Ah, mas engana-se quem acha que foi fácil ser amigo de Sehun. Depois daquele dia a barreira entre nós voltou e ele, arrependido da pequena brecha, tentava consertá-la. Eu, entretanto, dei tempo ao tempo e insisti de mansinho para não explodir aquela represa contida que era o emocional de Oh Sehun. De alguma forma sabia que precisávamos um do outro para não enlouquecer naquele lugar.
E ele se revelou um ótimo amigo.
Entre minhas e suas visitas esporádicas ao médico – mesmo médico, vale dizer – e nosso tratamento quase sempre intercalado, nós conversávamos. Aos pouquinhos ele soltava migalhinhas de informações, muito mais facilmente do que fazia antes. Seu olhar de pena agora me parecia mais amistoso, seus sorrisos eram quase invisíveis, mas existiam e eu conseguia pelo menos fazê-lo pensar em dar uma volta comigo.
Eu me recordo de poucas coisas ultimamente e meu cérebro se recusa a trabalhar com a mesma eficiência de antes. Memórias que antes estavam tão perto, quase a ponto de tocá-las, sumiram como bichos silvestres sem deixar nada além de uma trilha embaçada e uma sensação de que, em alguma hora, tivera algo ali. Como uma casa que os antigos donos resolvem desmobiliar pouco a pouco, eu também fui ficando vazio. E os espaços sem poeira onde um dia tiveram memórias, me incomodam.
Mas eu me lembro de uma visita, de um passeio, de uma tarde jogando dominó sobre as cobertas e da primeira vez que Sehun me chamou de Lu. E quando eu me apaixonei por ele.
A primeira foi uma visita da minha mãe.
Ela morava no interior e se pudesse passaria dias e noites na cabeceira do meu colchão reclinável, como minha segunda arara de soros. Entretanto, no momento em que seus olhinhos vermelhos e chorosos beiraram o cantinho da porta do meu quarto, eu impus um limite a suas visitas e indiretamente ao seu sofrimento.
Então toda sexta feira ela aparecia com roupas indiscretas, um tanto quanto deslocadas. Não julguem minha mãe, ela não pôde ter toda escolaridade que gostaria e minha melhor lembrança dela era de tê-la como uma sombra da minha cadeira, tentando decifrar minhas letras no caderninho de tarefa da terceira série. Sinto muito por todas as vezes que a fiz sofrer, propositalmente ou não. Já havia beijado o filho do vizinho para que ela me deixasse em paz; pichado a escola para não ser obrigado a frequentá-la; fugido de casa por incontáveis dias junto dos amigos como uma vingança boba por palavras que ela proferira e que só visavam o meu bem. Sem contar nas muitas vezes que ela me enrolara num casaco do meu pai, cobria meu rosto com os cabelos e esperava ao lado da minha cama até que os efeitos de fossem o que lá que eu tinha experimentado na noite passassem. Era mulher humilde, sem trato nos cabelos e com mais rugas do que deveria para a idade. Um de seus olhos era mais estreito que o outro, lhe dando um ar de eterna dúvida e a vida enrouquecera uma voz dócil, mas firme. Eu sempre me perguntei quantos vestidos floridos minha mãe parecia capaz de ter, já que nunca eram iguais. Talvez deva perguntar a ela quando vir aqui.
Era sua terceira visita – a primeira em que Sehun não estava em tratamento – e, se o moletom não estivesse me deixando mais magro, realmente eram os remédios que faziam esse efeito. Pude perceber o quanto eu e Sehun éramos pálidos quando ela entrou com o rosto queimado de sol e uma coloração saudável. Seus olhos brilharam e oscilaram, porém ela entendeu meu mudo pedido desesperado e sorriu o máximo que suas bochechas caídas permitiam. Seu olhar pousou em mim, acariciando-me antes de suas mãos que não conseguiam evitar tremer. O abraço que me deu não me fez sentir frágil e, mesmo tirando o ar de meus pulmões, foi revigorante.
