parte XIX
Seu baronato, meu sangue real
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Há vinte e um anos antes desta primavera de 1813 que estou narrando, a gravidez concomitante da Rainha com a antiga Baronesa não era, porém, a única coisa em comum entre as duas; seus maridos dividiam a mesma vontade, ter um filho homem.
Sua Majestade já possuía três lindas mulheres feitas quando descobriu que a família real receberia um novo membro. Dessa forma, a pressão para que o Rei fosse abençoado com um herdeiro do sexo masculino lhe privou de boas noites de sono. Com o passar dos meses, em todas as consultas, o médico dizia a mesma coisa: será uma menina. Devido ao tempo de experiência, o formato da barriga e outros testes caseiros, a convicção do especialista era inquestionável. A Rainha, então, manteve o gênero da criança em segredo.
Na casa do Barão, a Baronesa deleitava-se na euforia de conceder ao seu parceiro o tão desejado menino.
— Kunhang — ela sorria. —, esse vai ser o nome dele.
Os burburinhos a respeito do primogênito alheio chegou aos ouvidos da esposa do Rei rapidamente, esta que viu na simultaneidade das gestações a oportunidade de resolver seu problema. Sem um filho, uma das princesas teriam que encarar o legado da família, o que significava, de acordo com a Constituição do reino, passar o controle da Coroa para seu futuro marido. Portanto, numa tentativa de manter o poder nas mãos de sua própria prole, Sua Majestade não hesita em recorrer à Criada do Barão. Assim que o menino nascesse, ele deveria ser embalado numa manta e levado até o palácio. Lá permaneceria, pois a recém-nascida ocuparia seu lugar.
O mesmo médico que examinava a Rainha e realizou o parto dela horas antes, foi designado para auxiliar a Baronesa a dar à luz. Junto dele, estava aquela Criada. Dominada pela fatiga de parir, a mãe do bebê não notou quando seu descendente foi roubado na noite chuvosa em que veio ao mundo. Quando ela acordou, no dia seguinte, era uma garotinha que dormia serena no berço.
— A medicina ainda não consegue ter cem por cento de certeza quando se trata desse tipo de coisa. — O médico explicou ao Barão. — Talvez algum dia teremos, se Deus quiser. Mas até lá, vão poder ter outra chance de serem favorecidos com um menino.
— Minha esposa está doente, ela não terá outra chance.
— Então, sinto muito, Vossa Graça.
Embora satisfeito com a surpresa de ter ganhado um herdeiro homem, o Rei conhecia muito bem a natureza ambiciosa de sua esposa, sabia que algo maior estava escondido por baixo do tapete. Entretanto, optou por não questioná-la sobre o assunto.
— Hendery — Ele segurou o bebê nos braços e a ideia para o nome veio de forma natural até sua mente. —, príncipe Hendery.
A Criada, bem como o médico, recebeu uma boa quantia pelo que havia feito. Na mesma semana, pediu demissão e mudou-se da província para gastar seu dinheiro. Todavia, o destino encarregou-se de fazê-la perder tudo, acabar grávida, pobre e fadada a retornar para onde tudo começou.
Ameaçou a Rainha, teve a audácia de ir ao palácio dizer que levaria o Príncipe de volta para sua mãe verdadeira — tal ameaça que compeliu a monarca a despachar o menino numa viagem pelo mundo com seu tutor, Lorde Featherington, para dificultar um possível contratempo daquela natureza.
O Rei, então, após confirmar sua dúvida, prometeu para a Criada que ele mesmo seria o responsável por fornecer todo o conforto, assim como um título de Duque, à criança, se ela mantivesse o ocorrido em segredo, confinada na mansão que ganharia. Era preferível, para o soberano, continuar mentindo do que entregar o trono para uma linhagem que não fosse a sua.
A consciência de Sua Majestade, no entanto, pesava ao fantasiar com a vida que teria caso escolhesse criar sua verdadeira filha. Desse modo, resolveu aproximar-se da família do Barão, permitir que frequentassem o palácio, que os bebês trocados pudessem, ainda que indiretamente, interagir com suas mães legítimas.
A paz que a amizade entre as duas casas gerou, porém, não durou muito. A Criada não suportou mais olhar para o próprio filho, o doce Dejun, e lembrar-se que toda a riqueza que possuíam era fruto de algo tão condenável. Sua saúde mental debilitou-se aos poucos, foi difícil evitar que a culpa que carregava consigo não respingasse na criação do menino. Não conseguia parar de tagarelar a respeito do herdeiro da família real, sobre o título que ele ostentava ou sobre a primogênita do Barão.
