Dia 16 de maio, memórias de Baekhyun.
Luhan não consegue mais escrever.
Sua piora repentina fora simplesmente terrível.
Em uma hora, caminhando pelos jardins. Na outra, preso a uma cama de UTI.
Por incrível que pareça aquele grande filho da puta encara isso como uma visita no parquinho e eu não entendo como aquele sorriso em seu rosto parece tão vivo enquanto todo seu corpo parece cadavérico. Ele me contou como aconteceu e também como Sehun estava lá. Parece se arrepender de ter deixado o garoto ver seu corpo convulsionando e o único momento em que se mostrava tristonho era da dor que causava nos outros.
Luhan amadureceu.
Posso dizer que tudo que a vida poderia fazer para derrubá-lo, ela fez. Lhe deu um pai agressivo, uma mãe pouco instruída, uma adolescência conturbada, a dificuldade na escola e tudo mais que ela pudesse encontrar. Luhan era um cachorro ferido, acuado, raivoso, explosivo que tendia a sorrir lindamente com aqueles que lhe cediam carinho e atenção sem nada pedir em troca. Infelizmente, esses também foram poucos.
Porém, a vida lhe dera Sehun. E acho que o principal motivo de meu impulsivo Luhan não ter se atirado de um precipício na primeira semana de tratamento foi justamente o fato de achar alguém que precisava dele, alguém tão difícil quanto ele um dia fora.
Agora eu via um Luhan diferente, que apesar de tudo, nada tinha de frágil. Ele crescera, aprendera com os próprios erros e se tornou um homem que um dia eu almejo ser. Mesmo sendo cuidado por Sehun, eu sei que no fundo o garoto precisa dele quase que incondicionalmente. Ele precisa se apegar a Luhan para que não caia na própria loucura.
Eu o visito todos os dias agora e ele me pediu para terminar o livro por ele. Estamos todos aguardando uma recuperação milagrosa, mas o corpo de meu melhor amigo definha cada dia mais. É difícil para mim vê-lo perdendo a cor, se tornando meio cinzento, sofrendo com dores de cabeça que arqueiam suas costas e o fazem gritar. Pior que aquilo é ver o quanto ele se esforça para parecer bem após suas crises.
Ontem ele estava acordado durante as visitas, suportando as dores de cabeça com um sorriso meio escroto que ele sempre teve. Sehun jazia como uma estátua ao lado dele e, ao contrário de todas as outras vezes, somente me lançou um olhar zangado quando cheguei. Não saiu do lado dele. Parecia até uma fera protegendo o companheiro ferido e seus olhos frios me perscrutavam enquanto em nenhum momento suas mãos gélidas me facilitavam a aproximação de Luhan. Bastou para mim ficar sentado na poltrona, ouvindo Luhan contar as novidades do hospital com uma alegria na voz sussurrada que fazia meus olhos marejarem. Foi preciso que meu melhor amigo dispensasse o garoto para ter um momento a sós comigo.
“Eu quero que você termine o livro, Baek” - ele dissera, achando o diário da capa azul dentro da fronha e me entregando em seguida - “Mas não conte para Sehun”
Eu disse que ele deveria terminar o livro por si mesmo. Sentia uma raiva quase injusta, como se Luhan já soubesse o que irá acontecer daqui pra frente. Luhan, quem você pensa que é para brincar com todos dessa forma, ahn? Quem te dá o direito de decidir se eu quero terminar esse livro? Quem disse que você pode machucar todos dessa forma e partir?
Quero matá-lo lentamente, fazê-lo perceber que ele não tem o direito de deixar-me sozinho desse jeito. Luhan não entende, mas eu preciso dele. A própria mãe precisa dele. Sehun, mais do que ninguém, precisa dele e eu posso ver isso.
Era possível ver o amor que o garoto tinha para com meu melhor amigo. Era um amor que escorria por poros, lábios e palavras. Os dois pareciam perdidamente apaixonados um pelo outro e era uma história incrivelmente trágica. Sehun sofria, mas era o que mais acreditava na recuperação do meu melhor amigo.
Eu os via interagir com um aperto no coração e um sorriso no rosto. Era impossível não sorrir com Luhan sendo tão bobo e carente quanto era. Por trás de toda aquela fachada birrenta de meu melhor amigo havia uma criança curiosa e atenciosa que se expressava somente com aquele garoto de expressão vazia. Luhan agia como um gatinho manhoso, sempre buscando beijos, carinhos e toques, mantendo Sehun a tira colo como um travesseiro humano. Seus sorrisos de olhos e bochechas eram para o mais novo, assim como o brilho em suas íris escuras.
