Aconteceu.
Foi culpa de uma convivência meio que imposta, meio que aceita.
Foi amor.
Foram toques sutis de mãos sobre mãos e olhares de sorrisos tímidos. Foi Sehun cedendo a boca a meus beijos, seu cabelo entre meus dedos e um suspiro ansioso nos lábios. Foi eu buscando seu abrigo nas noites, fugindo para sua cama dura, me enroscando em seus braços após seus resmungos sonolentos. Foram carinhos discretos, ambos parando quando tudo parecia extrapolar nosso limite invisível, as coisas fluindo.
Foi natural.
Mas não posso dizer que era tudo um mar de rosas. A iminência de perder a vida acaba nos deixando um tanto quanto melancólicos e revoltados e, saibam, não é algo que tende a melhorar com o tempo. Eu tentava esconder meus momentos de depressão atrás de um sorriso que pouco tinha de verdadeiro. Sehun, entretanto, tinha menor controle sobre as próprias emoções e, para não descontá-las em mim, fazia um verdadeiro inferno entre os enfermeiros.
Nossos dias pacatos - por uma palavra mais eufêmica para monotonia total - era mais divertido quando podíamos ir à ala de oncologia infantil e brincar um pouco com crianças que pareciam tão ruins quanto nós mesmos. Vê-las ali, se agarrando a um fio de vida sem saber que essa mesma vida iria tentar foder com ela mais tarde era realmente algo que nos fazia sorrir. Chohee havia voltado para casa e sua despedida causou muitas lágrimas e sorrisos. Em mim, principalmente.
As primeiras falhas em minha cabeça se tornaram gritantes no final de março e as de Sehun me acompanharam. Era difícil olhar no espelho e encarar a doença levando uma melhor sobre nosso corpo. A queda de cabelo afetava o emocional de nós dois, embora prometêssemos um ao outro que a aparência não nos prejudicaria.
Não prejudicou.
Foi numa tarde de abril. Baekhyun tinha vindo buscar as minhas últimas páginas escritas e Sehun, que fugia dele como o diabo foge da cruz, negara terminantemente nossa presença no quarto. Nossas piores discussões giravam sempre em torno do meu melhor amigo de sorriso quadrado e eu sabia que por mais infantil que aquilo fosse, era imutável. Se devia pelo lado carente que Sehun fingia não existir dentro de si. Ele tinha medo de ser trocado por Baekhyun, ainda mais com todo mistério que existia sobre o assunto de suas visitas. Estranho é que eu nunca, realmente nunca, demonstrei qualquer interesse romântico ou quiçá sexual no meu melhor amigo; seria como beijar um irmão e eu não sou um fã assíduo de incesto. Então, meus encontros com Baekhyun eram reduzidos ao jardim, onde eu lhe dava os detalhes do meu livro e de Sehun e a ala infantil, lugar que muito me agradava. Baekhyun parecia manter uma aversão proporcional à simpatia que inspirava nos pequeninos: quanto mais parecia detestá-las, mais elas grudavam-se nele.
Naquele dia, eu voltara do jardim e encontrara meu quarto no mais profundo silêncio de hospital - aquele silêncio agonizante cheio de bipes e rodinhas de maca sendo arrastadas, um silêncio que eu aprendera a conviver. Minha cama não se adequava às minhas costas e eu me remexia incomodado, revirando de um lado para o outro. Sehun entrou, trazendo com ele uma aura de más notícias. Sua expressão fechada sequer dava espaços para dúvidas ou brincadeiras quando ele sentou a minha frente e estendeu um objeto para mim.
Eu me sentia segurando uma arma, um carrasco arrependido que não tinha o direito de voltar atrás. Não houveram perguntas ou explicações enquanto eu o seguia para o chão obedientemente e repousava sua cabeça em meu peito. A desestrutura de meu ser era vê-lo sendo forte defronte a mim e meu coração que se despedaçava em pouquinhos.
- Pronto? - eu murmurei com a voz chorosa.
Sehun assentiu de olhos fechados.
Eu raspei seu cabelo.
