O que me levou a escrever? Eu não sei bem... Nunca fui dado à literatura e mais pro fim da vida que me interessaram as estórias de um bruxo adolescente. Quiçá me dedicar a escrever, escolher palavras e botá-las na ordem que convém às minhas lembranças. O que, com certeza, não é nada fácil.
Acho que escrevo por Sehun. Ninguém se interessa pela autobiografia de um anônimo - principalmente aquelas que se resumem em poucos meses. Não escrevo para outros ou por mim. Escrevo por você, Sehunnie, para que não me esqueça.
Bem, voltando aos motivos de minha escrita. A ideia já estava em minha cabeça, sondando taciturna e às vezes martelando estridente há um bom tempo, talvez desde que percebi o tanto de informação que teria que ceder para simplesmente morrer e não ser enterrado como desconhecido. Naquele tempo, minha autobiografia resumia-se em “Olá, meu nome é Luhan, nasci no dia 20 de abril de 1994. Meu pai fugiu quando eu tinha onze anos. Aos dezesseis sofri um acidente. Morri no dia...” e essa informação seria acrescida por outro alguém, no caso, Baekhyun. Era quase janeiro, meados do Natal que a ideia enraizou e começou a tomar conta, antes de se consolidar no meio da madrugada para o que deveria ser apenas uma carta para presentear minha mãe. Já era Sehun o motivo de minha escrita. Mas me deixem contar os detalhes exatos.
Vinte e quatro de dezembro se marcou com uma queda súbita de temperatura, deixando o céu nublado até fevereiro e fazendo frias minhas tardes no jardim com Sehun. Previa chuva e, depois da chuva, com sorte, uma geada branda que congelaria os vidros das janelas, deixaria o banheiro mais inóspito do que de costume e deitaria uma manta branca sobre o verde das plantas. Mesmo com a brisa gelada nos corredores, o hospital parecia mais acolhedor. Acho que é o que as pessoas chamam de Espírito Natalino. As enfermeiras sorridentes me deixaram usar um suéter vermelho que ficava tão grande a ponto de aparecer minhas clavículas ossudas na gola. Foi servido panetone e um caldo mais encorpado no refeitório e o número de pacientes ali era maior e mais alegre. Sehun estava mais corado e sorria um pouquinho mais. Todos os doentes ali pareciam mais cheios de esperança.
Em contrapartida, as alas com crianças sofriam colapsos. A de psiquiatria, cujas crianças traumatizadas e com problemas psicológicos graves variavam em idade e grau, tinha organizado uma sessão de filme bem supervisionada para que nenhuma delas atacasse a outra ou corresse algum risco. A ala infantil de oncologia, a mais perto de nós, portanto, estava um caos. Com preparativos a mais em todo o setor, muitos enfermeiros não estavam com tempo de planejar algo grandioso para crianças que não tinham certeza de estarem respirando no dia seguinte. O Sr. Doutor pedia a pais e parentes que ajudassem. Foi assim que eu e Sehun entramos como voluntários.
Por mais incrível que possa parecer, foi fácil convencer meu colega de quarto a ajudar. Na manhã do dia vinte quatro, eu voltei de minhas consultas periódicas e o encontrei dormindo, embalado nas cobertas como um bombom gigante para se proteger do frio. Posso dizer que perdi longos momentos somente fitando seu rosto anguloso e tentando achar algum defeito nele. Sehun tinha a pele leitosa e suas bochechas eram fundas; a boca pequena e os lábios cheinhos, rachados num rosa pálido; os olhos fechados serenamente possuíam cílios longos e olheiras arroxeadas; os fios negros que caíam em seu rosto agora ficavam em grandes quantidades no travesseiro quando ele levantava. Sehun era bonito. Depois de alguns segundos onde meu corpo todo se acalmava apenas por vê-lo e ouvir de sua respiração pesada, minha agitação voltava ao normal e me obrigava a interagir. Aproximando de sua cama, chamei-o baixo e sacudi seu ombro. Quando aqueles olhos cinzentos focaram-se acusatórios em mim, sorri em cumprimento e falei:
- Bom dia, Bela Adormecida! Quer um beijo pra levantar?!
