História O Segundo Anjo (Crônicas de Antuerpéria) - Parte 2 Chuva de sangue e lágrimas

Parte 2 Chuva de sangue e lágrimas

Apesar do ataque do lobo às estrebarias naquela manhã, a preocupação que guardavam por Jang estar ferido, a aparicão do rapaz alado e de um misterioso mago recém chegado, todos naquele lugarejo tentavam seguir com a rotina comum.

Era de se imaginar que chovesse, as nuvens rapidamente se aglomeraram após o claro alvorecer.

Os habitantes de Ceres nunca tinham visto chuva como aquela.

Tingida com sangue, secretamente batizada com lágrimas de anjo.

Não durou mais do que dez minutos, mas deixou os aldeões mais que intrigados. Como se já não fossem suficientes os acontecimentos estranhos daquele dia.

Quando seus pés tornaram a tocar o solo a chuva havia estiado.

Encarou as próprias mãos manchadas de sangue, os cortes fechando lentamente.

Shou era oficialmente um anjo decaído, mas não se sentia muito diferente, nem tão desolado.

Ainda tinha suas asas arraigadas em suas costas, mas estas não preservavam mais a luminescência e candice de outrora.

Não havia mais um Deus para servir, embora ainda conservasse os mesmo princípios que tinha cultivado no Plano Etéreo.

Não tinha intenção alguma de se deixar levar pelo mau, tão pouco se juntar as legiões do inferno.

Ergueu seu olhar a alguns metros adiante avistou a árvore desnuda e algo mais a frente a pequena casa do velho Zinn.

Dentro dela deveria reencontrar Etzel e Jang.

Engoliu tendo pouca saliva na boca, seus pés se recusavam a se moverem.

Estaria diferente aos olhos do mago e do matador de lobos.

Seria aceito?

Não tinha certeza.

Depois, mirou-se por um breve momento no céu onde agora vagavam poucas nuvens.

Elein e Kyu já haveriam partido de Antuerpéria?

Não conseguia esquecer a expressão no rosto de Kyu, uma mistura mortificada de desaponto e consternação.

Antes de pensar em entrar na casinha do velho Zinn, fez uso de suas asas mais uma vez.

Sobrevoou o lugarejo de Ceres, tinha que voltar a oiteira.

Havia algo que precisava resgatar.

**********

Comiam na pequena cozinha um bocado de carneiro assado e o som da chuva repentina chamou a atenção de ambos.

Quando ouviu a voz do velho Zinn dizendo que estava chovendo sangue, considerou que talvez ele tivesse perdido a razão.

Não, Etzel voltou atrás em seu pensar e disse a si mesmo que talvez ele é quem estivesse fora-de-si.

Tinha neutralizado a febre, em vez de causar a morte de Jang.

A imagem de Shou carregando Jang em seus braços com distinto carinho era ao mesmo tempo o que mais o enchia de ciúmes e fazia Etzel ponderar a importância que o rapaz ruivo tinha para o anjo.

E assim que espiou pela janela redonda a chuva manchada daquele carmesim, saiu em disparada pelos fundos da casa, colocou-se sobre a chuva e ficou observando as gotículas cairem de forma contínua em sua mão.

Algo lhe dizia, gritava na verdade, que esse fenômeno anormal estava ligado diretamente a Shou e os dois arcanjos que tinham se reunido sobre o paredão de nuvens.

Mas, não viu ou teve algum sinal de Shou.

Tão logo retornou ao interior da casa, Zinn alisou os fiapos de barba branca em seu queixo, uma expressão meditativa pairava em seus olhos pequenos e somente retrucou rouco: "Ele acordou."

Até Zinn esperava que Jang não tornasse abrir seus olhos... Nunca mais.

Etzel praguejou baixinho e passou para o cômodo seguinte.

*******

Jang sentia-se esgotado.

Com custo conseguiu sentar-se no futon, apoiando suas costas na parede feita de uma áspera madeira.

Tomara um pouco d'água, mas ainda tinha muita sede.

Seu braço ferido, pesava mais que o normal. Sua própria existência nunca parecera tão insustentável e suas costas comichavam, sentia como se dezenas agulhas muito finas penetrassem uma a uma em sua tez.

Crispou ligeiramente o rosto assim que seus olhos cruzaram com o olhar do estranho com tapa-olho adentrando no pequeno cômodo, na bagunça habitual de Zinn.

Soube de cara que era um mago, não somente pelas vestes.

Todo mago tinha uma austeridade visível, um caráter arrogante que saltava aos olhos até dos menos observadores.

__Quem é você?

A determinação incutida na voz de Jang, desafiador ainda que não estivesse em condições de desafiar ninguém.

Antes de responder, Etzel leu aquele par de olhos verdes que o desafiava e tinha que admitir, era uma alma bem interessante de desbravar.

Ofereceu um meio sorrizo sagaz antes de se dispor a responder:

__Sou Etzel... Ajudei Zinn a baixar sua febre, mas foi Shou quem me pediu para vir ajudar.

Jang não sabia bem o que pensar, o nome de Shou no meio da sentença criava um emaranhado de confusões em suas emoções deturpadas pela dor.

__Embora...__ Etzel continuou acintoso se agachando perto do futon, um de seus joelhos no chão.__ Não entendo porque Shou fez tanta questão de preservar sua vida... Se lembro bem, sua espada tinha toda intenção de atravessa-lo.

Era isso, tinha sido empedido quando tencionava atacar Shou. Tentou se recordar da sensação, de algo apertando seu pescoço, puxando com violência seu corpo como se fosse um cavalo selvagem sendo laçado.

__Foi você...__ Jang proferiu friamente, raiva incauta no olhar.__ Onde está, Shou?

__Por agora não sei.__ Etzel deu os ombros com descaso.__ Mas, se alguém tentasse me matar com uma espada, eu não ia querer olhar na cara desse alguém novamente.

Ao encarar ainda mais de perto aqueles olhos verdes, o mago desvendou verdades que o fizeram se arrepender por não ter matado Jang quando tivera chance.

Não encontrou apenas o desprezo e a raiva, o desejo insensato de matar ou sede de vingança.

Havia um gostar ardente, um desejo amorável difícil de corromper.

Além de outras verdades secretas, descobriu que Jang também guardava em si uma doce loucura por Shou.