Naquela manhã, quando acordou muito mais cedo que o costume para pegar a estrada, Sakura realmente acreditou que as coisas não poderiam piorar. Ela já não havia dormido direito, estava com uma dor de cabeça violenta e tinha derramado café em sua camisa branca, tentando bebê-lo enquanto dirigia. Agora sua pele ardia, queimada onde a bebida escorreu, e embora não estivesse propriamente com sono, sentia-se cansada e desanimada.
Espiou pelo espelho retrovisor o lindo vestido azul royal que usaria no casamento de Ino, embolado no banco de trás. Ela temia tê-lo deformado ao ponto que nenhuma passadeira a vapor poderia consertar. Não deveria tratar aquele fino zibeline com tanto desleixo e nem ter entrado madrugada adentro naquela conversa que, ela já sabia, não levaria a lugar nenhum. Devia ter somente arrumado a desgraça de uma mala e dormido o suficiente, mas ela não soube dizer não.
Agora estava ali, extenuada e sem conseguir enxergar dois palmos à frente porque o céu resolveu desabar sem aviso nenhum. Merda foi o que ela gritou na solidão do carro quando aceitou que não poderia continuar dirigindo naquele temporal.
Reduziu a velocidade em busca do primeiro refúgio que aparecesse no caminho e, por sorte, assim que completou a curva naquela tortuosa estrada que subia a serra, viu o posto de gasolina com um grande restaurante anexo. Já havia passado por ali uma centena de vezes, mas nunca parou. Manobrou o carro e estacionou na vaga mais próxima da entrada que pôde encontrar, pois não tinha um guarda-chuva com ela e a última coisa que precisava era ter sua camisa favorita manchada e encharcada.
Olhou novamente para o espelho retrovisor, agora encarando sua própria imagem, e quis chorar quando viu as olheiras profundas embaixo de seus olhos. Chegar com essa cara deplorável à vinícola dos Yamanaka causaria uma impressão muito pior do que qualquer camisa suja. Respirou fundo e enfiou a necessaire de maquiagens dentro da bolsa antes de jogar a jaqueta jeans sobre a cabeça e sair correndo em direção ao restaurante. Ela aproveitaria aquela parada forçada para tomar um belo café da manhã, cobriria muito bem a cara de velório e ofereceria à sua melhor amiga a alegria festiva que ela merecia nesse final de semana.
Assim que entrou no local, um calor aconchegante a envolveu, acompanhado pelo cheiro doce de especiarias. Ela suspirou pelo conforto que a temperatura e o aroma traziam, observando que aquele não era um restaurante típico de beira de estrada. O clima familiar estava nas paredes cobertas de porta-retratos, nas toalhas de chita que coloriam as mesas e no sorriso imenso que a senhorinha atrás do longo balcão oferecia para ela. Sakura não estava no melhor dos humores, mas acabou sorrindo em retribuição enquanto examinava o salão, em busca de uma mesa vazia. Andava pelo lugar sem direção, quando uma voz conhecida chamou seu nome.
Pensou seriamente em fingir que não era com ela, mas já tinha travado seus passos ao ouvir aquele timbre áspero do qual tanto sentiu falta nesses anos todos.
De todos os momentos possíveis para esse reencontro casual acontecer, tinha que ser justo agora? Veja só, as coisas sempre podem piorar.
Mudaram as estações
E nada mudou
Ela jamais saberia que Kakashi se arrependeu assim que disse seu nome. Ele entendia que chamá-la dessa maneira, como se ainda fizessem parte da vida um do outro, traía todos os acordos tácitos que mantinham desde o término da relação. Chamou por ela como se esquecesse que estava acordado, como se aquele fosse um dos tantos sonhos que teve desde o dia em que tudo acabou.