- Vá à merda...
- Eu tenho novidades para você!
Ele se soltou das cobertas e coçou o nariz com as costas da mão, dando um longo bocejo em seguida.
- E isso não podia esperar até mais tarde, né?
- Não... - ri mais uma vez e ele pareceu mais indulgente, dando de ombros.
- O que é, Lu?
- Acho que nós poderíamos ajudar hoje na ala de oncologia infantil!
O olhar de Sehun fechou e ele colocou as mãos sobre o colo, pensando por um bom tempo. Com um suspiro, me fitou com expressão de cachorro querendo fugir do veterinário e eu me sentei a sua frente.
- Sério?
- Aham! - eu o fitei - O que foi? Não achou uma boa ideia?
- Quando eu estava na ala de oncologia, conheci algumas crianças que ainda estão lá. Eu... - gaguejou ele, com os olhos baixos.
- Sehun, eu não sabia.
- Não, tudo bem... Eu vou - me sorriu.
Eu peguei suas mãos entre meus dedos e olhei fundo nas íris que ele insistia em manter baixas antes de dizer:
- Obrigado, Sehun. É importante pra mim...
A ala de oncologia infantil era mais colorida que todo o hospital junto - ou pelo menos, as partes que eu cheguei a ver até agora - , embora seus tons alaranjados e roxos se parecessem com as crianças: vivos, mas doentes. Lutando para não cair no cinza completo.
O Sr. Doutor nos cedeu dois pedaços de cartolina pequeno para que escrevêssemos nossos nomes. Sentei-me num canto e escrevi tanto em coreano quando em chinês com canetas de diferentes cores que ainda me pareciam meio sem ânimo. Sehun ficou encarando o papel por um tempo longo, com os olhos foscos e a cabeça longe.
- O que foi? - chamei sua atenção.
- Às vezes, alguns voluntários apareciam na oncologia infantil - ele me fitou - Eu me apegava a eles e nunca mais os via de novo.
- Por quê?
- Qualquer um que fosse diferente parecia um pouquinho mais vivo... Nunca imaginei que pudessem ser tão doentes quanto nós - riu, sem vontade.
Antes que me contivesse, meus dedos se embrenharam nas mechas escuras e eu tinha um sorriso travesso no rosto.
- Você parece bem vivo para mim agora.
Sehun sorriu e acenou, escrevendo o nome em uma caligrafia grande e legível, um tanto quanto infantil.
- Vamos?
- Vamos.
Entramos na sala onde as crianças estavam reunidas junto a mais três voluntários: dois da ala psiquiátrica e uma senhora que eu nunca vira antes. Eu me senti enjoar ao fitar o monte de corpinhos magros e pálidos, quase esqueléticos. O ar parecia abafado e sufocante, com cheiro de álcool e produtos de limpeza, misturado com vômito. Eu tive ânsias de correr e chorar em um canto quando alguns dos seres pequenos que estavam ali fixaram seus olhos em mim, porém senti a mão de Sehun em meu ombro, me empurrando para frente. Haviam alguns em cadeiras de rodas e outros cuja maca tivera de ser trazida para a sala. Os que mostravam melhor situação sentavam-se em um tapete de montar encardido e abraçavam as próprias pernas. Tinham olheiras fundas e olhares brilhantes. Alguns já estavam carecas. Vestiam suéteres que os deixavam ainda mais frágeis e dobravam as mangas longas para cobrir as mãos constantemente trêmulas. Os mais ousados se aproximavam dos voluntários, ansiosos por carinho e atenção. A entrada de Sehun causou uma comoção nos que pareciam mais velhos, embora para mim todos fossem apenas crianças colocadas no lugar errado e na situação errada.
Um vulto de cabelos vermelhos chegou em alta velocidade. Em um minuto ela lançava um olhar curioso para mim e no outro idolatrava meu companheiro de quarto como um cachorrinho o faz com o dono.
- Oppa Sehun! - gritou a menina, antes de se jogar nos braços dele.