Por sua vez, Sehun parecia adquirir sentimentos bons apenas na presença de Luhan. Ele sorria protetor, garantia a todo momento o máximo de conforto para o chinês e o ouvia com o máximo de atenção, bebendo cada uma de suas palavras, o tocando como quem toca uma raridade extremamente frágil e o protegendo de um mundo frio e estranho.
Muitas vezes alheios a minha presença, ambos viviam em seu mundinho particular entre suspiros e olhares.
Acho que entendo um pouco porque Luhan gostava tanto de escrever. Despejo aqui toda e qualquer emoção presa dentro de mim e a maioria é muito ruim. Tristeza, raiva, injustiça. E também é uma ótima maneira de guardar boas recordações - mesmo que o livro não seja de todo meu.
Então, seria um ótimo momento para uma memória, talvez uma lembrança que não me pertença completamente, mas que quero guardá-la.
Há um ou dois dias, Luhan me pediu um favor. Era um tanto quanto estranho, mas eu aceitei.
Eu lhe trouxe o combinado, em uma hora que Sehun também não estava montando guarda ao seu lado, incansável.
- Eu não entendi o motivo disso - falei, arqueando a sobrancelha.
- Não é para você entender - Luhan me cortou, e com dificuldade, se pôs sentado - Onde está Sehun?
- Já deve vir. Aquele moleque sente o meu cheiro de longe e vem te proteger - zombei.
Luhan deu um meio sorriso e passou os dedos pela cabeça calva, onde fios meio escuros começavam a nascer.
Sehun não demorou a chegar, me lançando um olhar antipático. Trazia uma maçã lustrosa na mão direita. Beijou Luhan nos lábios, então na testa e ambos se provocaram contidamente em minha presença. Eles trocaram sussurros com os rostos colados e Sehun revirou os olhos, chamando meu amigo de idiota, antes de enfiar as pernas debaixo das cobertas do leito e se ajeitar em frente a Luhan.
- Toma aí, come - ele deu uma mordida na maçã e a deu para o outro - Não está envenenada - seu sorriso explicitava segredos que eu não conhecia.
- Obrigado... Baek-ah, quer?
- Não - eu neguei com um sorriso.
- Sehun, eu trouxe uma coisa...
- Han?
Luhan remexeu-se nos cobertores e tirou de trás do travesseiro uma caixa comprida.
- Dominó?!
Ele apenas sorriu e deu a caixa para Sehun.
Lá dentro, substituindo duas peças, estavam um par de alianças prateadas.
- Lu, o que é isso?
- Surpresa - ele sussurrou baixinho, com a voz fraca.
Os olhos de Sehun estavam marejados e ele fungou discretamente antes de dar um lindo sorriso para um Luhan que também sorria e colocar a aliança no dedo dele. Luhan tomou a mão do namorado entre os dedos e pousou um beijo suave em sua palma, logo abaixo do anel prateado reluzente. Eu os deixei a sós.
Meio sorrindo e meio chorando, os dois passaram o resto do dia jogando dominó.
Dia 20 de maio, memórias de Baekhyun.
Pedi que Luhan me explicasse a história das alianças que ele nunca teria dinheiro para pagar. Sehun, por favor, pule está parte. Ou se quiser, não pule.
Luhan estava em uma consulta com o Dr. Do. Agora, suas consultas visavam o alívio de sua dor, já que tudo dependia de um milagre para que seu corpo voltasse a ficar bom. E, o médico lhe deu o par de alianças, dizendo que declarasse seu amor para com Sehun o quanto antes.
“- Mas doutor, eu vou morrer...” - Luhan dissera.
“- Mas o seu amor não vai...”
Acho que eu o compreendo. Dizem que são as pessoas com as melhores memórias que são felizes, por poderem se recordar de todos os momentos bons. Eu discordo. As pessoas mais felizes são aquelas que não precisam viver de recordação, que fazem de cada dia um momento memorável e eterno em si mesmo. Que transformam simples coisas em um mar de sentimentos. Porque as pessoas vêm e vão, mas os sentimentos são cicatrizes na alma, infinitos.
Luhan é a pessoa mais incrível que já conheci.
Posso dizer isso com toda certeza do mundo, porque ele parece incrivelmente conformado e até sorridente. Ele nos faz felizes em nossa tristeza. Conta piadas em momentos completamente inoportunos. Faz jogos e parece não temer a doença que o consome. Quando acordado, irradia uma alegria primaveril que parece ter a cor de um jardim alegre.