Vi suas mechas flutuando até o chão e formando montinhos fofos ao meu redor como plumas de um pássaro ferido. Foi em meu colo que ele se deitou, já com o couro cabeludo exposto e um meio sorriso que só deixava tudo mais doloroso. Seus olhos fechados não deixavam entrar a imagem desoladora que eu próprio via e a falta de espelho servia para encerrar nossa aparência afetada a olhos que só nos queriam bem independentemente. Sem cabelo, Sehun parecia mais frágil e infantil. Então, eu o desabriguei de mim e me sentei de costas para ele, entregando a máquina em suas mãos.
Na primeira vez, eu suspirei assustado. Na segunda, ouvi meu cabelo caindo no chão em pedaços fofos e separados que o vento suave rodopiava. Comecei a chorar na terceira vez que senti a máquina invadir meu couro cabeludo. Sehun me sorriu na quarta e beijou meus lábios. Soube naquele instante que teria forças para continuar.
Ambos, com nosso cabelo misturado desordenadamente a nossa volta como dois sobreviventes de guerra em meio aos mortos, sorrimos um para o outro. Fui eu quem primeiro tomei a inciativa e toquei o topo liso de minha própria cabeça, soltando uma meia risada ou um meio soluço. Sehun tomou minhas mãos entre as suas e delicadamente beijou minha testa. Eu tinha lágrimas escorrendo pelas bochechas e meu companheiro de quarto tinha uma no canto dos olhos quando me deitou no chão sujo e se pôs sobre mim.
- Você é lindo - sussurrei para ele.
E antes que seus dedos me acarinhassem e Sehun me despisse com lentidão, pude ver seu sorriso agradecido e que por trás daquela máscara inexpressiva um tanto desgastada havia um garoto frágil precisando de atenção. O garoto que eu amava incondicionalmente.
Os dias pareciam passar mais rápido do que eu gostaria que passassem e eu sabia que cada hora perdida valia demais para mim. Fazer tratamento agora, além de uma tortura, significavam dias perdidos e por isso que eu e Sehun insistimos para que nossas sessões fossem juntas, assim poderíamos passar nosso tempo definhando perto um do outro, sedados sem ter que ver o outro em péssimas condições.
Eu piorava e iludia a mim mesmo fingindo que não. Fazia de tudo para que Sehun não percebesse meus momentos de vertigens ou de cegueira e evitava demonstrar o quanto as dores de cabeça me machucavam em sua presença. Sangrava. E confesso, não é nada fácil disfarçar quando o sangue começa a escorrer de súbito por meu nariz. Ou pela boca.
Aquela noite foi terrível.
Tudo que eu queria era dormir, mas aquelas pontadas irritantes na cabeça me impediam e eu somente revirava na cama. Meu jantar tinha sido dispensado e Sehun seguira sozinho para o refeitório tomar um caldo sem sal depois de meus intensos protestos para que não ficasse. A verdade era que meu corpo ansiava pelo dele, minhas mãos buscavam quase incessantemente sua camiseta larga e meus ouvidos sentiam falta daquela respiração meio chiada que ele tinha. Eu o queria a meu lado quase que exclusivamente e sabia que meus clamores por ele seriam aceitos sem pestanejar se eu os verbalizasse, mas egoísmo era um luxo que eu não queria ter.
Então eu ficava ali quieto, sentindo vertigens e os pulmões apertados com uma irritação na garganta que eu não compreendia.
A tosse arranhava minhas cordas vocais que eu imaginei nunca mais funcionarem. Entretanto o pior era a dor. Aquela dor quase insana que rompia minha mente em ápices lancinantes que me deixavam cego. Entre gritos e tosses, me vi no chão rolando no piso frio com a cabeça entre as mãos sem saber como estava ali. O ar me faltava. Doía. E sangrava.
Tão súbito quanto havia começado, a crise passou. Meus lábios estavam manchados de vermelho e eu tinha aquele gosto férreo na ponta da língua. Eu me sentei no chão, ainda meio tonto e com o corpo inteiro amolecido busquei por algo para limpar a boca.
Sehun apareceu.
E eu, como uma criança pega no flagra, me encolhi com o papel manchado bem escondido nas mãos fechadas.
- Luhan? - ele correu e se ajoelhou ao meu lado, pegando meu rosto entre as mãos para que meus olhos estivessem em seus domínios.
- Oi, Hunnie - eu suspirei, erguendo os dedos que pesavam uma tonelada e acariciando suas bochechas.