Ficou olhando para ela, parada de costas à sua frente, surpreso em ver que ela seguia tingindo os cabelos com aquele rosa chamativo. A nostalgia o abateu enquanto lembrava das vezes em que foi ele a passar o pincel naquela parte bem atrás da cabeça, aquela que ela não alcançava direito e sempre ficava manchada se fizesse sozinha. Então percebeu que ela se virava em sua direção e, como se esse encontro repentino não o abalasse, sorriu.
— Ei. Fugindo da chuva também? — ela perguntou sem qualquer emoção na voz, mas com os olhos ardentes que ele tanto amava cravados nos seus. Kakashi sentiu que o sorriso nervoso que estampava cairia em breve, então o esticou ao máximo.
Era uma expressão estranha de se ver.
— Eu parei pra tomar um café na verdade, mas aí a chuva começou, e você sabe que não é bom dirigir nessa estrada com esse tempo. Lembra aquela vez que a gente… — Como se percebesse o quão danoso seria falar daqueles tempos com tamanha naturalidade, ele deixou a frase morrer. — Já avisei o Genma que vou atrasar — comunicou a ela, sem saber porquê.
— Bom. — Foi tudo que Sakura se dignou a responder.
— Você… quer sentar? Tá bem cheio aqui — ele murmurou enquanto olhava ao redor.
O salão estava lotado, e mesmo que não estivesse ele a convidaria igual — porque não sabia se aguentaria vê-la indo embora. De novo.
Mas eu sei que alguma coisa aconteceu
Tá tudo assim, tão diferente
Sakura achava que o melhor seria dizer não, mas percebeu que não fazia sentido fugir dele agora se passaria os próximos dois dias ao seu lado naquele casamento. Assim, largou suas coisas numa das cadeiras e sentou em outra, de frente para ele. Estavam ao lado de uma ampla janela e o barulho da água batendo no vidro preencheu o silêncio entre os dois. Tentou prestar atenção na música que tocava baixinho ao fundo, mas não conseguiu identificá-la. Queria focar sua atenção em outra coisa, acalmar de alguma forma o coração que batia tão rápido.
Ela já sabia que o veria, só não estava pronta para que fosse agora. Queria que esse encontro acontecesse quando estivesse cercada pelos amigos de infância, bebendo sua quarta ou quinta mimosa, com um lindo penteado e usando o vestido vermelho que separou especialmente para o jantar dessa noite. Então ela nem precisaria falar com ele, poderia ignorar sua presença enquanto gargalhasse das velhas histórias com Ino e Temari, ou de alguma das besteiras de Chouji, ou do próprio Genma, que certamente circularia muito e entre todos para ouvir mais e mais votos de felicidade eterna para sua união. No fim, talvez Sakura até conhecesse alguém; um novo amigo ou nova amiga do casal, e garantisse um belo encerramento para aquele dia que começou tão mal.
Era isso: ela conheceria alguém e esqueceria que ele estava lá. Não pensaria nele, nem por um segundo.
Contudo ambos estavam ali, a sós, e esse plano estava arruinado. O mutismo entre eles seguia e ela achou que era uma boa ideia mandar uma mensagem para Ino, assim como ele fez para Genma, avisando que se atrasaria. Por sorte ainda era cedo da manhã, com certeza chegaria a tempo para o jantar, que era o primeiro compromisso oficial dos padrinhos e madrinhas. Catou o celular na bolsa e suspirou alto quando viu as 9 chamadas perdidas de Hidan.
Como se tudo que foi dito naquela madrugada não fosse mais que o suficiente.
Enviou uma mensagem rápida para a amiga e cogitou enviar outra para o homem com quem tentou compartilhar a vida nesse último ano, porém desistiu antes mesmo de começar. Lidar com dois ex-namorados ao mesmo tempo era um pouco demais para ela.
— Tá tudo bem? — Kakashi perguntou, meio alto demais, enquanto mexia rapidamente a colher em seu café puro.
— Tudo. Só resolvendo umas pendências — ela respondeu sem tirar os olhos da tela apagada do celular. No fim ele não era você, ela completou mentalmente, ele não era você, então eu o mandei embora, como sempre.
