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História O teste 3 - Escondendo as provas...


Escrita por: Lehh-Ama-AlanWalker

Capítulo 3 - Escondendo as provas...


Suas palavras atingem meu peito e me deixam sem fôlego. O fogo crepita. Em algum lugar do prédio, ouço uma batida de porta. A presidente Tiffany levanta-se quieta como a morte, observando-me.

 — A senhora não pode estar falando sério — murmuro. Embora eu saiba que está. — Não posso... 

— Pode sim. — Suas palavras são cortantes. Seguras. — Embora o processo do Teste seja mantido longe do público, houve rumores suficientes sobre os testes que cada candidato tem de enfrentar. Para um candidato ser aprovado, tem de ser inteligente, pensar depressa e ser capaz de provar que pode fazer o que for necessário para sobreviver.

 De repente, não estou aqui. Estou nas planícies não revitalizadas durante o quarto teste. Taehyung sussurra meu nome. À luz tênue, posso ver o sangue que jorra do ferimento em seu abdômen. kwangmin  está em pé à minha frente. Seus olhos verdes se estreitam atrás da arma que ele agora aponta para mim. Endireita os ombros e mira. A arma na minha mão dá um coice. kwangmin  cambaleia, enquanto a bala lhe penetra do lado. Quando ele corre, ignoro a náusea que está se formando dentro de mim, e atiro mais uma vez. 

É. Quando atacada, farei o que for preciso para sobreviver, mas isto...

 — Não posso. — Minhas pernas tremem, mas minha voz está firme, forte, mais controlada do que me sinto. 

A presidente Tiffany  atravessa a sala sem pressa, e senta-se na cadeira bem junto ao fogo. 

— Vou adiar a votação, mas isso apenas adiará o inevitável. Se você estiver certa sobre a lealdade de Symon, quanto tempo acha que vai levar até que ele incite os rebeldes a partir para o ataque? O que acontecerá então? Você acha que Symon deixará que qualquer um dos rebeldes ou dos cidadãos que os ajudaram viva? O que acontecerá com o país se eu me for? Quem você acha que os membros da Câmara de Debates apontarão para ocupar o meu lugar? 

Doutor Barnes. Se não for ele, alguém que ele apoie. O Teste continuará. 

— Jennie, eu preferiria não envolver você nisto, mas às vezes um líder tem de confiar nos recursos disponíveis. Minha equipe foi infiltrada uma vez, pelo que sabemos. Acredito não haver dúvida de que onde existe um espião há outros, o que significa que não se pode confiar nas pessoas deste prédio. Nem nos rebeldes.

 — Os oficiais da segurança... 

— Eles se reportam a um dos nomes desta lista. E deve haver outros que o doutor Barnes sabe que pegarão em armas em seu apoio. Caso contrário, ele não teria embarcado nesse tipo de ação. — Ela se vira e contempla o fogo, como se procurasse respostas nas chamas. Suspira. — Eu mesma tentaria executar o plano, mas seria impossível que minhas ações passassem despercebidas, e já não tenho segurança em quem confiar. Você, Jennie, é a única pessoa da qual posso ter certeza, razão pela qual sou forçada a te pedir que cumpra a promessa que fez como futura líder e assuma essa tarefa. Enquanto o doutor Barnes continuar no controle da universidade, os rebeldes não desistirão de seu esquema. As emoções estão exaltadas. Os rebeldes estão insistindo numa mudança. Já conversei com vários deles. Vejo uma centelha de arrependimento no rosto da presidente, porém, ela se vai com a mesma rapidez com que veio. Então, tudo o que vejo é sua decisão.

 — Me contaram que cidadãos na periferia de Tosu foram armados pela facção rebelde de Moonbyul , apesar do meu expresso desejo de que isso não acontecesse. Symon me assegurou que essas alegações são falsas, e que minhas ordens estão sendo obedecidas, mas tudo o que ele tem dito é suspeito. Temos de deduzir que existem cidadãos que sabem da rebelião e estão prontos para apoiá-la, pegando em armas. Quando os rebeldes atacarem, esses cidadãos poderão ir às ruas. As forças do doutor Barnes responderão. Pessoas ficarão apavoradas. Alguns lutarão. Haverá mais mortes.