- Você está verde - brincou com um meio sorriso - Como veio parar aqui?
- Sonho agitado - menti, mesmo sabendo que ele nunca acreditaria.
- Me conta a verdade - disse mais sério.
Em seus olhos eu via o medo. Desviei o olhar.
- Lu?
- O que está em sua mão?
Apertei o papel suave em meus dedos.
- Lu?
- O que é? - eu disse ríspido, com os olhos marejados do esforço e a voz áspera.
- O que você cuspiu?
- Nada... - tentei me afastar dele.
Sehun se levantou e agarrou meu pulso com uma força surpreendente. Um vinco de dúvida se formava em sua testa e, apesar de aparentar estar nervoso, sua expressão era de desespero e surpresa.
- O que você cuspiu, Luhan? - ele perguntou, mais alto.
- Não cuspi nada! - eu repeti, assustado - Sehun, tá me machucando, seu babaca - choraminguei.
Eu o vi estacar por alguns segundos, me libertando como se eu possuísse correntes elétricas.
- M-Me desculpa - Sehun recuou de olhos arregalados, antes que voltasse e distribuísse beijos por meu pulso - Foi sem querer, Lu... Só que... Por um momento...
- Não foi nada - afastei o pulso.
- Me desculpa...
- Tudo bem, eu estou bem.
Quando Sehun voltou para cama, eu discretamente joguei o papel com sangue no lixo do banheiro e voltei a dormir. Ele escapuliu para minha cama e me envolveu em seus braços, colando o tórax em minhas costas e deixando a cabeça repousar acima da minha.
- Lu? - ele deu um beijo em meus fios - Tudo vai ficar bem, não vai?
Eu fingi que estava já adormecido.
Sehun e eu sempre evitamos discutir o futuro fora do hospital. Nos sentíamos desconfortáveis ante a uma realidade que poderia ser apenas uma ilusão. Ou uma ilusão que quiçá nem se tornasse realidade. Parecia simplesmente desnecessário discorrer sobre algo que só nos traria dor se não acontecesse. Ter um amanhã já era bom o suficiente para nós.
Porém, doía.
Às vezes batia uma incerteza quase gritante e a sensação melancólica de que tudo daria errado.
Às vezes tudo parecia prestes a acabar em um segundo e eu me via respirando pesado, buscando meus últimos suspiros com os olhos arregalados.
Era Sehun aparecer que aquela sensação sumia como num passe de mágica. Ele me embalava nos braços como uma criança, me olhava com olhos cinzentos que escondiam um garoto que tivera que amadurecer à força e trazia consigo um cheiro morno de sabonete de ervas e calmaria.
Por que nada poderia dar errado com ele. Nada nunca nos iria separar e eu tenho essa certeza de que tudo irá ficar bem.
Tudo irá ficar bem.
- Luhan? - alguém me chamava e batia de leve em meu rosto.
Eu abri os olhos como se a tarefa exigisse muito de mim. Meu corpo estava no chão em um ângulo estranho e minha cabeça doía. Sehun havia se ajoelhado e me pousado em suas coxas, acarinhando meu rosto.
- Hunnie? - eu o busquei, confuso - O que aconteceu?
- Você foi ao banheiro e desmaiou - ele me ergueu e abraçou meus ombros - Já chamei o enfermeiro.
- Você está verde - sussurrei, pois minha voz não tinha força. Fechei em torno de meus dedos o pingente de sua pulseira e brinquei com ele.
- Eu voltei do tratamento faz pouco tempo - disse de volta.
- Não deveria estar fazendo esforço.
- Não estou, eu... - ele também estava enjoado.
- Minha cabeça dói - choraminguei, me sentando e coçando os olhos.
- Você bateu quando caiu, eu tentei segurar... Desculpa.
- A culpa não é sua.
Dois enfermeiros entraram em seguida, trazendo uma maca e parando assim que nos viram sentados no chão. Pareciam divididos entre quem acudir primeiro e a visão de seus jalecos brancos me causavam vertigens.
- Acho que eu posso andar - brinquei e mesmo assim me ergueram como uma boneca de pano antes de fazer o mesmo com Sehun. Um dos enfermeiros alertou que ele não deveria sair da cama de novo.