- Meu Deus, Luhan! Que saudade! - ela falou alto, passando a mão em meus cabelos.
- Você veio aqui semana passada, mãe! - brinquei, então olhei discretamente na direção de Sehun que brincava com os próprios dedos em cima do colo - Esse é meu companheiro de quarto, Oh Sehun.
Ele levantou a cabeça por uns instantes e, envergonhado, acenou mecanicamente. Ah Sehun, mesmo que no momento eu tenha rido a ponto de receber um de seus olhares de superioridade na frente da minha mãe, você fica adorável tímido. Não exatamente tímido, algo entre o querer não estar tímido e não conseguir se controlar.
Minha mãe o encarou com o mesmo olhar fraterno que dedicava a mim. Se muitas vezes eu me sentia impelido a manter uma distância segura de Sehun depois de nosso primeiro contato, isso não valia para ela. Em um segundo ela estava em meu colchão, com minha mão entre as dela, no seguinte ela já agarrava Sehun pelos ombros e o puxava para um abraço apertado.
- Oh meu Deus, tão novinho! - exclamou gentilmente
Ele não soube para onde olhar e, talvez traído, me fitou em desespero como se não desejasse fazê-lo. Como se precisasse da ajuda de uma lesma gigante para se livrar de uma cascavel que queria abraçá-lo.
- Quantos anos ele têm? - perguntou para mim.
Dei de ombros, mesmo que dentro de mim viesse um gélido incômodo. Eu sabia que Sehun era mais novo que eu, mas nunca me lembrei de perguntar sua idade ou mesmo lembrar-me dela em nossas conversar. Senti meu rosto esquentar e encarei meu colega de quarto com os olhos a pedir desculpas.
- Quinze - Sehun respondeu por si, com os olhos sobre mim.
- Oh! - minha mãe colocou as mãos no rosto e eu, atônito, só conseguia encará-lo a espera que ele dissesse que era uma brincadeira.
Sua expressão permaneceu tão fria quanto o sangue que fluía do meu corpo, me deixando desconfortável em meus formatos. Quis dizer tanta coisa que pareceu fútil que acabei por não dizer nada. Sehun crispou os lábios e deu de ombros uma vez, antes de deixar sua atenção em minha mãe.
- Sehun, meu querido, o que você tem? - continuou.
- Leucemia.
Minha mãe segurou seu rosto entre as mãos enrugadas e, por mais que o ato o assustasse, pousou um beijo em sua testa lisa e alva. Sehun, que obviamente pensara que ela fosse atacá-lo, abaixou a cabeça e coçou o nariz com as costas das mãos.
- Eu trouxe bolo de cenoura com chocolate! - ela bateu palmas e se afastou para a porta - Volto já, meninos, esperem aí.
Disse que não iria sair correndo e pegar um ônibus antes que ela batesse a porta. Olhei para Sehun e ele tinha, se não um sorriso discretíssimo, uma expressão que indicava algo mais profundo e terno que superioridade.
- Sua mãe é legal... - comentou, voltando a brincar com os próprios dedos.
- Sehun, me desculpa... - sussurrei de volta.
Ele deu de ombros. Alguém certa vez me dissera que aquela era a maneira perfeita de dispensar uma resposta quando você não tinha as palavras certas. Parece verdade, não?
- Eu também não sei muita coisa de você. Não faz diferença... - ele respondeu e meu sangue voltou a gelar gradativamente.
- Tenho dezenove - comentei.
- E um câncer no cérebro... - ele completou em um murmúrio - Para colegas de quarto não sabemos muito a respeito um do outro.
Aquele silêncio meio chiado – até porque um hospital nunca fica em completo silêncio, cheio de bipes e uma movimentação sorrateira que me fazia pensar em filmes de terror – que a ausência de minha resposta criara durou até minha mãe voltar a irromper pela porta. Ela trazia uma vasilha de tampa laranja, um sorriso aberto e o desejo quase pueril de que tudo ficasse bem.