— Você tem remédio?
— O quê? — Ela olhou para ele, que seguia encarando a própria xícara.
— Você tá com uma daquelas crises de enxaqueca, não tá? Essa ruguinha aí entre as sobrancelhas, ela aparece quando você tá com dor.
Ele não a olhou um segundo que fosse desde que ela sentou ali. Como podia saber?
— Eu já tenho trinta anos, Kakashi. Hoje em dia as ruguinhas são constantes no meu rosto.
A resposta dele foi um risinho sem humor nenhum.
Se lembra quando a gente
Chegou um dia a acreditar
Que tudo era pra sempre
— Que besteira, Sakura. Teu rosto continua o mesmo. — Lindo como sempre, ele queria dizer, mas não se atreveria. Seguiu encarando aquela xícara de café que esfriava, enquanto mil lembranças dos anos que passaram juntos afloravam, embaralhadas.
Foi em outra vida que aquela menina magricela puxou seu braço no recreio para dizer que a melhor amiga dela era apaixonada pelo melhor amigo dele, e que ele e o outro deviam aparecer na sua festa de aniversário para que isso finalmente rolasse, porque não aguentava mais ouvir a loira suspirando pelo idiota da bandana azul todo santo dia? Foi no mês passado que eles combinaram de dançar aquela música lenta só para que Genma e Ino tivessem uma boa desculpa e fizessem o mesmo? Foi ontem que ele acabou beijando sua boca porque estava hipnotizado por aqueles olhos de esmeralda? Foi há um segundo que ele disse eu te amo pela primeira vez?
Era tão estranho vê-la assim, tão parecida com a mulher que embarcou naquele avião cinco anos atrás. E, ao mesmo tempo, era ainda mais estranho perceber que ela era outra, era alguém que ele não conhecia mais.
— Com licença — Sakura chamou uma das atendentes — de onde vem esse cheiro maravilhoso que tem aqui? Esse de canela?
— Ah, é da torta de maçã! — A moça respondeu sorridente. — É nossa especialidade e acabou de sair do forno.
— Hmmm... então eu vou querer uma fatia. E um milkshake de morango. — Ela pediu naquele tom gentil e afetuoso que ele sempre admirou.
— Certo, já trago seu pedido. E o senhor, vai querer mais alguma coisa? — Virou-se para Kakashi com o bloco e a caneta em punhos.
— Traga só dois talheres para a torta e dois canudos para o milkshake. Nós vamos dividir. — Sakura respondeu por ele, que finalmente a encarou.
Sem saber que o pra sempre, sempre acaba?
— Você sabe que eu odeio milkshake. — Ele disse quando a moça que os atendeu se afastou.
— E sei que você sempre pede um gole assim mesmo, pra poder reclamar de como é doce. — Respondeu sorrindo, enquanto prendia os longos cabelos em um rabo frouxo.
Acabou lembrando da primeira vez que ele roubou um gole de milkshake dela. Foi no ano em que se conheceram, em uma tarde quente de verão. Ele tinha dezessete, ela tinha quatorze. Ele estava terminando o ensino médio, ela estava começando. No primeiro dia de aula sua melhor amiga já caiu de amores por aquele garoto meio grunge que mascava a ponta das canetas. Vai entender. Não tinha um intervalo de aula que Ino não ficasse cutucando seu braço para dizer que ele era lindo, que ela já sofria pela ideia de que ele ia se formar e ela nunca mais o veria. Um dia, Sakura se cansou daquele drama todo e decidiu colocar o amigo do mascador, aquele com cara eterna de tédio, para trabalhar a seu favor: eles fariam com que Ino Yamanaka e Genma Shiranui se tornassem um casal. Hoje, Sakura tinha certeza que esse foi o plano mais bem sucedido da sua vida.