- Volta logo - me beijou nos lábios com delicadeza, arqueando uma das sobrancelhas.
- Sinta minha falta - zombei.
Me levaram para ver o médico depois de olharem e garantirem que eu estava tão bem quanto uma pessoa com câncer poderia estar, o que levou mais tempo do que se eles simplesmente me perguntassem como eu estava. Parecem que o paciente nunca sabe se está bem ou não. Ele estava sentado profissionalmente em sua escrivaninha branca, o que sempre me fazia crer que ele ensaiava aquela postura antes de alguém entrar.
- Luhan, eu soube que você sofreu um desmaio hoje.
- Sim, Sehun me achou.
- Eu tenho o resultado de seus últimos exames aqui - ele remexeu alguns papéis e os virou para mim.
Com um gelado no estômago, sequer me dei ao trabalho de olhar aquelas folhas cheias de gráficos e números que eu não entendia.
- E o que isso significa?
Ele protelou alguns segundos angustiantes e eu acrescentei.
- Sem rodeios, doutor. Quero que diga claramente o que isso significa.
- Que o tumor em seu cérebro não diminui para podermos retirá-lo - ele disse, depois de um suspiro.
- Isso não é bom, né? - perguntei ao doutor.
Ele focou os olhos em mim e negou com a cabeça, em silêncio. Eu engoli em seco.
Naquele momento, meu mundo desabava silenciosamente, como um prédio antigo que ruí de súbito sem deixar nada além de poeira e destroços. E eu pensava ouvir o som imaginário de meus caquinhos caindo no chão.
Era quase simples.
Uma hora eu tinha um futuro e na outra ele era tirado de mim impiedosamente. Tudo que eu lutara para ter parecia não ter valido a pena. Todas as pessoas que conhecera, todos os momentos bons que tive, todas as horas que eu passei vivendo simplesmente pareciam ínfimos demais.
Eu ia morrer.
- O tratamento não está dando certo, né? - perguntei com a voz mais chorosa do que gostaria de admitir.
- Sinto muito - ele confirmou com a cabeça.
- Então eu não tenho muito tempo... - virei os olhos. Eu já não podia suportar aquela visão de jaleco branco. Aquela expressão de pena. Aquele rosto que me parecia a própria morte.
- Eu juro, tentamos tudo... Seu corpo já não reage aos estímulos... - então ele desandou em termos técnicos que nada significavam além de palavras vazias para justificar o injustificável.
E eu não ouvia tudo o que ele queria me dizer. Sabe, não fazia mais sentido escutar, se importar com a doença que havia finalmente ganho.
Tive raiva.
Tive ódio.
Quis detestar a alguém, mas quem haveria pra detestar?
- Nós iremos dar todo acompanhamento psicológico para você e para sua família. Você pode voltar para sua casa e vir frequentar as sessões com a psicóloga em datas marcadas.
- Não... - eu balancei a cabeça - Não quero nada disso.
- Se quiser, está dispensado de seu tratamento... Pode sair do hospital...
- E se eu não quiser? - perguntei com um pouco de raiva que não deveria me pertencer.
De repente, estava tudo claro em minha mente. Apesar de toda raiva, toda angústia, toda confusão, eu tinha certeza de apenas uma coisa: não iria deixar Sehun.
- Como?
- Se eu quiser ficar no hospital, no meu quarto? - repeti.
- Sim, você pode. É um pedido um pouco estranho... - ele franziu o cenho.
- Não dirá nada a minha mãe?
- Luhan... - sua voz era repreensiva.
- Não quero que ela saiba. Aliás, não quero que ninguém, absolutamente ninguém saiba. É meu último pedido, me deixe ficar aqui e finja que ainda estou em tratamento. Marque consultas para mim... E, no período que eu estaria me entupindo de remédio, eu quero ficar na ala de oncologia infantil com as crianças.
- Esforço não é bom na sua atual situação - ele continuou.
- Doutor, eu já vou morrer! - gritei, batendo na mesa - Se me deixar sair por essa porta, eu pulo de um prédio. Eu não tenho nada a perder - ameacei. E o cumpriria.
- Acalme-se - ele pediu gentilmente.