- Aqui, meninos, comam!
Nós comemos. Minha mãe conversava comigo, buscava saber de minhas amizades, de meus feitos, de meus dias, do clima na capital. Nunca do meu tratamento. E eu agradecia mentalmente por ser poupado e por poder poupá-la de tudo aquilo. Ela disse que iria reclamar com as enfermeiras por não nos alimentar direito e eu retruquei.
- Saindo daqui eu vou virar modelo, mãe!
Minha mãe não aprovou a brincadeira e me deu um tapa nos ombros, ralhando em seguida.
- Vai nada! Vai é estudar, entrar na faculdade e ser um advogado decente!
Quando meus olhos encontraram Sehun, ele sorria discretamente, com o canto dos lábios sujos de calda de chocolate. E, acho que nada poderia descrever a sensação boa que era vê-lo sorrir.
Não entendo porque aquela foi uma tarde memorável. Talvez tenha sido o bolo. Ou Oh Sehun, com seu meio sorriso de despedida e os dedos trêmulos segurando um pedaço de bolo extremamente farto que ficara em sua mão um bom tempo antes de ele decidir se teria ou não coragem para comer. Ou minha mãe, tagarelando alegremente enquanto espanava os farelos da minha coberta e em seguida da de meu companheiro de quarto, com seus trejeitos alegres de gente do campo. Aquele dia não tinha nada para ser memorável. Ninguém naquele mundo em que o cinza brigava com o colorido por espaço, nenhum filho de Deus tinha consciência de que a poucos quilômetros estavam dois rapazes em tenra idade lutando para sobreviver. O céu, sem se importar com a lágrima no canto dos olhos da minha mãe, continuou no mesmo azul ciano de vinte minutos atrás. O transito não parou porque eu ou Sehun caímos doentes. O mundo não mudou porque nos apaixonamos.
Bom...
Para mim mudou.
Sehun andou comigo pelos hospitais em uma tarde úmida de inicio de dezembro. Havia um sol gelado no céu e uma brisa também gelada nos corredores que pareciam permanentemente ter uma baixa temperatura. E nuvens, aparentemente geladas. Muitas nuvens, umas tão grandes e outras que pareciam fiapos de algodão ralo. Ele estava com o rosto virado para a janela observando seu movimento quase preguiçoso, com o cobertor cobrindo só os pés enquanto aquele friozinho o abraçava e lambia seus cabelos escuros e mal cuidados. Sua expressão era a de que não haveria mais tédio a se acrescentar naquele quarto. Eu, do meu colchão perto da porta, ficava tentando captar sons exteriores de um hospital que estava particularmente calado naquela manhã, com o corpo ansiando por liberdade.
Cansado de minha própria monotonia, levantei de um salto.
- Onde você vai? - Sehun ergueu a cabeça.
- Sair... - sorri para ele, enfiando o moletom pela cabeça. O tecido acariciou minhas costelas e eu suspirei - Vou dar uma volta no hospital.
- Onde você vai dar uma volta?
- Eu vou até a recepção e a enfermeira me manda voltar - conclui.
Sehun pareceu desconfortável. Remexeu-se no colchão e brincou com os próprios dedos em cima do colo. Meus lábios se ergueram em um sorriso antes que eu me contivesse.
- Quer ir comigo?
- Não - respondeu rápido, revirando os olhos como se me julgasse por saber seus pensamentos.
- Vai ser legal.
Sehun sempre teve uma grande dificuldade com seus sentimentos. Acho que em algum ponto de sua doença, ele se trancara dentro de uma redoma e passara a agir como uma máquina. Era sua maneira de se proteger de mágoas posteriores.
- Não, obrigado...
- Você que sabe... - dei de ombros, com um meio sorriso.
No primeiro passo, o ouvi suspirar. No segundo, suas cobertas escorregaram pelas pernas. No terceiro passo, ele me chamou. A partir do quinto, andávamos juntos.
