte, a sempre justa, me leve para a paz.

            – Quando visitei a terra de Sinear (na Mesopotâmia, atual Iraque) – Seth disse olhando para o homem entre seus dedos. – os cabeças pretas costumavam dizer “Olho por olho, dente por dente”. – apertou o coração, que se tornou em areia tão fina que desapareceu no ar. Voltou para os olhos de Anúbis. Brilhavam como espelhos refletindo as velas da masmorra. Sorriu da mesma forma que Néftis estava sempre sorrindo. Não gostava disso.

            – Eu e você vamos nos dar muito bem juntos.

            Quando ouviu isso, sentiu muita saudade de sua família. E de Bast. E dos versos que sua alma declamava para aos mortos. Há algumas semanas estava sendo criado pelos deuses e aprendendo mais sobre o mundo. Estava gostando, mas queria rever seus entes. Quando dormiu no Arenger naquela noite, teve mais uma vez um sonho com sua amada Kali. Era em noites assim que sentia menos sozinho.



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