 Sehun  me contou que os rebeldes estavam armando cidadãos. A presidente tem razão em ter medo do que poderia acontecer com armas nas mãos de tantos. O medo. O desespero de sobreviver a todo custo, mas isso poderia acontecer de qualquer modo. 

Afastando as imagens, digo: 

— Matar o doutor Barnes e seus administradores principais poderia fazer com que a senhora ganhasse o controle do Teste, mas as pessoas entrarão em pânico ao saber que muitos oficiais do governo morreram. Tem de haver outra maneira. — Na solução de provas geométricas, muitas vezes a lógica que leva à solução correta pode vir de mais de uma maneira. Com certeza, deve haver um caminho diferente que a gente possa percorrer agora.

 — Quanto mais conversamos, mais eu entendo por que o doutor Barnes a escolheu. 

Apesar da minha proximidade com o fogo, o elogio da presidente me faz estremecer.

 — Você está certa — ela reconhece. — A morte de vários oficiais da Comunidade Unida causará preocupação. Isso, porém, é muito mais fácil de lidar do que a alternativa. Os oficias da segurança serão mobilizados em maior número. Depois de uma semana, posso dizer que a pessoa responsável pelos ataques foi morta quando oficiais tentaram prendê-la. Os cronogramas dos funcionários e a distribuição dos cargos de poder voltarão ao normal. As pessoas vão aceitar que a crise terminou porque elas querem acreditar que o mundo está seguro. 

Tento imaginar como me sentiria se fosse uma cidadã de Tosu City ao ouvir a presidente dizer a um assassino que a eliminação de altos oficiais do governo já não era uma ameaça. Será que eu acreditaria que o perigo havia passado e que a vida voltaria ao normal?

 Sim. Não por ter visto provas, mas porque ia querer acreditar. O plano da presidente poderia funcionar, mas só se alguém realizasse a etapa que vinha antes.

 — Matar é errado. — Acho curioso como me pareço composta, porque por dentro minha cabeça está gritando. 

— Pense em como o mundo seria diferente, se alguém tivesse eliminado a chanceler Freidrich, antes que ela mandasse assassinar o primeiro-ministro Chae.

 O assassinato do pacificador primeiro-ministro Chae estilhaçou a Aliança Asiática e deflagrou o Primeiro Estágio da Guerra. 

— Os líderes são frequentemente forçados a tomar decisões que consideram detestáveis, pelo bem das pessoas a quem servem. A última coisa que quero é te pedir para ajudar na eliminação dos líderes que defendem a missão atual da universidade. Não faço esse pedido levianamente. No entanto, é a melhor chance que temos de evitar um caminho que, com certeza, levará a um destino muito pior. 

A presidente Tiffany  se levanta e vem até mim. Tira a pasta da minha mão, vai até a mesa e pega uma caneta. Enquanto abre a pasta e escreve alguma coisa em uma de suas páginas, engulo em seco, fecho os olhos e desejo que estivesse de volta a Cinco Lagos; que nunca tivesse vindo para Tosu City, ou descoberto os segredos por trás do Teste. A guerra ainda estaria à espreita, mas eu não teria consciência disso. A presidente não teria me pedido para trair algo em que sempre tinha acreditado, para consertar o que ela mesma não consegue. Essa não é minha função. O fato de ter vindo aqui alertá-la do risco deveria transferir a responsabilidade de manter a mim, meu irmão, Taehyung  e meus amigos a salvo, para alguém que oficialmente foi investida de liderança. 

— Se eu soubesse que tinha alguma chance de arquitetar esse plano com a minha equipe e que desse certo, faria isso. Talvez eu tenha de tentar como último recurso, caso você não assuma essa tarefa. — Ela devolve a pasta às minhas mãos. — Ao longo da história, os líderes têm usado meios objetivos para eliminar ameaças, que, caso não fossem contidas, poderiam causar um dano muito maior. Quando a Comunidade Unida foi fundada, nossos líderes juraram que faríamos o que fosse necessário para promover a missão de revitalizar e pacificar o país. Agora, essa missão está ameaçada. Estou pedindo a você, Jennie, que ajude a manter nosso país e seu propósito vivos. 

O discurso agita meu sangue. Desde pequena, meu objetivo era seguir os passos do meu pai: ser escolhida para o Teste, ir para a universidade, ajudar meu país, mas isto...