Pigarreou de leve, tomando coragem para olhar novamente nos olhos daquele que foi o seu comparsa nesta empreitada, e em tantas outras depois.
Ele ainda tinha os mesmos olhos preguiçosos, escuros e profundos, agora adornados pelas marcas de expressão que os sorrisos deixaram. Kakashi era apenas três anos mais velho que ela, mas sua expressão sempre foi meio soturna, meio madura demais. Se perguntou o quanto ele sorriu desde que foi embora. Foi mais do que sorriu ao seu lado?
Ela tinha ouvido as histórias nos anos que passou longe. A cada chamada de vídeo com a Yamanaka, Genma fazia questão de aparecer ao fundo e contar alguma coisa sobre como andava a vida do seu primeiro amor. Sobre a promoção na empresa, sobre a nova namorada, sobre a morte da mãe. Nesse dia, Sakura escreveu um email imenso para ele, que respondeu duas semanas depois com um minúsculo “muito obrigado, significa muito para mim”. Ele ainda estava magoado, Sakura sabia, e por semanas repetiu para si mesma que estava tudo bem.
Quando soube que Kakashi noivou, ela chorou, mas depois ficou feliz por ele. Porque ainda o amava, e amava tanto que não desejaria para ele a mesma dor de saudade que a consumia com frequência. Foi nesse ano que ela recebeu uma proposta irrecusável vinda de sua cidade natal e acabou voltando. Foram vinte e seis meses morando a dez mil quilômetros de distância, porém, quando botou os pés naquele saguão de desembarque, Sakura teve certeza que o seu coração nunca saiu dali.
Nas primeiras semanas, sempre que saía de casa imaginava que acabaria esbarrando nele em uma esquina qualquer, de mãos dadas com seu novo amor. Ela planejava o sorriso polido que ofereceria aos dois, para ter certeza que conseguiria agir com um mínimo de nobreza. Entretanto, esse encontro jamais aconteceu: três meses após seu retorno, Sakura soube que o noivado de Kakashi havia terminado. Nunca vai esquecer da expressão de culpa que Ino fez quando deixou escapar essa informação, como se Kakashi tivesse se tornado um assunto proibido entre elas.
Na verdade, ainda havia dias em que ela tinha certeza que o veria. Foi num desses que conheceu Hidan, inclusive. Estava em um jantar de negócios com alguns acionistas da empresa em que trabalhava, dos quais ele fazia parte. Sentia-se carente e aquele jeitão de enganador, de que diria tudo o que ela desejava ouvir, foi suficiente. Então ela aceitou estender aquela noite — por insensatos dez meses.
— Eu só fazia isso com você, pra te irritar. — Kakashi disse com um sorriso triste.
— Bem, sou eu aqui, não sou? — Ela também tentou sorrir, sem muito sucesso.
Ele abriu a boca uma, duas vezes, mas acabou apenas inspirando todo o ar que seu peito acomodava e tomou um gole do café frio, fazendo uma careta logo depois.
— Tá pronta pro grande dia dos dois idiotas? — Ele perguntou, voltando a encarar aquela xícara.
— Negativo. — Pela primeira vez naquele dia, ela deu um sorriso aberto e verdadeiro. — Mas o teu amigo com certeza vai dar mais trabalho que a minha amiga.
— Como sempre. — Ele também sorriu com mais naturalidade dessa vez.
A garçonete chegou, trazendo uma grande fatia de torta e a taça enfeitada com chantilly. Sakura rapidamente enfiou os dois canudos no meio daquele creme rosado e deu um longo gole, oferecendo para Kakashi em seguida. Ele piscou algumas vezes, sem qualquer menção de pegar a taça das suas mãos.
— Eu achei que o teu namorado vinha também.
— Nós terminamos.
Mas nada vai conseguir mudar o que ficou
— Sinto muito. — Era uma mentira? Ele não tinha certeza.