Sehun cambaleou e tive medo que ambos caíssem no chão. O apoiei pelos ombros e a garota abriu um sorriso para mim. Agora que eu prestava atenção mais atentamente, ela tinha um lenço amarrado sobre a cabeça e seu suéter era masculino, largo demais, cinzento e surrado. Suas bochechas eram ossudas e macilentas. Ela tinha olhos castanhos que brilhavam encimados por olheiras profundas.
- Sooyeon - ele murmurou abobado.
- Oppa! Eu senti tanto sua falta! - ela continuou com sua voz estridente.
- E-Eu... Que legal - sussurrou coçando a nuca. Sooyeon saracoteava em torno dele, o tocando, acariciando seus braços e seus cabelos.
- Oppa! Daqui a dois anos eu vou sair da ala infantil e a gente vai poder ficar junto de novo! - exclamou feliz, tomando a mão de Sehun entre as suas.
A senhora pigarreou e a garota que corava em frente a Sehun retornou a seu lugar perto de outras meninas, cochichando com elas animadamente algo sobre o retorno do Oppa. Sehun olhou para mim com uma expressão de desculpas por alguns segundos antes de se virar para frente
Era uma turma de vinte crianças, esperando por um Natal onde tubos e agulhas não as prendessem num hospital gelado. Um dos voluntários da ala de psiquiatria, que sinceramente me assustava com seus olhos frios e penetrantes, disse que deveria haver uma organização ali. Eu protestei apenas mentalmente, já que nunca se sabe o que ele poderia fazer comigo caso eu hesitasse. Aquelas crianças já viviam numa rotina diária cansativa, tinham horários para comer, dormir, estudar, tomar injeções e ver os parentes, mas eu duvidava que houvesse outra coisa que elas pudessem fazer. Por mim, levaria todas ao jardim e faria um piquenique com música e, se meu cérebro não cedesse, uma partida de futebol. Mas o voluntário sinistro com cara de ninja ordenou e todos acataram sem muito a dizer. Cada um ficou supervisionando quatro crianças e elas teriam que obrigatoriamente ficar dentro da ala de oncologia. Acho que é um pouco difícil para mim descrever essa parte, no entanto é necessário. Os voluntários se apresentaram primeiro, dizendo o nome e a idade. Sehun disse em alto e bom som que tinha câncer e a maioria o reconheceu; trocaram sorrisos saudosos. Em minha vez, todo o ensaiado se esvaiu. Eu tinha vinte pares de olhos esperançosos postos em mim, esperando, olhando para um rapaz magricela que parecia tão perdido quanto elas. Sehun me cutucou entre as costelas e eu disse:
-Meu nome é Luhan, eu vim da China - apontei os caracteres chineses em meu crachá e minha mão tremia - E-Eu... Eu te... Eu tenho dezenove anos...
- Muito bom - disse o moreno de olhos frios que me assustava.
Eu suspirei e continuei:
- E-Eu estou no hospital há quase dois meses... E... Hm... Eu tenho um tumor no cérebro...
Ouvi um murmúrio geral e inocente de pena. Desejei que não sentissem, que eu morreria no lugar de todas elas se fosse possível. Alguns me sorriram complacente. Uma garotinha de lenço azul enxugou uma lágrima no canto dos olhos. Eu me sentia chorar e as lágrimas caíam silenciosas em meu suéter vermelho de Natal.
- É um prazer conhecer todos vocês... Eu... - e o que eu queria dizer não se formava em minha cabeça, não fazia sentido, parecia doloroso demais para por em palavras.
Foi a vez de Sehun me puxar delicadamente para trás e sussurrar em meu ouvido.
- Muito bom, Lu...
As crianças levantaram suas mãozinhas e disseram, uma por uma, seu nome, sua idade, o câncer que tinham e quanto tempo ficaram no hospital sob o olhar sempre frio do voluntário líder com cara de ninja. Algumas ali estavam tão ruins que mal conseguiam falar e o pouco que os colegas sabiam sobre essas, nos disseram em suas vozes infantis e quebradiças. A maioria ali era leucêmica, assim como Sehun. Havia uma garota com câncer nos pulmões, cuja respiração fazia um barulho alto enquanto ela sorria de olhos quase fechados, já curiosa para nos conhecer. Os que não podiam se esforçar para falar, apenas reviravam os olhos de suas macas cansados e nos focavam em um mudo pedido angustiado por ajuda. Alguns deles arriscavam umas palavras e todos, todos sem exceção, sorriam quando apresentados. Eu os amava instantaneamente.