Seu tom me fazia parecer um idiota, mas ele não podia me culpar por toda minha raiva. Eu estava sentenciado e a única coisa que queria era poder passar os últimos meses, semanas ou dias que me restavam perto de Sehun e das pessoas que eu gostava sem fazer minha mãe sofrer. Voltei a me sentar, mas meu corpo tremia. Meus olhos faiscavam de ódio e uma dor de cabeça forte me assolava.
-Estou indo contra meus princípios éticos - começou, então me olhou como um pai complacente - Mas vou permitir que faça isso. Só, por favor, conte para sua mãe. Eu gostaria que meu filho me contasse caso tenha dificuldade.
- O Sr. tem filhos? - perguntei para mudar de assunto.
- Dois - ele fuçou em sua escrivaninha e encontrou um porta retrato de madeira que me mostrou. O Sr. Doutor sorria ao lado de dois adolescentes, ambos sem nenhuma semelhança.
Um deles era alto, de tez morena e atípica e os cabelos castanhos rebeldes cobrindo parte do rosto anguloso. O outro era semelhante ao Sr. Doutor, magro e de olhos grandes, com lábios bem cheios e a pele leitosa e um meio sorriso tímido. Eu franzi o cenho.
- Jongin - apontou o rapaz moreno - Ele era meu paciente. Da oncologia... Os pais morreram num acidente antes que ele se curasse quando tinha oito anos - sorriu - E este é Kyungsoo, meu filho.
- O senhor não é casado?
- Minha mulher faleceu no parto... Ela me deixou a coisa mais linda e adorável que eu poderia querer e o destino me deu outro filho anos depois. Eu os amo, Luhan, e em qualquer situação eu os apoiarei - completou com um meio sorriso.
- Obrigado por me deixar ficar aqui... - sussurrei em desculpas.
- Conte para sua mãe quando estiver pronto - ele me disse, se despedindo.
Eu andava perdido, mas poucos se importavam em prestar atenção em um garoto que não tinha noção dos próprios passos. Meus olhos estavam no chão gelado e eu pensava em como o chão era realmente gelado, ou algo do tipo, apenas para evitar pensar no inexorável. Eu batia sem querer em algumas paredes ou pessoas, não prestando atenção em meu caminho e de olhos vidrados.
Meu coração batia forte.
Uma,
Duas,
Três,
Quatro vezes.
Quantas restariam até parar de bater?
Podem achar que eu estava um tanto quanto insensível quanto a situação. A verdade é que eu estava completamente apavorado e bloqueava meus sentimentos mais instintivos de chorar e correr. Eu queria chorar e correr. Realmente, eu não sabia porque não estava chorando e correndo. Eu só andava, meio bobo e sem rumo, sentindo o gelado do chão para não perceber o de meu próprio estômago enjoado.
Se alguém me perguntou o que eu sentia, não me lembro. Formam-se agora só imagens difusas daqueles momentos em que eu só tinha consciência de que não deveria parar para não enlouquecer e começar a gritar. Não creio que alguém o tenha feito. Eu não saberia responder. O que eu sentia? Eu sentia um buraco vazio, aparentemente insensível, mas que ao menor vento poderia me fazer contorcer de dor. Torcia para que a menor brisa de sentimentos não me atingisse.
Eu cheguei a um lugar conhecido e até mesmo aquilo fazia a dor se alastrar. O bolo grosso em minha garganta me forçou a engolir em seco enquanto minhas mãos agiam por si próprias e entravam de levinho dentro da ala de oncologia infantil.
Andei entre os leitos das crianças que tiravam um cochilo da tarde em direção à janela grande no fim daquela sala de aula improvisada. Algumas dormiam serenamente e outras eram embaladas pelos bipes mecânicos de um equipamento hospitalar. Hyunsu tinha tubos enfiados no nariz e respirava com dificuldade. Acariciei sua cabeça calva antes de continuar a andar. Quando cheguei ao meu destino e me sentei delicadamente no chão, as lágrimas já haviam tomado conta e começado a escorrer até meu moletom cinzento.
No fundo, morrer não seria nada. O que eu não poderia suportar era saber que sofreriam por mim, que apesar de poucas, haviam pessoas que sentiriam minha falta. Imaginar as lágrimas de Sehun, de minha mãe ou de Baekhyun a quem eu só queria ver sorrir, me fazia chorar também. Eu não estava pronto para deixá-los.