Sakura balançou a cabeça em uma negativa fraca, colocando um pedaço de torta na boca. Ela fechou os olhos, aprovando aquele sabor com um gemido contido de satisfação. Um som perdido no tempo para ele, mas que fez aflorar outras tantas lembranças, muito mais recônditas.
O cheiro era mesmo bom. De maçã assada, canela e calda de açúcar. O tipo de coisa que Kakashi preferia o cheiro ao sabor, mas decidiu que provaria um pedaço. Talvez ele também precisasse de um pequeno prazer, uma dose de doçura. Tudo o que Sakura significou na vida dele durante os anos que estiveram juntos.
Nem a despedida foi amarga. Sofrida, sem dúvidas, mas não amarga.
Quando Sakura recebeu aquela proposta para co-assumir a assessoria de imprensa da empresa para a qual trabalhava, eles só comemoraram. Kakashi estava feliz por ela, orgulhoso, e por alguns dias simplesmente ignorou o que aquilo significava: que ela iria trabalhar na sede, do outro lado do mundo. Então eles conversaram, conversaram e conversaram mais um pouco.
Ele queria fazer dar certo mesmo a distância. O gasto em passagens seria pesado, mas Sakura ganharia bem nessa nova posição e ele também logo seria promovido, era uma questão de tempo. Kakashi sabia que eles podiam fazer isso funcionar, mas Sakura estava relutante. Então ele enviou alguns currículos, organizou suas contas, e viu que poderia ir com ela mesmo que não conseguisse emprego nos primeiros meses. Na pior das hipóteses, lavaria pratos em algum lugar. Tantos faziam isso, ele também faria. Por ela, ele poderia.
Quando compartilhou essa ideia com Sakura a conversa rapidamente virou uma discussão. Ele não lembrava em que ponto foi, mas em algum momento ela chegou ao seu limite, desatando em um choro amargurado e gritando que aquilo não era justo. Não era justo que ela tivesse tudo o que queria às custas do sacrifício dele. Ela não aceitaria que ele torrasse todo dinheiro que sobrava só para vê-la três vezes ao ano, e também não aceitaria que ele sacrificasse seus sonhos porque ela queria viver os seus próprios.
Kakashi estava disposto a esperar o dia em que eles pudessem viver juntos de novo, mas Sakura não estava disposta a pedir tanto. Ele sempre quis uma família e ela não sabia quando poderia lhe dar isso. Mantê-lo preso a ela seria apenas egoísmo, seria insistir que aquele amor de infância fosse eterno acima do bem-estar dele e ela não faria isso. Nem todos os amores são eternos, afinal.
Nunca Sakura havia dito algo que o machucasse tanto quanto aquelas palavras. Nem todos os amores são eternos — como se o amor deles estivesse condenado a morrer porque ela era altruísta demais. Pela primeira vez em onze anos, Kakashi deixou Sakura para trás, batendo a porta com toda sua força quando saiu.
Passaram uma semana sem dormir juntos depois disso. Aqueles dois apartamentos, que sempre foram só duas casas do casal, tornaram-se a casa da Sakura e a casa do Kakashi pela primeira vez. Separados, como nunca antes. Então o desespero bateu e ele foi até a casa dela. Estava esperando sentado no sofá, em meio às caixas que ela já organizava, quando Sakura chegou do trabalho.
Eles transaram como nunca naquela noite. Havia aflição e medo os envolvendo, assim como amor, necessidade e desejo. Era como se quisessem matar uma saudade antecipada, anestesiar o tão temido futuro que os aguardava.
E assim foram todas as noites até ela entrar naquele avião e eles nunca mais se falarem. Exceto pelo dia em que sua mãe morreu. Kakashi escreveu no mínimo quatro e-mails diferentes em resposta ao dela, mas nunca enviou nenhum, porque Hanare estava ali por ele nessa época e não tinha o direito de magoar assim qualquer uma das duas. Quando percebeu que deixá-la sem resposta nenhuma também era cretino demais, enviou a menor — porém mais sincera — mensagem possível.