Posso dizer que cada criança ali deveria ser lembrada eternamente. A injustiça do destino para com elas deveria ser marcada e nunca mais repetida. Talvez elas sobrevivessem, mas o que aconteceria se não? Seriam um caixão branco no cemitério, uma lápide com idade abaixo de quinze e a dor de uma família. Elas, com sorte, seriam lembradas por alguém. Mas o mundo continuaria frio e impassível a caminhar como se crianças como eles não devessem ser lembradas. Por isso, quero que lembrem-se dessas crianças. Porque para o mundo elas não tiveram importância, mas para mim sim.
Soojin, Chohee, Hyunsu e Minki eram minhas crianças e com elas passei as horas mais significativas de minha vida. Elas formaram uma rodinha de acordo com as instruções do voluntário da ala psiquiátrica e se encolheram até parecerem menores do que já eram. Repetiram seus nomes para mim, já que no meio de tantos rostos tristonhos era fácil se perder e eu me apresentei novamente como Tio Lu, respondendo algumas perguntas antes de tentar desenvolver alguma atividade que fosse possível para elas em suas condições. Vê-las ali, tão frágeis e mesmo assim se agarrando ao fio de vida que tinham sem nunca culpar o mundo como eu fazia me dava a sensação de que eram verdadeiros anjos sem asas.
Soojin era quieto e de olhos esbugalhados, com um cabelo embaraçado e escuro espetado para cima. Tinha nove anos, leucêmico há apenas seis meses. Suas bochechas ainda tinham um tom rosado delicadinho e sua voz era um tanto feminina. Se agarrava no ursinho Pyong e recuava a qualquer um que se aproximasse dele, ameaçando chorar, porque era um presente da avó e ele amava muito a avó. Demorou um tanto para se aproximar de mim e quando o fez foi hesitante. Não o vi rir uma única vez e duvidei que o fizesse com facilidade. Soojin precisava de amor.
Chohee foi a primeira a se pronunciar e mencionou meu tumor, perguntando à queima roupa quantos meses eu tinha. Era com certeza a garota mais simpática que cheguei a conhecer e seu sorriso de olhos, dentes e mãos iluminava todo seu corpo magro. Madura demais para seus treze anos, falava dos pais com um carinho que eu via somente em mim mesmo. Seu moletom branco mais parecia uma camisola, portanto quando ela estava quieta seu tronco sofria com tremeliques. Mas quando falava, mexendo na ponta dos cabelos curtos, eu não conseguia evitar de sorrir. Seu tratamento estava no fim e ela ansiava poder ir para a escola em breve. Disse que queria ser médica. Disse que iria me curar.
Hyunsu olhava para as outras crianças com inveja de cima de sua cadeira de rodas. Havia voltado da terapia recentemente e eu reconhecia os efeitos em seu corpo mal colocado sobre o estofado duro. Tinha doze anos e pouco falou de sua doença ou do hospital. Soltava frases curtas e rápidas somente para dizer que ouvia e participava da conversa. Ele também estava careca e meu coração se apertava somente de encará-lo. Hyunsu também gostava de futebol e eu o fiz prometer que jogaria comigo assim que suas pernas ficassem boas o suficiente para correr.
Minki era o menor deles e, em seus sete anos, me lembrava o que Sehun deveria ter sido. Curioso e esperto ao extremo, se aconchegara em meu colo assim que deixei e roçou os cachos negros contra meu pescoço; um filhote manhoso. Disse para mim que sentia falta dos pais, do avô, das tias da escola, dos colegas de turma. Queria voltar para casa logo e andar com a bicicleta nova que ganhara no Natal passado e nunca tivera a oportunidade de usar, mas o homem de jaleco branco disse que seu sangue tinha alguns soldados maus que estavam causando aquelas dores e os vômitos e que só voltaria a ser criança livre de novo quando os soldados maus perdessem a guerra que seu corpinho quebradiço estava travando. Suas cicatrizes e histórias diversas me disseram que era uma criança travessa que o câncer ainda não havia mudado em algo triste e fechado.