 — Não me responda agora. — Ela se aproxima e põe a mão no meu ombro. — Entendo a dificuldade da escolha que apresentei a você. Posso segurar os rebeldes por uma semana, pelo menos. Duas, se tiver sorte.

 Tão pouco tempo. 

— Dentro desta pasta está a lista daqueles que precisam ser removidos para que o Teste acabe, e informações sobre cada um deles. Além disso, há um quarto no quinto andar que poderia ser útil para esta tarefa. Escrevi o código de entrada na primeira página. — A presidente aperta meu ombro e então se afasta. — Não espero que isso seja fácil. Você pode morrer na tentativa. Mesmo que isso não aconteça, há uma grande possibilidade de que você fracasse — ainda que eu tenha certeza de que não pediria a você isso se achasse que uma dessas alternativas fosse uma conclusão inevitável. Se ao final desta semana decidir não ir em frente com essa incumbência, peço que envie uma mensagem dizendo que o projeto é insustentável.

 Uma semana para decidir. 

— Não importa qual seja sua escolha, peço que tome cuidado. Symon insinuou que existem membros da rebelião entre os estudantes da universidade. Eles poderiam expor você sem perceber o que fizeram. — Ela caminha em direção à porta. Com a mão na maçaneta, olha pra mim: — Não confie em ninguém, Jennie. Não se trata apenas da sua vida, mas também da vida de muitos outros que dependem disso.

 Quando ela sai a passos largos, ouço-a dizer: 

— Acho que dá pra dizer que a jovem agora aprendeu a lição. Estarei no meu gabinete se mais alguém pedir uma audiência.

 A porta permanece aberta, enquanto seus passos vão se afastando. Sei que é hora de me retirar, mas estou chocada demais com o que ouvi; arrasada demais com a tarefa que me pediu para realizar. Quero acreditar que imaginei o que acabou de acontecer, mas a pasta na minha mão contraria essa vontade. Minhas mãos estão geladas, quando abro a pasta e dou uma olhada na primeira página que contém o código a que a presidente se referiu, bem como os onze nomes. Agora são doze. Escrito no final, na caligrafia forte da presidente está o nome Symon Dean. Abaixo do nome há uma série de sete números e as palavras: 

— Conto com você. 

Fecho a pasta e a coloco em cima da sacola. Depois, arrumo as pilhas de papel do meu trabalho anterior sobre a mesa. No último minuto, pego as três páginas que contêm informações sobre os estudantes da universidade vindos da Colônia Cinco Lagos. Por quê? Não sei. Talvez só porque não posso suportar a ideia de que essa informação esteja nas mãos de alguém que não conhece ou não se preocupa com eles. Ou talvez eu precise de algo que me lembre de onde vim e quem sou eu. Meus pais me educaram para acreditar nos meus conterrâneos e na Comunidade Unida para consertar as coisas. Fico imaginando o que diriam se soubessem que me disseram que, para consertar o país pelo qual eles deram duro, eu agora tenho de, deliberadamente, tirar vidas.

 O mundo gira ao meu redor. A náusea agita-se no meu estômago e queima minha garganta. Enfio a pasta na sacola e tropeço numa ondulação do tapete ao me apressar para a porta. A presidente me deu uma semana para decidir o que vou fazer, mas não vejo como fazer essa escolha. Permitir que o Teste continue, ou fazer o que não conseguia quando fui testada, e matar. Não sou como kwangmin ,Jungkook ou D.O. Não posso cometer assassinato para obter vantagem. No entanto, posso eliminar vidas para acabar salvando muitas mais?

 Não sei.

 E ainda assim, descubro que, em vez de descer a escada, subo. Ouço vozes vindas das salas do terceiro andar, mas não há ninguém no corredor, quando subo rapidamente os próximos dois lances de escada. O quinto andar está quieto. Paro em frente à porta com um teclado de luz vermelha no final do corredor, e me viro para a escada para ver se tem alguém vindo. Não vejo ninguém. Depois de puxar o papel da pasta, aperto o código de sete números, vejo a luz mudar de vermelho para verde, e entro. Espero a porta se fechar antes de tatear as paredes à procura de luz. Quando encontro, meu coração começa a golpear.

 Armas grandes e pequenas.