Naquela tarde, seguimos em direção à recepção. Eram alguns corredores, um elevador, deixar o Centro de Oncologia e andar mais um pouco para chegar até onde pacientes com doenças mais... Hm... Imediatas aguardavam por atendimento em bancos de concreto de aparência pouco confortável. A troca de palavras entre nós fluía mais facilmente, e logo eu gesticulava abertamente enquanto tentava convencê-lo de que futebol era o melhor esporte do mundo.
Acho que nossa diferença era visível. Por mais que nos parecêssemos fisicamente – e isso minha mãe dizia sempre que podia, dizendo que ele era uma versão um pouco mais fechada de mim – nossas personalidades eram a antítese uma da outra. Meus atos um pouco infantis destoavam daquela responsabilidade e senso de realidade que ele desenvolvera cedo demais; uma percepção de que a morte estava mais perto do que esperávamos. Minha voz às vezes soava alta demais, animada demais; Sehun conseguia manter o timbre rouco da puberdade em um nível pouco acima do sussurro, completamente desprovido de emoção. Enquanto eu era apenas alguém cujos princípios não se abalaram pelo câncer, uma pessoa cuja resiliência era um ponto de apoio, Sehun havia se moldado em torno dele e se tornado uma barreira humana, seca e revoltada, ansiando por deixar esse mundo tão cedo quanto possível.
Uma doença é capaz de mudar uma pessoa de jeitos meio irreversíveis. Eu, no meu imenso tempo livre, gostava de imaginar como seria a vida de Sehun se em seu sangue não houvessem células corrompidas. Na minha imaginação sempre havia um garoto rebelde, vestindo alguma banda de rock, cabelos descoloridos em uma escola de gente rica tentando destoar dos outros como se a sociedade não fosse suficiente para ele, os ideais revolucionários juvenis frescos em sua mente só esperando uma oportunidade de se expressar. O tipo de jovem que poderia mudar a sociedade. Ou uma vida. A minha vida.
A recepcionista se preparava para me mandar embora com aquele sorriso indulgente e as mesmas palavras de sempre quando seu olhar se deparou com Sehun. Ela parecia surpresa de vê-lo fora da cama, principalmente em minha companhia. Levantou, hesitante em me mandar ou não para meu quarto. Eu não queria colocá-la em má situação, até porque deveria ser bem ruim tem que mandar um rapaz rebelde com câncer de volta toda vez que ele aparecesse tentando fugir - quiçá dois, sendo que um deles tinha algumas tendências taciturnas e depressivas.
- Vamos, ela vai mandar a gente voltar... - comentei, guiando o braço de Sehun para o lado oposto, mais uma vez para o elevador.
Ele estacou ao meu lado, retardando os passos e olhando em volta como se visse o lugar pela primeira vez. Então, virou-se para mim como se estivesse prestes a soltar o que quer que estivesse entalado em sua garganta.
- Já? - perguntou por fim.
- Já... - dei de ombros.
- Nós podíamos...
- O quê?
- Tem um jardim aqui perto... - comentou como quem não quer nada.
O sorriso se abriu antes que eu pudesse contê-lo em meus lábios. Sehun revirou os olhos para mim e saiu andando sem me chamar.
O jardim do hospital ficava na ala psiquiátrica, entre os dois prédios individuais que formavam o complexo onde eu estava internado, no primeiro andar. Eram cerca de trinta minutos da entrada, passando por vários corredores que formavam a área de psiquiatria e psicologia. Encontrei crianças e jovens traumatizados falando com assistentes sociais enquanto caminhava em silêncio ao lado de Sehun, sentindo o braço dele roçar vez ou outra contra o meu.