Conversamos por uma hora inteira antes que Sehun surgisse ao meu lado com a garota do lenço vermelho a tira colo, sorrisse para minhas crianças e dissesse:
- Hora do teatro!
- Oba! Adoro teatro! - bati palmas, o encarando com um sorriso zombeteiro.
- Ótimo... Quem quer que o Tio Lu seja a Branca de Neve? - ele perguntou para as crianças na ala, enquanto a maioria sorria e levantava as mãos. O voluntário com cara de ninja me olhava de um jeito esquisito.
- Oi?
- Vamos, Lu, vai ser divertido! - Sehun me puxou pelos braços e me levou até um canto, enfiando sem meu consentimento um vestido largo que parecia um saco de batatas e uma peruca curta, embaraçada e roxa sobre minha cabeça - Olha, está linda!
- Foi ideia sua? - perguntei.
- Claro que foi...
- Quem vai ser o príncipe?
- Eu - Sehun me sorriu travesso.
Começamos o teatro em frente a uma rodinha esperançosa depois de uma rápida organização. Macas foram levemente erguidas e as cadeiras de rodas ajeitadas de modo que ninguém saísse prejudicado. Minki foi escolhido para ser um dos anões. A senhora que eu desconhecia seria a madrasta e o outro voluntário da ala psiquiátrica que eu ainda não olhara direito seria o caçador. Ele era baixo e com os cabelos descoloridos em um tom loiro reluzente que o deixava com cara de fantasma. Seu sorriso era gentil e seu olhar era sincero, me inspirando simpatia. O outro, com cara de ninja, ficou em um canto apenas observando de forma soturna.
- Era uma vez uma princesa... - ele começou narrando enquanto eu dava saltinhos pela sala com meu vestido amarelo mostarda que escorregava pelos ombros; algumas crianças riram - e ela tinha uma madrasta muito má.
A senhora apareceu do meu lado e as crianças exclamaram negativamente. Ela usava um nariz falso e por baixo dele me sorria com emoção.
- Ela fazia a pobre Lu de Neve trabalhar.
- Lu de Neve? - o olhei por cima da minha vassoura de brincadeira.
- Seu nome - sorriu - Mas a Lu de Neve era muito bonita enquanto a madrasta era muito feia, não acham?
As crianças concordaram animadas. Chohee assoviou e bateu palmas e eu agradeci com a cabeça. Meus olhos se voltaram para um menininho em uma maca e ele me fitava com os olhos brilhantes. Quando me aproximei, ele lançou um sorriso desconfiado para mim.
- Não esqueça de dizer que a Lu de Neve também era miss - disse perto dele, dando um beijo em sua testa. O garoto tocou minha peruca.
- E ela lutava kung fu - disse um menino ao chão, fazendo os gestos da luta. Sehun, de seu canto com um penacho na cabeça, ria silencioso.
- Sim, ela lutava kung fu e era miss! E mesmo sendo muito boazinha, a madrasta dela não gostava dela. Então, um dia, quando a Lu de Neve brincava na floresta, apareceu um caçador malvado para matar ela.
- O caçador podia ser um monstro! - exclamou um.
- Ele podia ser um espião do mal!
- Ok, ok. O caçador era um espião do mal e monstro nas horas vagas.
O rapaz loiro usava uma capa negra e saltou para minha frente empunhando uma arma infantil colorida. Algumas crianças prenderam a respiração.
- Mas a Lu de Neve era tão bonita que ele resolveu poupar a vida dela.
Eu pisquei e mandei beijos para o voluntário seguidas vezes, recebendo seus sorrisos incontrolados em resposta. Alguns garotos insistiram que deveria haver luta, então frisei que Lu de Neve era muito delicada e que não queria nunca machucar ninguém, mesmo lutando kung fu. As meninas me apoiaram dizendo que misses não lutam para não estragar as unhas. Sehun riu alto atrás de mim.
- O caçador disse que a Lu de Neve não deveria voltar para a casa da madrasta. Então ela fugiu pela floresta e encontrou uma casinha tão pequena que ela mal conseguia ficar em pé. Era a casa dos anões.