 Pilhas e pilhas de caixas de munição. 

Facas de vários formatos e tamanhos. 

Bulbos cheios de um pó explosivo que meu pai e sua equipe usam para desprender porções de rocha em áreas não revitalizadas. 

Depois de um tempo, vejo que o quarto contém mais do que armas. Transmissores de longa distância. Rádios de pulso para bolso. Aparelhos de rastreamento. Gravadores de diferentes formatos. Alguns se parecem muito com os que eu me lembro de serem usados nos nossos braceletes do Teste.

 E percebo que o lugar me faz lembrar aquele aonde Sehun  me trouxe antes do quarto teste. Durante o Teste, olhei as armas fornecidas e vi ferramentas para ajudar na sobrevivência. Agora as vejo como tantos dos meus colegas candidatos do Teste devem ter visto — como um modo de tirar vidas. Enfio quatro dos rádios de pulso menores na minha sacola. Além deles, coloco vários gravadores e aparelhos de rastreamento, bem como um pequeno monitor que deve ser usado para mostrar a localização do transmissor. Olho as outras prateleiras, e penso em pegar uma das facas maiores. Suas bordas denteadas, porém, me lembram demais a arma que Taehyung levava durante o Teste. A que matou Momo.

 Dizendo a mim mesma que não preciso das armas, uma vez que não pretendo levar adiante as instruções da presidente, caminho de volta para a porta e apago a luz. No escuro, fico atenta a sons do outro lado. Quando não ouço nada, esgueiro-me pela porta, espero a luz ficar vermelha de novo e desço. 

Uma das oficiais que trouxe as fichas me vê quando chego ao terceiro andar. Ela pergunta se preciso de ajuda com meu trabalho, e digo que já terminei e estou indo para casa. Com um aceno, continuo a descer os outros dois lances, torcendo para que ela não seja um dos rebeldes de Symon.

 No hall do primeiro andar, há mais oficiais do que quando cheguei. Mantenho a cabeça baixa e caminho para a saída. O ar puro traz uma sensação refrescante e maravilhosa à minha pele, quando pego minha bicicleta e começo a pedalar. Tento não pensar no pedido da presidente, mas é impossível esquecer o que ela me incumbiu de fazer. Doutor Barnes, professora Holt, Symon, o pai de Jackson , todas as pessoas que participaram da morte de candidatos do Teste, seja ativa ou passivamente. Eles merecem ser punidos por seu papel na morte daqueles que vieram para cá com esperança. Entretanto, suas ações significam que eles merecem morrer? E se for esse o caso, posso me convencer de matá-los? 

Sinto ânsias ao me lembrar da sensação do sangue de D.O correndo pela minha mão, enquanto a vida se esvaía do seu corpo. Se a presidente conseguir o que pretende, o sangue dele vai ser o primeiro que eu verti. Tento refrear a náusea, mas, após três quarteirões, salto da bicicleta e corro até uns arbustos agrupados próximos à lateral de um prédio de tijolos cor de areia. Minha bike cai ruidosamente no passeio atrás de mim, enquanto esvazio o estômago no chão. Limpo a boca e tento endireitar o corpo, mas meu estômago contrai-se novamente e eu me curvo. Minhas pernas parecem gelatina. O suor aflora, e começo a tremer, enquanto as imagens daqueles que morreram passam pela minha cabeça. Os olhos vazios de Lia, o corpo ensanguentado de Jungkook, o rosto de Sehun , enquanto perdia a cor pouco antes de despencar no chão. 

Aos poucos, o tremor diminui, e eu me endireito. Caminho lentamente. A fraqueza que senti parece ter passado, mas, quando apanho minha bicicleta, prefiro caminhar com ela pela rua da cidade a pedalar. Abro os fechos da minha sacola e pego uma garrafa de água. Ela limpa minha boca e minha garganta do gosto de bile, mas não pode eliminar a causa. Dirijo minha bike para o norte, enquanto tomo goles de água, sem prestar atenção para onde estou indo. Quando chego a uma pequena fonte no meio de uma área gramada, cercada por um pequeno quadrado de lojas, deito minha bike no chão, e me sento na borda de pedra da fonte.