Nesse dia, assim que clicou em “enviar”, Kakashi decidiu que finalmente aceitaria a ideia dela: nem todos os amores são eternos. Aquele foi o seu amor de adolescência, e talvez por isso ele alimentasse fantasias também adolescentes sobre Sakura e a história que viveram. Já era hora de livrar-se de uma vez por todas desse sentimento e olhar com total devoção para a mulher que estava ao seu lado agora. Ele deixaria o passado para trás e apostaria todas as suas fichas no futuro. Então ele noivou.
— Ele não viria, de qualquer forma. — Ela disse, quando terminou de mastigar — A nossa relação não era desse tipo, entende? Não fazia sentido dividir isso com ele.
Ela estava falando do que, exatamente? Do casamento de Genma e Ino? Da festa entre amigos? Da refeição ridiculamente infantil para aquele horário da manhã? Fosse qualquer uma dessas coisas, o que Sakura estava dizendo era que o seu relacionamento não foi como o que eles tiveram, e ele entendia, de alguma forma, o peso que isso tinha. Porque o relacionamento que ele teve também não foi, embora tenha se esforçado muito para fazê-lo verdadeiro e duradouro.
Kakashi realmente achou que estava conseguindo, mas um dia soube do retorno de Sakura e os sonhos com ela também voltaram. Em uma noite ele acordou de madrugada após um desses e, sem perceber, aninhou o corpo em Hanare achando que era Sakura ali. Isso era tão desgraçadamente errado que ele não pôde mais dormir, sufocado pela culpa que sentia.
Aquele sim foi um rompimento amargo, porque ele era mesmo culpado de tudo que a mulher o acusou. Desde então, nunca mais namorou ninguém. Conheceu algumas pessoas, saiu algumas vezes, mas nunca mais permitiu que se aproximassem demais. Kakashi aceitou que já não podia oferecer muita coisa, e seria muito irresponsável fingir que estava disponível quando, na verdade, nunca esteve.
Percebeu que Sakura estava com o nariz vermelho e as sobrancelhas unidas enquanto encarava o bolo à sua frente, e prendia os lábios com tanta força que o queixo se enrugava. Era a expressão que ele batizou de ameixa chorosa mil anos atrás. Ela estava segurando o choro, e nunca foi boa nisso. Kakashi se arrependeu de ter perguntado sobre o outro, não devia ter cutucado algo que obviamente ainda era sensível para ela só para saciar sua curiosidade.
— Ei. — Ele chamou, fazendo com que ela erguesse aqueles olhos imensos e cheios d’água na direção dele. — Desculpa ter perguntado. Não chora.
— Tsc. — Resmungou com um retorcer azedo dos lábios e voltou os olhos para a janela — Não tem nada a ver com a tua pergunta. Eu é que tava me perguntando… como alguém pode errar tanto.
— O que ele fez?
— Não tem nada a ver com ele! — Uma lágrima traiçoeira escorreu quando ela virou o rosto para encará-lo novamente, mas logo foi capturada pelo nó de um dedo. — Tem a ver com nós!
Quando eu penso em alguém, eu só penso em você
Estar sozinha com Kakashi era ser arremessada num mar de lembranças tão sedutoras quanto perigosas. Era difícil não se entregar aos monólogos que ela tantas vezes construiu, procurando dar algum sentido para o jeito como tudo acabou. Aquela dor de cabeça maldita não ajudava, as poucas horas de sono daquela noite não ajudavam e a ideia absurda de ter pedido aquele milkshake também não. Por que lembrar de algo tão deles num momento como aquele? Ela esperava o quê, que eles se divertissem com as velhas memórias?
De repente, guardar tudo isso era pesado demais.