O grupo selecionado se aproximou devagar. Em frente aos outros, muitos deles pareciam ter engolido a língua. Minki se aproximou de mansinho e puxou a barra do meu vestido, com olhinhos pidões e um beicinho nos lábios. Eu o peguei no colo e coloquei sobre meus ombros.
- A Lu de Neve amava muito os anões. Quando eles iam trabalhar, ela cuidava da casa ... - Sehun se interrompeu - No que os anões trabalhavam?
- Eles eram duendes do Papai Noel - disse uma menininha que parecia ser a menor ali. Minki, de meus ombros, sorriu pra ela.
- Não, eles não podem ser duendes! - reclamaram - Eles têm que ser de um circo!
- Ótima ideia! - disse Sehun, eufórico - Como está na época do Natal, os duendes do Papai Noel acolheram a Lu de Neve. Quando essa época passa, eles montam um circo mágico!
- Eu quero ser o malabarista - exclamou um garoto perto de mim. Alguns outros o acompanharam, dizendo o que queriam representar.
- E você, Minki? - perguntei. Ele corou e se abaixou para murmurar em meu ouvido.
- Eu gosto de ser o mágico...
O desci de meus ombros e declarei a todos que Minki seria o mágico do circo de duendes do Papai Noel. Ele voltou a se agarrar a minha saia amarela, tímido, mas sorridente.
- Um dia a madrasta descobriu que a Lu de Neve estava viva e ficou com muita raiva. Mas como ela não tinha uma arma laranja - ele mostrou a arma do caçador - ela resolveu fazer um feitiço para que a Lu de Neve nunca mais acordasse. Então ela pegou uma maçã envenenada e deu para a Lu de Neve.
- Um cupcake envenenado - disse uma menina ao fundo.
- Um o quê?
- Cupcake - repetiu, animada.
- Ok, isso daí que você disse.
A senhora se aproximou de mim com postura encurvada e colocou algo que para mim era uma pera verde em minhas mãos. Eu fingi estar comendo enquanto as crianças menores me alertavam para não fazer.
- Então a Lu de Neve dormiu.
Eu caí no chão entre meu anões e fingi um ronco alto. De repente, braços fortes me ergueram e eu fui depositado em cima de uma mesa estreita. Pelos cílios, vi o rapaz baixinho da ala psiquiátrica se afastando de mim e Sehun com um meio sorriso.
- Para a Lu de Neve acordar, ela tinha que encontrar o príncipe Sehun.
Sehun caminhou algumas vezes pela sala antes de pousar os dedos em meu peito.
- E o príncipe Sehun tinha que acordar a Lu de Neve com um beijo.
- Você está muito perto, Sehun - sussurrei de olhos fechados. Senti quando ele riu próximo demais.
- Não fala nada, é para dar realidade - retrucou no mesmo tom, colocando a mão em minha bochecha - Quer um beijo?
- Seria bem real se você me beijasse - entreabri os lábios sedutoramente, zombando.
- Com essa peruca, nem parece tão ruim - ele entrou na brincadeira, pousando um beijo no meu nariz antes de se afastar e mencionar em alto e bom tom - Acho que a princesa morreu mesmo!
Ouviu-se uma exclamação chateada das crianças. Ouvi uma garota dizer.
- Mas ela não pode morrer! Não é justo!
- Isso! Ela tem que viver! - completou a outra.
- Como eu vou acordar ela? - continuou Sehun.
Surgiram diversas sugestões que se embaralharam e tornaram incompreensíveis para mim. Sehun respondia algumas delas com a voz tão animada que eu tinha que controlar minha vontade de abrir os olhos para vê-lo em ação. Então, tão subitamente, fez-se um silêncio de expectativa. De repente fui atacado com cócegas na barriga e o susto me fez rolar pela mesa e cair no chão, aos pés de um Sehun que pouco conseguia se conter.
- Olha! Deu certo! - ele ajeitou a peruca sobre minha cabeça enquanto as risadas vívidas ecoavam - Ela tá viva!
Eu olhei para minhas crianças. Elas tinham o sorriso mais lindo do mundo.