O lugar em si era grande e me lembrava vagamente um bosque. Com mais árvores do que flores, era cercado de portas de vidro e paredes inóspitas, como se o hospital houvesse germinado e nascido em torno daquele pedaço de terra imaculada. A faixa de sombra era extensa e havia um tapete fofo de folhas mortas no chão, além de alguns bancos espaçados que abrigavam uns poucos pacientes e enfermeiros. Ali era proibido fumar, comer, ou praticar esportes (Por Deus, quem praticaria esportes em um hospital?), o que tornava o lugar um centro de meditação e descanso silencioso.
Adentrei por uma das portas devagarinho, com medo de desmoronar a plenitude daquele santuário sagrado, a boca aberta e os olhos tentando captar cada foco de luz que brilhava no chão quase como se eu nunca tivesse visto algo tão perfeito. Sehun chegou ao meu lado após meu momento de contemplação e o fitei agradecido.
- Aqui é lindo - comentei.
- Agora nós podemos ficar aqui ao invés de só ir à recepção e voltar.
Eu o fitei com um sorriso, mas Sehun já tinha desviado o rosto com as fundas maçãs do rosto em um sutil tom rosado.
- Sehun, por que você é tão fechado?
Depois de longos minutos, ele me respondeu:
- Porque eu não quero me machucar mais.
- Eu estou aqui, sabe? Eu quero ser seu amigo... - comentei, tocando sua nuca com a ponta dos dedos.
- Não preciso de amigos - me cortou rudemente, afastando minha mão com um movimento brusco de ombros.
- Todos precisamos - suspirei - Tudo bem se não quiser ser meu amigo, mas não quer tentar pelo menos?
- Por que se importa?
- Porque eu acho que é isso que os amigos fazem... E então?
Sehun soltou um longo suspiro, parecendo desconfortável antes de declarar, talvez para me calar a boca, talvez porque parte dele estivesse disposta a isso.
- Tudo bem...
Arranjei o dominó em uma tarde particularmente letárgica e fria. Aquelas oscilações no clima eram quase tão letais quanto minha doença ou seu tratamento. O tempo parecia brincar com todos, inconstante e bipolar, em alguns dias ensolarado, com um céu azul ciano e uma brisa morna e em outros com uma manta branca e cinzenta uniforme, cobrindo todo o céu e fazendo com que meu quarto ficasse escuro e desagradável. Meu tratamento tinha sido na manhã anterior e eu ainda sentia ânsias de vômito, um gosto particularmente desagradável na boca e meu corpo moído - não literalmente. Pela primeira vez, a terapia coincidiu com Sehun e nós dois ficamos curtindo uma ressaca pós-remédio no quarto, com os sintomas característicos a nos atacar. Era a segunda vez que eu vomitava na manhã e meu companheiro de quarto se movia mais lentamente, com algumas bolsas de soro a mais na arara e a voz fraca e quebradiça. Ainda assim, lutávamos para manter uma conversa enquanto estávamos acordados e nos mostrávamos indulgentes quando o outro acabava dormindo no meio da conversa - ou pior, tendo uma crise, desmaiando, sentindo faltas de ar. Realmente, não era agradável. Pois bem, o dominó. Tanto eu quanto Sehun permanecíamos no quarto, esperando que o efeito passasse; pouco a pouco, os olhares desesperado que ele dava à porta e à janela começaram me dar pena. Éramos confinados naquele lugar sem uma perspectiva de fuga. Eu começava a sentir os sintomas também da abstinência de uma distração, algo que se torna quase necessário quando você tem alguma doença que te obriga a ficar na cama por um longo período de tempo. Quando o enfermeiro entrou para conferir minha pressão e a de meu companheiro de quarto, pedi se poderia sair. Sehun me fitou com os olhos semicerrados, dizendo por eles que eu era um traidor. O enfermeiro negou categoricamente.
- Pode pedir para o doutor mandar algo para cá, então? - falei de novo.