 Está frio, mas a luz do começo da noite encorajou várias pessoas a vir para fora. Crianças brincam de pega-pega, vários casais sentam-se em bancos ao longo dos passeios que circundam o parque. Tudo parece tão normal! Ninguém aqui sente a tensão da luta pelo poder que está prestes a ameaçar o mundo deles.

 Tiro o Comunicador de Trânsito da sacola, aperto o botão de chamada, e fecho os olhos à espera da resposta de Namjoon. Entretanto, por mais que eu queira ouvir sua voz, o Comunicador permanece em silêncio, e não tenho ideia do que fazer agora. Fui até a presidente para que ela pudesse salvá-lo e salvar a todos do doutor Barnes, de Symon e da destruição que a falsa rebelião causará. Ela deveria assumir o comando e resolver o problema. Em vez disso, devolveu-o para mim, e não tenho certeza de que seja capaz de seguir a trilha que ela me apontou. 

Engolindo com dificuldade, abro os olhos e contemplo a água limpa e clara que borbulha ao meu lado. A fonte não é apenas decorativa; é usada pelos cidadãos para encher suas garrafas e beber, e me vejo pensando nas pessoas que sobreviveram aos Sete Estágios da Guerra. O medo que elas devem ter sentido, quando a coalizão sul-americana atacou; quando o presidente Dalton respondeu, acabando com a postura de isolacionismo que tinha adotado, na esperança de que evitar um conflito trouxesse a paz. Não trouxe. Nem a violência que veio depois. Cidades ao redor do mundo foram arrasadas. Milhões foram mortos. Finalmente, líderes decidiram baixar as armas antes que destruíssem não só seus inimigos, mas eles mesmos. O Quarto Estágio da Guerra terminou e tratados de paz foram assinados. 

Apesar da devastação, deve ter havido uma sensação de esperança. Uma sensação de que o pior tinha acabado. A terra, porém, não assinou um tratado. As armas biológicas e químicas, usadas durante os primeiros Quatro Estágios, não podiam ser extirpadas com uma canetada. A paz não seria tão fácil. Terremotos, tempestades carregadas de química, enchentes, tornados, furacões. Quando o Sétimo Estágio da Guerra terminou, o tempo e a paisagem haviam mudado de maneira inimaginável.

 É curioso que os humanos tenham sobrevivido. Como teria sido fácil olhar o horror ao redor deles e desistir. A comida era escassa. Era quase impossível encontrar água não contaminada, mas eles não se renderam. Salvaram o que foi possível de suas casas e partiram para encontrar outros sobreviventes. Vieram aqui. Revitalizaram esta cidade. Tijolo por tijolo, árvore por árvore, começaram a restaurar o que seus líderes tinham destruído. 

Deve ter havido escolhas terríveis. Pessoas que se recusavam a aceitar um governo centralizado criaram problemas. Acumularam recursos. Provocaram brigas na tribuna da Câmara de Debates e desviaram o foco do bem comum para eles mesmos. Os oficiais da cidade incentivaram-nos a deixar Tosu. Finalmente, eles se foram. 

Quando meus colegas de Cinco Lagos e eu estávamos estudando essa parte da história, nossa professora contou que os dissidentes desapareceram da cidade. Deduzi que ela queria dizer que eles partiram pra procurar um novo lugar onde pudessem viver como quisessem. Agora me pergunto: como aqueles que pretendiam derrubar o governo recém-criado tinham partido com tanta facilidade? Principalmente quando sua discordância estava causando tantos problemas para o organismo governamental? Houve distúrbios por comida, painéis solares foram destruídos ou roubados, vigilantes patrulhavam as ruas, lutando com aqueles a quem o governo tinha encarregado de garantir sua segurança e às vezes matando-os. Com escassez de recursos e explosão de criminalidade, deve ter havido uma preocupação de que o novo governo estivesse equivocado, de que não estivesse no controle, de que, talvez, não seguir as novas regras para a distribuição de recursos e a revitalização tornasse as coisas melhores. 

Como aqueles dias devem ter sido difíceis. Com novos recursos alimentícios disponíveis, plantas e árvores se desenvolvendo no solo revitalizado, parece impossível imaginar que alguém pudesse ter acreditado que tentar sobreviver por conta própria seria melhor do que trabalhar em conjunto e seguir as mesmas regras. Entretanto, uns poucos confiaram nisso. De algum modo, porém, o governo recuperou o controle. Para isso, será que eliminaram os que pretendiam provocar o caos? Talvez. Se isso aconteceu, estavam errados? 