Escreveu cartas e mais cartas, as quais nunca teve coragem de enviar aos destinatários, desculpando-se. E, meses antes da temporada social de 1812, quebrou seu confinamento e visitou a província, batendo na porta de Sua Graça, este que havia perdido sua esposa há alguns anos. Ela contou o que fez, e o Barão pôde, finalmente, compreender porque sua criada tinha se demitido repentinamente, enriquecido em pouco tempo.
Provas para reivindicar seu verdadeiro descendente, no entanto, não existiam, além da palavra de uma mulher mentalmente instável. Os bebês tinham sido registrados formalmente nas famílias erradas, por isso, não seria possível que a justiça fosse feita. Frustrado, o Barão não digeriu bem a infelicidade de ter passado sua vida inteira com uma criança que não era sua. Inconformou-se com o fato de que todo o dinheiro da família seria entregue nas mãos do parente homem mais próximo, já que as moças solteiras não podiam, por lei, administrar suas heranças. Era cruel saber que o menino que tanto desejou esteve tão perto, mas nunca seria seu.
— Não temos mais dinheiro. — Foi tudo o que disse à filha, depois de retornar de uma noite longa pelos piores bordéis e casas de jogos do reino.
Trancou-se em seus aposentos e de lá não saiu mais — nem mesmo quando a garota assumiu o título de sua “mãe”, a dívida exacerbada ou debutou na temporada social do mesmo ano, com uma reputação manchada e dote exíguo.
É após essa desventura, leitor, que retornamos para o domingo em que paramos no capítulo anterior, no momento em que Hendery percebeu que tudo o que viveu em sua vida até aquela noite poderia ter sido diferente.
Deixou o quarto da Senhora Xiao, a Criada responsável por embalá-lo naquela manta, junto com sua garota, a Baronesa, esta que nasceu, na verdade, com sangue real. Silenciosos, ainda atônitos com o que tinham descoberto, mal trocaram alguma palavra.
Foi ali, porém, que encontraram Dejun — o rapaz que não possuíam vínculo algum de parentesco com a realeza —, parado no final do corredor com uma garrafa de uísque em mãos.
— Você… — Hendery resmungou, entre dentes. Sua cabeça latejava, o peito ardia. Logo, entregou-se às lágrimas. — Você sabia a verdade esse tempo todo! — Esbravejou.
O Duque suspirou. Então, era isso, havia chegado à ocasião que tanto enjeitou.
— Eu…
— Calado! — O Príncipe o cortou, exasperado. — Eu deveria… — Apertou os olhos, cerrando os punhos. Chegou a fazer menção de correr na direção do outro e atacá-lo, mas a Baronesa o conteve. — matá-lo!
— Hendery, eu…
— Tudo que eu vivi — a voz de Sua Alteza Real falhava, dominada por aquele sentimento agonizante da revolta. —, tudo o que tive que enfrentar naquela merda de palácio com aquela mulher detestável, tudo… — Levou alguns segundos para ter a bravura de completar: — Tudo poderia ter sido diferente.
— Eu sei — as lágrimas também umedeciam o rosto de Dejun. — e sinto muito por isso.
— Sente muito?! — Repetiu, irritadiço. — Sente muito?! — Não conseguiu desenvolver nem um pouquinho de empatia. — Seu bastardo, filho de uma… Solte-me! Quero acertar a cara dele! — Até tentou libertar-se dos braços da Baronesa, porém terminou por agarrar-se nela, num abraço intenso, ao passo que chorava feito criança.
Ela acariciou sua cabeça, murmurou um “Está tudo bem, querido”.
— Deixe-me conversar com ele a sós — pediu. —, espere por mim em seu quarto. Não vou demorar aqui, prometo.
Se tivesse que ser honesto, o Duque preferiria ter enfrentado Hendery e sua cólera justificável, porque a frieza no olhar da moça o afetou mais do que o soco que lhe fora prometido.
— Senhorita — respirou fundo, apertando a garrafa de uísque contra o peito. —, eu… nem sei como me justificar. Só posso pedir desculpas.
Ela pendeu a cabeça para o lado, se aproximou.
— Sabe, Vossa Graça — começou, neutra. —, eu me questionei algumas vezes sobre o senhor, não tive coragem de rejeitá-lo naquele dia na Confeitaria. Mas, mesmo se o fizesse, não teria mudado muita coisa, não é? O senhor nunca foi um “mero solteiro em busca da donzela de coração bom”, como disse. Se aproximou de mim por causa de sua mãe, e só por ela. — Sorriu, enraivecida. — E foi capaz de unir-se àqueles homens para conspirar contra a Coroa.
Dejun a encarou, estarrecido.
— O quê?
— Nós recebemos a carta que o Marquês enviou hoje cedo, sabemos de tudo.
Ele expeliu o ar dos pulmões, a situação estava pior do que imaginava.