Ele se inclinou para mim e pude observá-lo mais de perto. Era um homem alto com fios loiros e olhos penetrantes e azuis. Poderia ser americano ou de um desses países europeus que produzem pessoas com as mesmas características, de iguais feições arianas e expressão sempre fria. Sussurrei em seu ouvido e recebi um sorriso puramente profissional.
- Claro, vou ver se ele deixa.
Incrivelmente, tal enfermeiro retornou alguns minutos eternos depois. Trazia comida e no cantinho da bandeja a promessa de uma tarde não tão tediosa. Deu a de Sehun para seu respectivo dono e a colocou a minha sobre meu colo com uma piscadela rápida e arteira.
Sehun, que sempre foi atento, percebeu a caixa de dominós perto do meu prato e olhou dela para mim, procurando uma resposta com seus olhos cinzentos e expressão vazia. Eu não o respondi. Comemos em silêncio - porque sempre comíamos em silêncio - e ele não voltou a me fitar, mesmo que suas mãos trêmulas parecessem mais agitadas com a caixa preta na minha bandeja. Quando terminei, me aproximei de sua cama e sentei aos seus pés, enfiando minhas pernas por baixo da coberta de modo a ficarmos entrelaçados. Sehun me fitava intolerantemente nessas situações, às vezes fazia alusão a minha incessante necessidade de atenção, mas nunca me afastava. Acho que ele não tinha força para isso. Ou ele simplesmente era tão carente quanto eu.
- Sabe jogar dominó? - perguntei com um meio sorriso assim que ele terminou de comer e o enfermeiro loiro veio recolher nossas bandejas.
- Qualquer um sabe jogar dominó - ele me cortou, se ajeitando no colchão de frente para mim.
- Quer jogar comigo?
- Qual a sua idade mesmo? - revirou os olhos para mim.
- Isso é um sim?
- Sim, eu jogo com você.
Começamos a jogar em silêncio. Era difícil fazer Sehun falar logo de cara, e eu o comparava a um cachorro selvagem. Precisava ser amansado com paciência, dia a dia até adquirir plena confiança em mim. Naqueles longos momentos de silêncio que precediam nossas curtas conversas, eu gostava de observá-lo em sua distração. Sehun, para alguém que era calado demais, tinha muitos jeitos e manias quase imperceptíveis. Ele coçava os olhos como uma criança quando tinha sono e evitava bocejar. Seus dedos eram impacientes quando estava curioso, embora em seu rosto dificilmente passasse algo além de indiferença. Presas finas abusavam de lábios que sinceramente poderiam ceder a qualquer pressão mais forte quando ele estava concentrado. Eu poderia observá-lo sem me entediar pelo resto da minha vida - o que, atualmente, significava pouco mais que meio ano.
- Eu nunca joguei dominó antes - ele disse de súbito.
- Para uma primeira vez, você está indo bem - brinquei com ele, e sua expressão branda me incentivou a continuar - Você parece mais o tipo de criança que ficaria no computador.
- Eu tinha um vídeo game portátil - seus olhos se estreitaram até serem duas tiras negras de cílios longos - Mas e você, o que fazia quando criança?
- Eu morei no campo até os nove anos, então eu fugia para as plantações brincar por aí. Então eu chegava em casa e apanhava - completei.
Sehun sorriu por alguns segundos antes de sua expressão retornar àquela inércia de sempre. Eu já havia notado que ele sempre agia daquela forma, contendo-se no último segundo como se fizesse algo errado.
- Você sorri de um jeito estranho - comentei de súbito.
- O quê?
- Porque você não mostra os dentes - sorri para ele do jeito certo - Entende?
- Você parece um cavalo assim - ele brincou, colocando uma das peças próximo a minha virilha. Eu me esquivei sutilmente de seus dedos. Sehun não percebeu.
- Mas sério, você ri de um jeito estranho... - insisti.
- Eu tinha os dentes tortos - confessou para mim, mordendo o lábio inferior - As crianças riam de mim.