Olho para a água cintilante, pura, e depois para as crianças que riem enquanto brincam. Essas coisas estariam aqui, agora, se os dissidentes tivessem destruído o que acabava de ser criado? Esse fim justifica um meio pavimentado de sangue? Não sei. 

Houve uma época em que eu teria certeza. Esta situação teria aparecido em branco e preto. Gostaria que agora fosse assim. Disse à presidente Tiffany  que não poderia eliminar aqueles cujos nomes estão escritos no papel na minha sacola. Quero acreditar que essa seja a verdade, mas a pressão que sinto crescer no peito enquanto olho a cidade em torno, forjada com esforço e esperança, me faz pensar se poderia haver outra verdade. Que, assim como os Sete Estágios da Guerra, e o período que se seguiu, a paz virá acompanhada de sacrifício e morte. 

Dou uma olhada no relógio na tira da minha sacola. Logo o Sol irá se pôr. Preciso voltar ao campus. Sei que deveria subir na bike e voltar, mas me vejo mais uma vez tirando a pasta cinza da sacola, e abrindo-a. Lá estão os doze nomes, o código para o quarto do quinto andar e o recado que a presidente Tiffany me escreveu. Sob essa página, há várias outras folhas de papel reciclado cinza. Onze, para ser exata. Uma para cada um dos onze nomes originais da lista da presidente. No alto de cada página há um nome, seguido da residência da pessoa, informação familiar e o papel no Teste. 

Como era de esperar, a primeira página desse grupo está centrada no doutor Jedidiah Barnes. A localização de sua casa não me diz muito, uma vez que não sou de Tosu City. No entanto, lembro-me bem de outros estudantes mencionarem que sua moradia pessoal fica em uma das ruas que circundam o campus da universidade. Leio o nome de sua esposa e visualizo a mulher que encontrei no verão passado, depois que o Teste tinha terminado. Seus dois filhos, que têm dezesseis e doze anos — aproximando-se da idade em que podem se candidatar à universidade. Com o pai como coordenador do programa, não há dúvida de que serão selecionados. Contudo, vão querer fazer parte das provações que se seguem? O doutor Barnes esteve no comando do Teste durante quinze anos. Em todo esse tempo, 1.132 estudantes participaram dele. Destes, 128 passaram pela universidade. Mais de mil, que queriam ajudar o mundo, se foram. Por causa dele.

 Conforme a luz diminui, percorro as outras páginas, guardando o máximo possível na memória: a professora Holt — defensora do acréscimo de mais uma fase no Teste, para provocar a habilidade dos alunos em pensar criticamente sob tensão emocional; o professor Markum — chefe do departamento de Medicina, que criou a mais nova versão do soro que apaga a memória, e está trabalhando em um implante neurológico para ajudar os oficiais a monitorarem melhor a maneira como cada estudante em potencial lida com a tensão do processo do Teste; o professor Lee — que, de acordo com a informação, não apenas ajudou a criar o sistema de pontuação para cada grupo de alunos durante a primeira fase do Teste, como propõe um contingente maior de candidatos para garantir que nenhum dos melhores e mais brilhantes deixe de ser notado. 

Páginas e páginas de líderes. Todos os que trabalham para dificultar o Teste, torná-lo mais invasivo, mais mortífero.

 Uma raiva intensa forma-se em mim, quando recomeço e releio a descrição sob a luz fraca. A essas pessoas foi confiada a vida da próxima geração de líderes. Elas traíram não apenas essa confiança, como também a fé do país como um todo.

 Minha visão se tolda com a emoção, dificultando a leitura das últimas páginas. Raiva. Pena. Medo. Desespero. Esses sentimentos diminuem minha decisão de recusar o pedido da presidente, e cutucam as crenças que me ensinaram a valorizar. Quando finalmente termino minha segunda leitura, enfio os papéis de volta na pasta, encho minha garrafa de água na fonte, e subo na bicicleta. Usando o Comunicador de Trânsito como guia, volto para a universidade pegando a mesma trilha que usei para chegar ao gabinete da presidente. Não é o caminho mais curto, mas não tenho intenção de chegar depressa. Embora preferisse destruir os papéis que a presidente me deu, existe uma chance de que precise das informações deles. Minha melhor opção é escondê-los, para não ser pega com eles.