— Eu não tinha outra opção. — Disse. — Vocês não são as únicas vítimas aqui. Eu tive que carregar comigo a culpa de algo que eu não fiz, tive que prometer consertar algo que não quebrei. Nunca pude viver a minha vida como queria, me apaixonar por quem quisesse, porque estava preso ao destino de ter que cuidar da Senhorita, do Hendery.
“E eu juro que tentei honrá-los. Quando ele retornou, fui até o palácio recebê-lo, cumprir minha promessa, mas tudo que recebi em troca foi sua grosseria. Para piorar, ainda teria que enfrentá-lo numa disputa por ti. Sempre senti-me nas sombras do título que ele carrega. Desde pequeno, não houve um dia sequer que eu não ouvisse minha mãe falando dele. Aí, aqueles homens se aproximaram...
“Alguns nobres e parte do Parlamento já queriam se livrar da monarquia há um tempo, tudo só se intensificou depois que o Rei faleceu, e a volta do Príncipe tornou-se uma ameaça. Eu acabei me juntando a eles, a raiva em meu coração não me fez pensar duas vezes. E, por um momento apenas, até respingou em ti.”
“Não fui capaz de prejudicá-la, porém. A Senhorita nunca me faltou com o respeito e havia sua dívida que acabou por me comover. Cheguei a acreditar que pudéssemos ser um casal.”, sorriu. “Mas sei que o ama. Muito.”
“Não espero que me perdoe, não sou tolo o suficiente para isso. Só quero que...”, desviou o olhar, erguendo o queixo para que as lágrimas ficassem retidas nos cantos dos olhos. “Ah, quem quero enganar? A Senhorita nunca vai me entender, pensa que eu sou o vilão desta história.”
Ao contrário do que ele imaginava, ela rebateu:
— Eu entendo.
Dejun a encarou.
— O meu pai não fala comigo há um ano. — A Baronesa prosseguiu. — Num dia, ele chegou em casa bêbado, me disse que tínhamos perdido tudo e se trancou no quarto, sem mais explicações. Eu fiquei completamente desamparada, não sabia nem se teria o que comer pelos próximos dias. Aí, assumi o título da minha mãe, a dívida e tive que encarar uma sociedade que espalhava fofocas a meu respeito o tempo todo. E, apesar disso tudo — comprimiu os lábios, tentando driblar o choro. —, eu ainda o amo.
“Todos os dias, mesmo sem ao menos saber se ele ainda está vivo dentro daquele quarto, eu fico rente à porta e conto pra ele do meu dia. Quando fui ao soirée do Visconde, eu disse que teria minha primeira valsa, que estava usando o vestido da minha mãe; quando Hendery se declarou pra mim, eu desabafei naquele corredor, sozinha, procurando, desesperadamente, acreditar que ele estava me ouvindo.”
“Ele é meu pai. Por mais que realmente não tenha nenhum vínculo comigo ou vontade de olhar na minha cara, ele é meu pai. Porque eu só consigo me lembrar dos bons momentos, das palavras calorosas, ele é meu pai.”, ela pegou a garrafa de uísque das mãos do Duque, abandonou-a no aparador ao lado. “Então, eu sei o quão cansativo é amar alguém que não retribui seus sentimentos, Vossa Graça. O senhor não é o vilão. Eu entendo as decisões que tomou, todas elas. Porém, não são justificativas.”
— É, eu sei.
— Não vai ser fácil ganhar meu perdão, ou do Hendery — antes que Dejun pudesse repetir mais um “Eu sei”, ela o surpreendeu mais uma vez. —, mas vou te dar a chance de tentar.
— O que quer dizer com isso?
— Na carta que o Marquês enviou, ele disse que o aguardaria em uma reunião para que vocês pudessem encontrar uma solução, porque a Rainha marcou meu casamento com o Príncipe e a coroação dele é no dia seguinte. Mandamos Chittaphon até o local para reunir informações. — Resumiu. — Prepare seus cavalos, a estrada está inutilizável, mas sei que há uma rota pela floresta. Assim que Ten retornar, vamos voltar para a cidade e o senhor vai agir conosco para impedir seja o que for que seus amiguinhos estejam tramando — estreitou os olhos, a voz dois tons mais profunda. —, entendeu bem?
Dejun balançou a cabeça, positivo. Se aquela era uma forma de se redimir, não desperdiçaria.
— Vou buscar os cavalos.
[...]
— Ficar chorando assim não vai mudar muita coisa.
Hendery observou a Baronesa adentrar seus aposentos. Por míseros segundos, até cessou as lágrimas, só para logo depois voltar a chorar como um bebê novamente.
— Ei, está tudo bem. — Ela sentou ao lado dele, na cama. Acariciou o canto do rosto masculino. — Eu estou aqui, okay?