— É tão patético que a gente tenha só parado de se falar. Pelo amor de Deus, Kakashi, aquilo nem foi um término! — Sakura sentia sua garganta arranhando, a voz estridente de alguém que sofre por dizer qualquer coisa ao mesmo tempo que só quer gritar até ficar rouca. — Eu nunca disse acabou, você nunca disse acabou, a gente só jogou a nossa relação de uma vida inteira nesse limbo ridículo!
Ele a olhava tão profundamente agora que ela quase podia antecipar as palavras que diria.
— Eu sinto muito, Sakura, mas eu não tinha condições de falar com você depois que foi embora. Você não sabe… — Ela pôde ver as mãos de Kakashi se fechando em punhos sobre a mesa, mas seu timbre seguia perfeitamente controlado. — Você não sabe o inferno que foi continuar aqui, vivendo a mesma vida de sempre…
— E você acha que recomeçar, completamente sozinha, do outro lado do mundo, foi fácil? Mas eu pensei… eu pensei que nós podíamos...
— Ser amigos? — O asco na voz de Kakashi denunciou que ela havia quebrado alguma coisa nele. — Você queria me ligar como ligava pra Ino, pra contar do dia em que pegou o metrô pro lado errado, e queria que eu desse risada com você? Eu tava sofrendo, caralho!
— Eu também! — Ela vociferou com tamanha dureza que ele jogou o corpo para trás na cadeira, o rosto instantaneamente lívido, como se percebesse por onde aquela conversa estava indo.
Então eles fariam isso? Lavariam toda a roupa suja de cinco anos atrás? Para quê, Sakura se perguntou, voltando a olhar a chuva lá fora. Não mudaria nada. Não mudaria como terminaram, não mudaria o que ela sentia, e provavelmente não mudaria o que ele sentia também, fosse o que fosse.
— Sakura. — Kakashi chamou em um fiapo de voz. — Eu não quero fazer isso. Eu não quis te magoar naquela época e não quero te magoar agora.
— Eu sei. — Suspirou. — Eu também não quero… eu nunca quis, mas acho que não deu muito certo, não é?
Eles apenas se olharam por um longo tempo. Sakura sabia que era verdade, que o havia magoado profundamente com sua decisão. Você me abandonou, era o que aqueles olhos negros diziam, tão cheios de tristeza. E por mais que essa jamais tivesse sido a sua intenção, ela sabia que o fizera.
Kakashi deslizou uma mão sobre a mesa, pegando na sua com firmeza. Ela sempre estranhou o quanto a mão dele era quente, não importava se era o auge do inverno ou do verão. Aquele garoto quieto, que se tornou um homem um pouco menos calado, revelava na palma das mãos o coração caloroso que tinha.
— Eu quero ouvir o que você tem pra me dizer, e também têm coisas que eu quero que você saiba, mas talvez aqui não seja o melhor lugar para isso.
— E você acha que na vinícola vai ser melhor? — Era uma pergunta retórica. Sakura erguia uma sobrancelha, descrente de que ele pudesse achar que essa era uma boa ideia. — No meio de quarenta pessoas hoje, ou de duzentas no domingo?
— Nós ainda temos oito horas até a recepção de hoje.
— E qual é a sua sugestão?
Kakashi inspirou fundo, com um sorriso tão enigmático no rosto que ela não se arriscaria a dar qualquer palpite sobre o que ele estava pensando. O viu levantar de um jeito meio preguiçoso, ajeitando no corpo aquela jaqueta velha de motoqueiro. Ela já era velha mesmo quando eles estavam juntos.
— A chuva já tá passando — Ele falou, olhando distraído para fora. — Vem, eu quero te mostrar um lugar.
Sakura apenas assentiu. Nunca contou com segundas chances na vida, nunca teve a audácia de procurá-lo, mas ali, enquanto pagava sua conta para aquela senhora muito simpática, ela prometeu a si mesma que não desperdiçaria esse momento. Se já estavam naufragando nessa ilha de recordações, então que ele soubesse, que tudo fosse dito em claro e bom som.
Afinal, a situação em que estava não tinha como piorar, certo?
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