Depois de tirarmos as fantasias, iniciamos um jogo de palavras divertidas. Fizemos perguntas diversas e os voluntários também arriscaram mímicas aleatórias. Separamos em grupos novamente e todos participamos de jogos de tabuleiros. Suho, o rapaz da ala psiquiátrica de cabelos descoloridos, surgiu com um violão e se pôs a dedilhá-lo para alegria geral, cantando músicas com uma voz suave como chocolate para os ouvidos. Sehun também arriscou algumas frases, mas a desafinação o impediu de continuar. Eu cantei algumas músicas em chinês e outras em coreano, recebendo aplausos e assovios no final de cada uma. Meu companheiro de quarto disse que eu tinha uma voz linda, mas que ainda me preferia calado. À noite, chegaram biscoitos com gotas de chocolate, um luxo que pouquíssimos ali já tinham visto. Nós comemos todos juntos, nos empenhando para dar atenção àquelas vinte crianças esperançosas e animadas. Logo depois, algumas delas caíram no sono e chegamos à conclusão de que estava na hora de deixá-las.
O voluntário com cara de ninja cujo nome não me interessava permaneceu na porta supervisionando enquanto as arrumávamos em suas respectivas camas. Minki estava com tanto sono que dormiu no tapete de montar, a boca meio entreaberta e a bochecha amassada de encontro à parede. Resmungou coisas inteligíveis quando o peguei no colo e o levei até um leito próximo a janela, com alguns desenhos infantis colados.
Sehun me esperava parado na porta quando me voltei, mas não estava sozinho.
- Oppa Sehun! - chamou a menina do lenço vermelho - Quando você vem me visitar de novo? - ela parecia esperançosa.
- Eu não sei - respondeu vagamente.
- Oppa, eu queria te contar uma coisa... - eu a vi enrubescer - É importante - acrescentou de súbito, fitando os olhos cinzentos.
- Fala.
- E-Eu... - ela apertou as mãos sobre o colo e deu alguns passos para frente.
Então tudo aconteceu rápido demais. Primeiro Sooyeon se aproximou e ficou nas pontas dos pés. Agarrou o braço de Sehun. E sua nuca. E o beijou! Eu senti meu sangue ferver, mas minhas pernas inertes não respondiam. Os dois tinham os olhos abertos, os rostos muito próximos, os lábios colados e as bochechas vermelhas. A garota o segurava, porém eu tinha certeza que ele congelara naquela posição meio inclinada.
Eu estava certo. A menina se afastou e cobriu o rosto com a ponta do lenço que pendia de seu ombro. Murmurou com a voz abafada.
- Oppa, eu gosto de você! - e correu para junto das outras.
Sehun permaneceu parado sem nenhuma palavra, com os olhos focados em nada. Eu avancei e o tomei pela mão, arrastando-o para nosso quarto.
- Já acabamos aqui - rosnei, puxando-o pelos corredores escuros naquele momento.
Alguns pacientes recebiam visitas de Natal e aquele clima acolhedor fazia o frio dentro de meu corpo diminuir, como tentar ficar bravo com aquele filhote extremamente fofo que fizera xixi no tapete: era impossível e você acabaria se derretendo uma hora. Então, soltei Sehun torcendo para que a marca de meus dedos não ficassem em seus pulsos - como quando ele escorregou e os hematomas de quando o segurei pelos braços ficaram marcados por quatro dias - e tomei a dianteira, o deixando para trás. Me permiti reduzir o passo e Sehun não acelerou o dele, mantendo a mesma distância entre nós. Eu raciocinava devagar e de todas as coisas que podia pensar, a primeira era que meu ciúme fora infantil e impensado. Felizmente meu quarto estava próximo e eu poderia me enfiar nos travesseiros para me esquecer daquilo pela manhã de Natal. Infelizmente, Sehun dormia no mesmo quarto.
- O que você tem, Lu? - ele me pegou delicadamente pelo braço e me fitou com aquela altura em vantagem a minha que me fazia parecer frágil e birrento. Quando Sehun estava próximo, mesmo com aqueles ombros curvados para dentro, eu sentia vontade de ter alguns centímetros a mais.
- Nada - dei de ombros.