Com os polegares, secou a umidade. Contornou a ponta do nariz, o fazendo sorrir brevemente. Sorriu junto.
— Como consegue? — Perguntou ele.
— O quê?
— Como consegue ser tão forte? Não te vi derramando uma lágrima sequer.
A moça abaixou o olhar, encarou as próprias coxas. Os lábios abriram e fecharam diversas vezes, mas nenhuma palavra saía. O peito doeu, o ar chegou a faltar.
— Sabe que pode se abrir comigo, não é? — A voz de Hendery soou mansa, acolhedora. — Antes de ser qualquer coisa, sou seu melhor amigo. — Deitou a cabeça no ombro dela. — Eu estou aqui, okay?
E só com aquelas quatro palavrinhas repetidas, ela desabou.
Prendeu o rapaz num abraço, escondendo a face em sua clavícula. Soluçava, alto. As mãos tremiam, enroscadas no tecido da camisa de dormir dele. Um afago lento lhe foi concedido.
Quando conseguiu se recompor, continuou assim, recostada no torso dele, com os braços alheios a envolvendo.
— Eu sou tudo o que a minha mãe era. — A Baronesa confessou, baixinho. — Ela me influenciou em muitos sentidos. Eu cresci ouvindo dela que nasci debaixo de uma cerejeira, por isso essa flor sempre me encantou tanto. Agora, temo que ela tenha mentido para mim, questiono-me se sabia da verdade.
“As pessoas me chamam pelo título dela. Foi por causa dela que comecei a ler Shakespeare, que gosto de certas coisas. Quando a perdi, uma parte de mim foi junto. E, agora que sei que ela não é quem achei que fosse, parece que a outra se foi também.”, ergueu o corpo, encarou Hendery. “Se sou o que ela foi, então quem sou, agora?”
“Será que, na verdade, sempre fui a Rainha? Ou sou apenas uma cópia consequente de uma mentira?”
Ele respirou fundo. Segurou o rosto dela entre as mãos e disse:
— Você é quem quiser ser.
“Do mesmo jeito que eu posso escolher ser Hendery, o Príncipe, ou Kunhang, o Barão, ou até mesmo o zé ninguém que perambulou sem rumo por quinze anos só com a roupa do corpo e a companhia de um cara de sobrenome comprido demais e passado extravagante”, ela riu. “você pode ser a Baronesa, a Princesa… ou o amor da minha vida.”
“Não é a sua linhagem que vai decidir seu futuro. É você quem conduz as rédeas da sua vida.”
Eles trocaram alguns olhares, um confortando o outro. Próximos daquela forma, a realidade chegou a parecer menos confusa.
Como era possível que se encontrasse tão à vontade com alguém feito junto dele? A mente humana, definitivamente, funciona de uma maneira muito peculiar pois foi ali, naquele instante, que ela compreendeu com todas as letras o que seu amigo quis dizer ao afirmar: você é minha casa.
Casa, caro leitor, é onde podemos ser nós mesmos, para onde retornamos após um dia cansativo e não somos questionados, apenas sentidos; onde gastamos nossas horas, nossa fortuna decorando, colocando tudo num certo lugar; onde estimamos, choramos, morremos; brigamos por coisas fúteis e amamos porque tudo vale a pena no final; onde memórias são criadas e o conforto reside. É um lugar, uma pessoa, um sentimento.
Hendery é casa. É feito do melhor material, adornado com os mais bonitos enfeites. Está com a porta aberta, as janelas escancaradas, as luzes acesas. Mas só a Baronesa possui as chaves.
E ela quer ser egoísta ao ponto de não emprestar para ninguém.
— Nós vamos nos casar? — Ele questionou em algum momento.
— Acho que sim. Sua mãe... — estalou a língua, se corrigindo. — Minha mãe marcou o casamento.
— E nós vamos?
— Temos que ir, fingir que está tudo normal, que não sabemos de nada.
— Ah… — Ele murmurou, compreensivo.
— Vamos partir assim que Ten retornar, Dejun vai cooperar conosco.
— Você confia nele?
— Confio.
— Também confio, então.
— Posso dormir aqui?
— Na minha cama?
— É.
— Mas “dormir” em qual sentido?
Ela arregalou os olhos, deu um empurrãozinho nele.
— Hendery!
— O quê?! Eu só quero estar preparado, se acontecer de novo.
— Tsc, esquece. Vou ficar acordada esperando Ten voltar.
Oh, que cruel. Realmente, é muito cruel. A Baronesa aguardou por horas a chegada de Chittaphon, Hendery também não conseguiu pregar o olho. Se soubessem do desfecho de antemão… Não, nada ia mudar, na verdade.
De qualquer forma, não teriam uma boa noite de sono, porque, infelizmente, Ten não retornou.
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