 Avisto uma região onde as ruas e as calçadas estão trincadas e quebradas, a grama é menos verde, e me dirijo para ela. Os telhados das casas estão vergados. Tábuas que atravessam as janelas e as portas indicam falta de material para fazer os consertos. Faltam degraus nas escadas. Rodamoinhos de tinta desbotada decoram o exterior das casas. A maioria dos quintais da frente está suja, com poucas áreas de grama descuidada e amarelada. Se não fosse pelos brotos animadores das árvores saudáveis na rua, eu pensaria que a área ainda precisaria ser revitalizada e que aqui ainda não mora ninguém; mas mora. Uma boneca de pano sentada perto dos degraus estragados da frente de uma casa marrom acachapada, com uma varanda cuidadosamente varrida, e uma pá de metal sem ferrugem, diante de outra moradia, dizem que aqui tem gente.

 Desde que vim para Tosu, percebi que, apesar das melhores intenções do governo, é quase impossível uma cidade deste tamanho tratar todos os cidadãos da mesma maneira. Ruas valorizadas pelos oficiais do governo são reparadas com mais frequência do que as ruas de quem não detém postos influentes. No entanto, apesar do aspecto decadente de outras áreas, nunca vi uma tão malcuidada quanto esta. Embora isso me perturbe, de certa maneira fico satisfeita. É óbvio que o governo raramente nota esta rua, se é que nota, portanto, poderia ser um lugar perfeito para esconder os papéis que não quero que ninguém encontre.

 Nos últimos raios solares do dia, examino as casas destruídas, grafitadas, dos dois lados da rua, ignorando as que indicam sinais de habitação. Uma pequena construção térrea, com janelas fechadas com tábuas, e um telhado despencado, prende minha atenção. As casas em frente mostram sinais discretos de ocupação, mas parece que há meses nada, a não ser roedores e pequenos animais, chega perto da porta da frente desta, e das duas vizinhas a ela. 

Tomando cuidado para me manter na grama e não deixar pegadas na terra, cruzo para o fundo da casa. A porta nos fundos está perigosamente presa nas dobradiças. Posso ver pelo menos um lugar onde um animal fez um ninho na beirada do telhado. 

Encosto minha bicicleta no fundo da casa e vou até a porta. As dobradiças soltam um protesto agudo quando abro a porta. Fico parada e espero para ver se alguém aparece. Sem ninguém à vista, entro numa pequena cozinha. Os armários estão sem porta. No centro do cômodo, restos de uma mesa estão espalhados pelo chão, ladeados por três cadeiras de madeira. O chão está coberto de folhas e galhos. Mesmo assim, dou uma olhada no resto da construção para ter certeza de que o lugar não está sendo usado. 

O chão da sala de visita está coberto por uma grossa camada de poeira. O único sofá está tão gasto que as molas saltam de suas almofadas. Vasculho o banheiro e dois quartos. Quando não vejo sinal óbvio de habitação, tiro meu canivete da sacola e abro o armário do quarto. Ajoelhada, uso a lâmina para cutucar em volta das tábuas do assoalho. Várias estão soltas. Forço três, levanto-me para tirar a pasta da sacola, removo a lista de nomes, e enfio o resto dos papéis no canto que abri. Recoloco as tábuas, e empilho as roupas manchadas com o sangue de D.O sobre elas. Depois fecho a porta do armário e saio correndo. 

Salvo as coordenadas deste local no Comunicador de Trânsito, depois subo na minha bicicleta e pedalo. Ao chegar ao final da rua, olho para trás para a casa onde os papéis estão escondidos, sabendo que se voltar para pegá-los será porque decidi assumir a incumbência da presidente Jungkook.

 E não apenas eu. Porque essa tarefa não dá para ser cumprida sozinha. Meu pai me disse para não confiar em ninguém. Desobedeci a essa ordem mais de uma vez — muitas vezes em meu prejuízo. E se a presidente estiver certa, e não houver nenhuma outra maneira de acabar com o Teste e a destruição do país que poderia ocorrer, posso ter de desobedecer novamente.



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