História O Segundo Anjo (Crônicas de Antuerpéria) - Divagações sobre poção do amor

Divagações sobre poção do amor

Subiu na árvore e tomou um fruto em mãos, deu uma mordida sentindo o sabor agridoce da polpa suculenta, engolindo sem se preocupar as pequenas sementes.

Do alto daquela árvore, Shou observou Etzel atender duas moças em seu portão.

Era algo comum, já estava morando com ele há quatro dias. As pessoas, homens e mulheres, criaturas míticas e híbridas vinham sempre ao encontro do que poderia ser o amor ideal que elas tantos desejavam.

A promessa do amor na poção contida em uma pequena garrafa.

Durante o dia que passavam juntos, Shou buscava nos livros de Etzel um meio de voltar para o Plano Etéreo, enquanto no mesmo cômodo Etzel fazia suas poções, conjurava seus feitiços para selar a promessa de amor em seus frascos encomendados por cada criatura de Anturpéria que chegava em seu portão.

Shou estava sentado no peitoral de uma janela.

__Etzel...__ Shou se pronunciou sem tirar os olhos do livro.__ Por que as pessoas compram poções do amor? O correto é descobrir o verdadeiro amor naturalmente, ninguém nasceu para ficar só.

__Ah, seu anjo bobo... O amor verdadeiro em Antuerpéria é algo tão raro quanto alguém como você.

__É raro porque as criaturas são tolas... Preferem o caminho mais fácil.

__Te irrita que eu dê a eles exatamente o que querem para o caminho mais fácil?

__Não... Você usaria essa poção tola em alguém que você gostasse?

Etzel parou o que estava fazendo e olhou fixo para Shou que se sentiu pressionado sob esse olhar e tirou os olhos do livro a mirar-se timidamente em Etzel.

__Evidente que não... O risco de você perder para sempre um ser enfeitiçado com poção do amor é grande.__ Etzel tinha um falar demasiado sério.__ Se eu amasse de verdade esse ser, o protegeria do que é mal com todas as minhas forças... Mesmo que eu não recebesse o amor na mesma moeda.

__Essas seres que compram sua poção sabem desse risco?

__Está escrito no frasco que a poção não substitui o verdadeiro amor e que é para pensar duas vezes antes de usar... Se estes seres amassem de verdade seus objetos de afeição, eles não usariam a poção, simples assim... É o livre arbítrio, Shou.

__Tem razão... O que um anjo sabe sobre verdadeiro amor? Eu nem deveria pensar em algo assim, não é meu legado.

Etzel deixou na mesa os tubos de ensaio encaixados nos suportes e foi até Shou sentado no peitoral da janela com o livro aberto sobre as pernas.

__Você não acha que é legado triste não poder experimentar o verdadeiro amor?... Hein, Shou?

__Não... Triste é ser desviado do que lhe foi destinado por Deus.

__Deus?...__ Etzel revirou o olhar, percebendo que estava enciumado.__ De quem estamos falando agora?

__Ele é meu criador... Criador de tudo que é vivo na Terra, o mundo que eu ajudava a proteger.

__Não é o criador de Finis Tempore... Com toda certeza.__ Etzel resmungou algo desrespeitoso.__ Deus não pode te achar nesse lugar, se não ele já teria vindo te buscar... Se você se importa com alguém, você vai até o fim do mundo por esse alguém... É o que eu acho.

__Não foi culpa de Deus se vim parar aqui.__ Shou rebateu, mas sem alterar seu tom de voz.

__Então foi culpa de quem?

__Eu ouvi o choro de uma criança...__ Shou fechou o livro de repente.__ Ela parecia muito assustada... E me perguntei porque ninguém mais ouvia e o que uma criança faria no Plano Etéreo... Eu segui aquele choro, o pedido de ajuda que havia nele e me perdi... Minha essência está presa nesse corpo e eu tenho medo de ser o único anjo em Antuerpéria.

__Ainda acha que seu corpo é uma espécie de maldição? Não existe acaso, você veio parar aqui por alguma razão... Lembra o que eu disse na noite em que apareceu na minha vida? Eu vou te proteger.

Shou tornou-se cabisbaixo, seu rosto se franziu de leve.

__Você não compreende... Eu sou um dos sete Anjos das Virtudes e a virtude que eu protegia e guardava não deve existir mais na Terra. Existe um desequilíbrio no plano de Deus e é por minha culpa!

Etzel pegou o livro antes sobre as pernas de Shou e jogou no chão atrás de si, como se fosse uma bolinha amassada de papel. Puxou Shou pela cintura e ele desceu do parapeito, aturdido pelo gesto brusco, o som do livro de capa dura caindo desconjuntado no chão e acima de tudo, as mãos de Etzel segurando em sua cintura.

__Chega, Shou! Você não abandonou seu legado, apenas se perdeu... E fui eu quem te encontrou...!

E a voz de Etzel perdeu um pouco da firmeza e rispidez, tornou-se mais baixa e afetuosa. A verdade é que quando falava mais mansamente com Shou era quando ele o ouvia com a devida atenção... A malícia e a raiva remetiam o anjo a crises de confusão:

__ Isso não tem nenhum significado para você, Shou? O fato de um estar na vida do outro.

Pensou antes de responder, espalmando suas mãos contra o peito de Etzel.

O olhos azuis de Shou piscavam parecendo distantes, indecifráveis.

__ Etzel... Uma anjo não pode abandonar seu legado, isso seria a traição... O que eu faria se me tornasse um anjo caído? Deus me abandonaria... Eu seria banido.

Embora o olhar do anjo fosse uma permanente incógnita para Etzel, não tinha dificuldade de perceber o prévio sofrimento esculpido nas maçãs de seu rosto.

__Qual o problema afinal?__ Etzel cochichou e suas mãos foram da cintura de Shou para as laterais macias de seu rosto agora tristonho.__ Você se perdeu, mas eu te encontrei... Se alguém for realmente louco de te abandonar, saiba que nunca vou te deixar sozinho... Sendo um anjo caído ou não.

__Você não deve ser responsável por mim.

Etzel teve vontade de rir, mas apenas sorriu com o som do próprio riso batendo secretamente em seus dentes.

Primeiro porque Shou proferiu tão seriamente aquelas palavras, com certa dose de coragem e determinação em sua voz.

Mas, como era ingênuo esse rapaz alado...

Etzel percebera naquele dia que alguém tinha enganado o anjo quando ele estava no plano Etéreo, que esse alguém também devia estar em Antuerpéria e provavelmente a procura de Shou.

Todavia, não tinha a mais remota ideia de quem poderia ser.

Outra coisa que Etzel ignorava era o significado implícito na sentença:

"Você não deve ser responsável por mim."

Shou queria que ele soubesse que em algum momento teria que partir...

Quisesse Etzel, ou não.