- Você parece meio triste... É porque eu não te beijei? - zombou.
Na mosca. Corei absurdamente e esperei que meu olhar mortífero o fizesse mudar de ideia. Sehun sentou em sua cama e eu fiquei de pé, esperando.
- Lu, é sério... É por causa da Sooyeon?
- Por que seria?
- Porque ela me beijou e você ficou estranho desde então.
- Você gosta dela? - desconversei.
- Não - ele disse de pronto - Nós ficamos em tratamento juntos da última vez... Quando voltei, eu já não estava na ala de oncologia infantil.
- Ela é bonita... - comentei - Mesmo careca...
- Acho que é... - Sehun se deitou sem se prolongar - Você também é... Não fique com ciúmes...
- Você disse que não era gay - relembrei em voz baixa, tão confuso quanto antes.
- Esqueça isso...
E de repente, eu andava em direção a ele. Naturalmente, com a mente em modo automático, sentava na beirada de sua cama e o encarava com os olhos sonolentos. E puxava aquele maxilar rígido para mim até que ele estivesse meio sentado e eu meio debruçado sobre ele. E, não mais que de repente, eu o beijava.
Eu não fiquei com medo. Não era o meu primeiro beijo e infelizmente não era o de Sehun. Mas as borboletas em meu estômago ganharam vida. E Sehun ficou tenso quando eu toquei seus ombros. Nossas bocas não se mexiam e eu tinha medo de assustá-lo caso... Bem, caso tentasse enfiar a língua no meio. Eu sentia fisgadas pouco abaixo do estômago, mas havia um bolo incômodo em minha garganta.
- Luhan... - ele me afastou com delicadeza e sua boca estava num adorável tom rosado. Provavelmente seu rosto também estaria se não fossem as células do mal que deixavam seu sangue cor-de-rosa e indiretamente o deixariam careca. As mãos que estavam em meus ombros desceram e por fim encontraram meus dedos.
- Me desculpe - ri soprado, deixando que ele “acidentalmente” entrelaçasse os dedos aos meus e virasse o rosto com uma expressão desinteressada para o outro lado. Eu podia jurar que ele estava corando. Oh Sehun, que não se dava a sentimentalismos, precisava quase sempre de uma desculpa, por mais esfarrapada que fosse, para suas atitudes mais “afrescalhadas”
Sehun parecia decidido a não me responder – ou me soltar – então me aproximei dele e encostei minha testa em seu pescoço, rindo contra sua pele.
- Por que fez isso? - ele perguntou com um pouco de irritação.
- Eu não sei - dei de ombros, encostando meu queixo na curva de seu pescoço e a ponta do meu nariz em sua orelha. Ele arrepiou e me afastou com delicadeza - Acho que fiquei chateado quando você não me beijou hoje.
- Não sabia que você era...
- Sem rótulos - o cortei gentilmente.
- Mas você é?
- Eu sou...
- Hm.
- Me desculpe.
- Estou com sono.
Era um “Volte para a sua cama”. Apenas fiz o que ele mandou e ocupei minha própria armação de metal reclinável com um colchão fino e duro que eu aprendera a chamar de cama. Conferi no relógio que não faltava muito para meia-noite - o suficiente para que eu pegasse no sono, mas aquele era um dia especial e eu me esforçaria - e ponderei que os enfermeiros não nos deixariam fazer uma festa de arromba assim que fosse Natal.
Abracei meus joelhos, com o suéter escorregando para os braços, e busquei o diário que minha mãe me dera no meio das poucas coisas que tinha. Brincava com ele para que meus olhos se mantivessem abertos, mas nas raras vezes que eles ameaçaram ceder eu me lembrava que poderia ser minha última vez vendo fogos de artifício. Uma sensação dolorosa invadia meu peito, espalhando-se pelo corpo, ofuscando minha vista com lágrimas gordas que fizeram caminhos em minhas bochechas. Sehun ressonava baixinho ao meu lado e seu corpo parecia incorpóreo com as luzes da cidade o banhando.
Então, meus dedos se moveram e eu me vi escrevendo na segunda folha do diário:
"Olá."
Adormeci antes de ver os fogos naquela noite.
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