Deus, será que eu tenho o direito de pedir mais uns anos? Até que minha mãe se acostume, até que Baekhyun se forme, até que Sehun entre na faculdade, até que eu possa pedi-lo em namoro no alto de uma ponte ou então murmurar que o quero para sempre enquanto, abraçados, assistimos a um filme de drama achando que aquilo nunca irá acontecer com a gente. Posso pedir para ficar até que seja necessário pedir para ficar novamente? Ir agora me deixa aquela sensação de que eu poderia ter feito mais. Poderia ter beijado Sehun mais vezes e irritá-lo quando ele acorda. Poderíamos ver um nascer do sol juntos, já que nunca havíamos feito isso. Quem sabe eu poderia ser a pessoa que escandalizaria a sociedade ao aparecer de mãos dadas com ele em sua formatura e brigar com sua mãe por ela não aceitar um filho que não ache que o amor possa ter distinção. Posso pedir pelo menos isso, Deus? Mais um tempo com Sehun?
Porque eu o amo. Amo como nunca cheguei a amar ninguém antes de um jeito que chega a doer. Da forma mais pura e certa que alguém jamais imaginou.
E foram as lembranças com Sehun começarem, em cenas com ecos baixinhos que também começara a dor. Eu me lembrava de como ele parecia alheio as minhas conversas nos primeiros dias e de como sua postura independente parecia implorar incessantemente para ser quebrada. Me lembrava, com a cabeça encostada no vidro, da borboleta amarela, do sutil toque de mãos, dos cabelos dele entre meus dedos. Chacoalhado por soluços baixos que em vão eu tentava prender, eu revivia cada um de nossos beijos que sempre tinham um sabor de último. Aquele passado era o lugar onde eu queria estar.
A voz infantil me arrastou para o presente.
- Tio Lu... - Minki abriu os olhos e desceu de seu leito, se aproximando devagar. Eu acariciei seus cachos negros e o puxei para um abraço um tanto brusco - Você está triste?
- Um pouquinho, meu anjo...
- Meu vovô diz que homens devem ser fortes... Mas, às vezes, quando dói demais, eu choro um pouquinho e parece que tudo vai ficar bem - ele me sorriu, passando os braços magros por meu pescoço - Vai tudo ficar bem, Tio Lu?
- Sim, vai ficar tudo bem...
- E você vai me visitar para sempre?
Eu neguei, sem conseguir verbalizar nada.
- Vai sair do hospital?
Novamente eu me encontrava sem resposta. Era tudo tão vago, doloroso, confuso.
- Tio Lu, você vai para o céu?
- O que disse?
- Mamãe me disse que minha vovó foi para o céu... Quando as dores são demais, ela diz que vovó vai cuidar de mim e que eu não devo ter medo de ir para o céu.
- Talvez eu vou... - sussurrei mortificado.
- Se você for, o pessoal aqui vai ficar com saudade! - ele fez cara de choro e eu apertei seu rosto entre meus dedos - Mas se isso fizer a dor ir embora, Tio Lu, vai ter valido a pena! Então quem você deixou aqui vai poder ficar feliz!
- Você acha isso?
Ele aquiesceu algumas vezes, com um sorriso no rosto.
- Mamãe disse que se eu for para o céu ela vai chorar bastante, mas que no fundo ela vai estar feliz por todo tempo que passou comigo! E no céu eu vou poder andar de bicicleta, então não será tão ruim, não acha?
- Acho que eu iria gostar de poder andar de bicicleta - suspirei, o virando para mim.
- E você vai ter cabelo! - Minki estendeu os dedinhos trêmulos até minha cabeça.
- Ei, você acha que eu fico feio careca assim? - perguntei me fingindo de bravo e atacando o garotinho com cócegas.
- Só um pouquinho... Você fica com cabeça de ovo! - ele se explicou, antes de sair do meu colo e correr para o começo do corredor. Fuçou em algumas caixas de brinquedos velhos e de lá do meio tirou algo, vindo em minha direção - Feche os olhos.
Eu o obedeci. Senti o que ele fazia antes mesmo de vê-lo.
- Assim você está bonito - me disse, se afastando.