É quando ele dorme que nos permitimos sentir sua falta antecipadamente, mesmo com a pequena chance de sua melhora. Posso ver a dor nos olhos de Sehun quando Luhan adormece em seu colo, os olhos mansos, a expressão vazia, uma respiração baixinha que nos força a ficar apreensivos.
Então ele acorda meio abobado, olha em volta como se tentasse reconhecer o ambiente e sorri. Ligado a aparelhos que o mantém vivo, sentindo dores angustiantes, atado a uma cama, Luhan sorri.
Preciso dizer mais alguma coisa?
Ele me faz ler periodicamente o que escrevi, então muitas vezes tenho que dizer que esqueci o tal do diário azul. Parece que coloquei demais de mim nesses relatos e quando os leio para meu melhor amigo, ele sempre faz alguma observação. Além do mais, Luhan escreve infinitamente melhor do que eu, injetando sentimento em cada palavra e frase, dando vida às histórias. Eu sou apenas um humilde substituto.
Às vezes, me pede para ler as partes que ele próprio escreveu. Vive o passado por meio de lembranças, sempre com um sorriso meio nostálgico. Gosta de comentar momentos, revivê-los, poli-los, trazê-los a tona mais uma vez. E, ainda assim, gosta do presente tanto quanto gosta do passado. O futuro não é discutido.
Hoje ele dispensou Sehun e me forçou a escrever o que ele queria. Disse que iria ditar. Eu o fitei incrédulo, mas Luhan tomou fôlego e começou a narrar lenta e pausadamente, me lançando alguns olhares fatais enquanto eu tentava anotar tudo num pedacinho em branco da sua prancheta de informações.
Aqui vai:
“Vamos falar sobre milagres.
Eu acredito em milagres e que eles acontecem o tempo todo.
Acredito que amanhã, se eu acordar, vai ter um sol brilhando lá fora. Nuvens de algodão. Sehun. Meu Sehun.
Acredito que Baekhyun-ah vai estar aqui falando igual uma maritaca.” (Me interrompo para dizer que bati nele) “E que mamãe vai trazer algum bolo para meus eternos convidados.
Sehun, eu quero te dizer que você é meu maior milagre.
Enquanto estou nessa cama, eu não tenho mais medo de morrer. Acho que me acostumei com a ideia de que uma hora isso iria acontecer. Não seria para sempre. Eu tinha pouco tempo.
Você que está fazendo esses torturantes segundos valerem a pena. Seus abraços, seus beijos, mesmo que Baekhyun sempre esteja aqui atrapalhando o clima eu prometo que compensarei depois e seus toques. Você que faz o dia brilhar mais e as noites parecerem menos frias e com cheiro de álcool.
E é você que tira toda minha tristeza quando me olha, mesmo eu podendo ver que você está preocupado. Não fique. Eu acredito em milagres.
E se eu não acordar...
Obrigado por me fazer feliz, Sehun.”
Dia 25 de maio, memórias de Baekhyun.
Luhan está piorando.
Sua pele já está num tom meio cinzento e ele tem dores de cabeça tão forte que se elas não o desmaiam, a morfina o faz.
A mãe dele chora o tempo inteiro e eu não sei o que fazer para consolá-la porque eu também me sinto devastado. Depois de Chanyeol, Luhan é a pessoa mais importante em minha vida e perdê-lo pouco a pouco parece uma injustiça para mim.
Ele agora parece delirante. Quando fica acordado, pouco vê ou pouco fala. Sua cabeça parece fora de órbita e ele viaja em outras dimensões antes de, em um estalo, voltar para a realidade com o mesmo sorriso de sempre. Sehun é o único que parece despertá-lo para o real e também o que mais compreende os devaneios entorpecidos de Luhan. Cheguei a ver até eles conversando calmamente enquanto Luhan não tinha nenhuma concentração.
Acho que Sehun é o único que consegue compreendê-lo de corpo e alma. Ambos partilham uma ligação muito forte que eu acredito que vá além do físico ou emocional. Gosto de vê-los interagindo e agora nem a minha proximidade causa distração no garoto leucêmico. Ele está completamente entregue a dar atenção para meu melhor amigo e, se perde alguns minutos me olhando, é porque vai me mandar fazer alguma coisa em benefício de Luhan. Já se acostumou com a ideia de que terá que me aturar daqui pra frente, inclusive se - e esse se parece muito distante - Luhan melhorar. Com estranhos é outra coisa, pois Sehun parece nutrir uma sincera aversão a todos os de jalecos brancos. Nem eu mesmo confio neles. Acredito que trabalhar com pessoas fadadas a morrer aniquila qualquer sensibilidade de alguém e acrescento ainda que Luhan não deveria ser tratado como mais um.