- Dentes tortos? Jura? - eu o encarei atentamente. Sehun sorriu discretamente, deixando entrever presas afiladas e uma sequência branca e aparentemente perfeita para mim - Eles parecem retos...
- Usei aparelho por dois anos.
- E gastou todo esse tempo para não mostrar os dentes - arqueei as sobrancelhas.
- É o costume... - deu de ombros.
- Pessoas têm costumes estranhos - eu disse vagamente, apenas para ocupar o ar com palavras.
- Sim, acho que têm. Meu pai tem um tique no lábio - ele sorriu, então me flagrou observando-o e mostrou os dentes.
- Um tique? - arqueei as sobrancelhas. Quando me mexi, algumas peças saíram do lugar.
- É, ele faz algo estranho quando está irritado - Sehun repuxou somente o lábio superior e olhou para mim - Quando ele fazia isso, eu sabia que iria levar bronca.
- Como? - eu o encarei e ele repetiu - Isso é impossível - tentei repuxar o lábio superior, mas a única coisa que saía era um esgar estranho.
- Você tem a boca defeituosa - Sehun se aproximou e com o indicador tentou refazer a expressão - Sério, faça isso!
- Eu não consigo - resmunguei com seus dedos em minha boca - Lavou essa mão?
- Não - ele riu travesso.
- Tira esses dedos da minha boca, Sehun, que nojo! - eu o repeli com uns tapas e começamos a rir juntos.
- Agora você pegou câncer - zombou, mas havia algo em sua voz que eu não sabia identificar.
- Isso não é legal - eu tentei sorrir e me pareceu doloroso.
- Não... - ele colocou uma peça sobre meu joelho. Sua mão magricela tremia e suas unhas pareciam roxas.
A conversa tinha parado num rumo que eu não gostaria, entretanto parecia tão difícil para mim retomá-la como estava antes. Meu ânimo esvaíra como um balão infantil vermelho e meus pulmões chiados não tinham forças para reenchê-lo. Sehun ainda me lançou um sorriso que me parabenizava por minhas tentativas vãs e continuou a jogar em silêncio.
- Você levava muitas broncas de seu pai? - arrisquei.
- Não muitas. Quando eu tinha uns cinco anos, imitava tudo que meu irmão fazia... E geralmente eram besteiras, então eu levava broncas do meu pai. E seu pai?
- Eu não gostava muito do meu pai... - suspirei.
- Hm...
- Sehun?
- Que foi?
- Você está verde - comentei - Está bem?
- Estou... - ele deu uma pausa, como se pensasse na resposta e acrescentou - Vamos jogar.
- Sua vez.
Sehun, porém, parecia estático. Tinha uma coloração pálida e sua respiração saía mais pesada.
- Sehun? Sério, você está...
Ele virou-se rapidamente para o lado e vomitou no cesto de lixo do lado da cama. Eu, acostumado, dei tapinhas em suas costas enquanto ouvia os jatos aquosos baterem no saco plástico, e acreditem, não é um som agradável.
- Merda - ele murmurou ainda abaixado e ofegante. Seu corpo tremia por inteiro e controlei minha vontade de deixar meu almoço junto do dele.
- Bem nojento, cara - comentei com um meio sorriso.
Vi seus olhos cinzentos e marejados focarem os meus com raiva e ele soltou uma risada fria.
- Eu não falo isso quando é você vomitando...
- Quer uma bala de menta? - brinquei.
- Não, obrigado - massageou as têmporas.
- Sehun, o que foi? - perguntei, levando minha mão até sua testa. Ele suava frio.
- Estou meio zonzo - resmungou, apertando os olhos.
- Acho melhor você dormir - eu me desenrosquei de suas pernas e deixei a cama.
Ele bocejou e virou para o lado contrário, escondendo o rosto enquanto eu guardava as pecinhas de volta na caixa. O vi tirar uma pastilha de menta de sua gaveta e enfiar debaixo da língua.
- Luhan?
- Sim?
- Obrigado por hoje...
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