Meus dedos apalparam a peruca roxa e chanel que eu usara alguns meses atrás e um sorriso se esboçou antes mesmo que eu abraçasse Minki.
- Acho que roxo me deixa feio - comentei de brincadeira enquanto ele tentava ajeitar a franja de fios de plástico sobre minha testa.
- Seu cabelo natural é mais bonito... Sehun hyung disse que gosta do seu cabelo!
- Ele disse? - arqueei as sobrancelhas.
- Sim, quando ele pediu a máquina de raspar para minha mamãe ele disse que não queria que você tivesse que perder o cabelo. Ele sorria!
- Sério?
- Acho que Sehun Hyung gosta muito de você. Sehun vai para o céu junto com você, Tio Lu?
- Não, ele não vai... Eu vou fazer ele prometer que vai terminar a faculdade. E você também não vai para o céu ainda, meu anjinho! Você tem que crescer e ser muito feliz, entendeu?
- Mas Tio Lu... Às vezes parece ser tão mais fácil só ir para o céu... Se eu for, você me deixa ficar com você?
- Minki, se você um dia for para o céu, eu vou cuidar de você - prometi baixinho, tirando a peruca e segurando suas mãos - Mas eu não quero que vá tão cedo... Você ainda é muito pequeno, mas um dia vai me entender...
- Tio Lu, você está chorando...
Eu enxuguei minhas lágrimas antes que elas caíssem e prendi a respiração com força. Minki esperou pacientemente minha recuperação e se aninhou em mim novamente, roçando os cachos escuros em meu rosto com seu cheiro de bala de morango.
- Minki, o Tio Lu tem que ir agora - o peguei no colo, abraçando-o como se não houvesse nada que me deixasse mais feliz.
- Vai voltar outro dia?
- Vou... Eu prometo - lhe dei um beijo na testa e o deitei em seu leito, ajeitando as cobertas em torno dele - Agora, volte a dormir.
Eu saí em passos suaves. Entrara sem um propósito, vazio, com aquele oco dentro de mim. E agora, eu sabia que dedicaria o resto dos meus curtos dias para alguém.
Meu coração ritmava tranquilo.
Uma,
Duas,
Três,
Quatro vezes.
Ele batia por alguém.
A caminho do meu quarto, pensei em Sehun. Pensei em como seria deixar aqueles olhos de meia lua e aquela boca num róseo pálido que ele vivia acariciando com a língua. Deixá-lo parecia mais doloroso que a própria morte. E eu já estava cansado de tanta dor.
A busca pela felicidade é uma mera ilusão. Felicidade não é algo concreto, algo que você compra, encontra, descobre ou troca e terá pela vida inteira. Ela é feita de pequenos momentos esparsos onde não há nada em seu cérebro além daquele vazio enorme, branco e morno, uma ausência de pensamentos e preocupações libertadora. A felicidade é o ópio daquilo tudo que acumulamos crendo ter uma importância vital, mas que em suma significam apenas uma vida seguindo a normalidade inventada, ideologias que só levam a um monte gigante de nada. Uma pessoa é feliz muitas e muitas vezes, mesmo sem se dar conta disso. Vendo o filme de minha vida, descobri que todos os momentos que me fizeram perder o pensamento e a tarefa enfadonha de ter responsabilidades foram com Sehun.
Eu tinha tempo vago. Quero dizer, realmente muito tempo vago. E eu pensava, pensava com a última mechinha acastanhada do meu cabelo entre os dedos e com um olhar muito pesado na direção de Sehun. Talvez a conclusão que eu tenha chegado não seja tão importante. É mais como um daqueles problemas matemáticos que você entende somente depois que toda a classe consegue resolvê-lo com perfeição. Minha vida era um livro. Possivelmente curto, mas ainda assim, não deixava de ser um livro que estava chegando ao fim. A vida de Sehun também era um livro. Mas, o livro dele não acabaria com o meu fim. As últimas páginas dele não seriam as minhas. Eu era apenas um capítulo cuja importância estava sendo valorizada demais. Perceber aquilo me dava uma estranha sensação de calmaria e, como uma pequena criança que descobre um segredo de vital importância, guardei aquilo comigo. A história dele ainda estava na incógnita e o final só caberia a ele escrever. Sozinho.
Eu entrei de cabeça dentro do quarto e meus olhos se ergueram somente para encontrar os orbes cinzentos de Sehun me olhando. Estaquei no umbral da porta e esperei o abrigo de seus braços, enquanto sua boca beijava a minha sem ser correspondida e seguia para minha orelha.
- Onde você estava? - Sehun me abraçou pelos ombros.
- Eu estava na ala infantil - virei o rosto e andei até minha cama.
- Aconteceu alguma coisa? - Sehun deitou-se ao meu lado e encaixou seu corpo ao meu. Eu, envergonhado, escondi-me no travesseiro - Luhan... - ele me repreendeu.
- Hyunsu está piorando - menti, mas minha voz soou convincente.
Eu senti meu rosto ser acariciado antes de beijos descerem por onde lágrimas já tinham descido. E Sehun me abraçou carinhosamente, suspirando no canto do meu ouvido.
- Está com medo?
- Não - respondi de pronto.
- Então tudo vai ficar bem...
- Dorme comigo?
- Sim... Eu vou ficar com você pra sempre - ele murmurou.
Meu corpo se retesou inteiro e a ideia de um Deus que o me dera para depois tirar-me dele era tão repugnante que toda minha calma se esvaiu e eu era somente uma mascara de decepção e indignação.
- Não - respondi tão baixo que a palavra não fez sentido.
- O quê?
- Eu disse que não, Sehun - ergui meus olhos, desesperado.
- Como assim? - Sehun começou a sorrir, achando se tratar de alguma brincadeira minha.
- Disse que talvez não vamos ficar juntos para sempre.
- Claro que vamos - ele continuava sorrindo incrédulo.
- Sehun, vamos ser realistas! - eu gani e minha voz soou alta - Isso nunca vai acontecer!
E a realidade doía como facadas em meu peito, me sufocando. Eu via aquele rosto com a iminência de perdê-lo e a ideia de fazer Sehun sofrer me parecia tão egoísta e cruel. Nunca deveria ter deixado aquilo continuar quando sabia que nunca daria certo. Não adiantaria dizer que seria para sempre.
Nosso para sempre estava se acabando.
- Me prometa Sehun!
- Prometer o que? - ele soou confuso e eu me agarrei em seu corpo possessivamente.
- Me prometa que se eu for embora, você vai continuar. Me prometa que vai se curar e vai sair desse hospital. Me prometa que vai arranjar alguém que te faça sorrir e que esta pessoa vai ao altar com você. Me prometa que terá um cachorro chamado Athos e um filhinho que vai saber tocar piano. Me prometa Sehun! - eu soluçava, o abraçando cada vez mais possessivamente porque não havia nada mais importante que ele em minha vida.
- L-Luhan?
- Apenas prometa que, se eu for embora, você não vai se apegar a mim, que vai se curar e vai ser feliz!
- Lu...
- Prometa Sehun, ou eu vou pedir para que me troquem de quarto - ameacei, suspirando para que as lágrimas não voltassem a cair. Mas era tarde demais e eu estava irremediavelmente em um pranto que me fazia chacoalhar por inteiro, como uma criança machucada.
- Eu prometo... - ele sussurrou de olhos arregalados, aquela expressão de medo congelada em seu rosto tão belo enquanto me assistia chorar como nunca antes.
Deixei que ele se aproximasse após recuperar uma sanidade que parecia distante de mim, então beijar minha testa, meus olhos, minhas bochechas e cada centímetro por onde eu tinha chorado e por fim meus lábios. Era tudo o que eu precisava naquele momento.
- Sehun, eu...
- Shhh... Você está me assustando... - disse para mim, me beijando para que eu engolisse minhas próprias palavras - Vamos dormir, ok?
- Não me deixe hoje - eu sussurrei, agarrando seus ombros.
- Não vou te deixar, meu pequeno. Tudo vai ficar bem...
Quisera eu poder me despedir da melhor maneira possível. Quisera eu ter conseguido dizer aquelas três palavrinhas, mais uma vez quando ainda havia tempo.
Bem, Sehun, eu te amo.
[Não me ame, dói o suficiente para morrer
Você vai chorar todos os dias
Disse para mim mesmo quando o amor chegava de novo
Que ia ser mais fácil e ia durar
Mas estava enganado. Não para meu amor. Não para mim.]
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