Está sendo cada vez mais difícil deixá-lo no final do dia, porque o único que tem o direito de ficar lá durante a noite é Sehun. Eu às vezes me pergunto o que o Doutor acha daquela estranha relação dos dois. Ele parece não ligar. Chega, pede licença ao outro somente se necessário, e toca Luhan sempre sob a supervisão do garoto. Parece até mesmo que está atendendo dois pacientes. Dois gêmeos siameses.
Sehun também está bem pálido e isso me assusta. Sua força é tanta que às vezes nos faz esquecer de que ele também está tão doente quanto meu melhor amigo. Tenho medo de que esse esforço o faça sucumbir para a leucemia. É incrível, porém Luhan, apesar de quase inconsciente, conseguiu perceber essa mudança. Conseguiu ver a palidez, a lentidão dos movimentos, a fraqueza. Ele, entretanto, não diz nada. Pediu somente a mim que fizesse Sehun desistir dele se isso fosse o salvar.
- Não quero Sehun vindo aqui... - me disse, de olhos fechados e a voz num sussurro apático - Ele está ficando verde...
- Talvez ele seja o Piccolo - brinquei, tentando descontrair.
- Estou falando sério, Baek... Eu não suportaria vê-lo doente... - ele segurou em minha mão - Eu o amo.
E eu percebia. Estava claro como água que Luhan nunca havia amado ninguém como ele amava Sehun.
- Eu vou falar com ele - me levantei, indo interceptar o garoto na porta.
O encontrei na porta, com olheiras profundas e um olhar que sequer inspirava a conversa. Ele passou por mim e sibilou.
- Eu não vou embora. Eu o amo.
Dia 3 de junho, memórias de Baekhyun.
Luhan entrou em um sono profundo, induzido por medicamentos que aliviarão as dores que ele sente. O médico nos disse que é um momento decisivo. Cabe a ele agora acordar de vez ou se deixar dormir.
Acho que Luhan tem muito a considerar, por isso o tempo que está demorando para alguma melhora sua. Sempre julguei que pessoas em coma estão repensando suas vidas, decidindo se querem ficar com toda a dor do mundo ou ir para um lugar completamente branco tocar harpas. Será que adiantará dizer para Luhan que eu quero que ele fique? Que Sehun precisa dele?
Não posso descrever nossa angústia ao vê-lo deitado, ligado a tubos, cercados de bipes enquanto esperamos uma resposta se ele viverá ou não. É torturante permanecer ao lado de um Luhan imóvel, com a respiração serena e os olhos fechados, quando nossa maior vontade é chacoalhá-lo pelos ombros e o trazer de volta para nós.
A espera torna-se mais e mais longa, os segundos parecem nunca findar e qualquer mínimo movimento dele atiça nossa curiosidade. Ficamos apenas em silêncio, sem nos mover porque a vontade de fazer isso é mínima, fazendo apenas nossas necessidades básicas de humanos. Já é a terceira semana seguida que não frequento as aulas da faculdade e a mãe de Luhan não vai para casa há um mês. Sehun... Bem, Sehun é outro caso.
Oh Sehun agora é uma estátua ao seu lado, não fala, se recusa a comer ou beber água e muitas vezes os médicos têm de vir atendê-lo, pois ele está cada vez pior. Muitas vezes desmaia e é negligente com o próprio tratamento. Não aceita que o façam deixar Luhan e até mesmo enquanto é medicado, permanece ao lado do meu melhor amigo como uma sombra em cores - mesmo que as cores do rosto de Sehun estejam cada vez mais escassas.
Ele chora silenciosamente quando a dor se torna muito e eu nada faço. Fico o observando se aproximar do leito do chinês e pentear seus fios espetados quase tão curtinhos que somente formam uma penugem preta no alto de sua cabeça. Então, acaricia o rosto de Luhan com a pontinha dos dedos e toca os lábios do meu melhor amigo. Depois, esconde o rosto e dele só podemos ouvir os soluços.
Luhan, você está fazendo falta. Posso dizer que para todos nós, mas nenhum se compara a Sehun. Se ouvisse os soluços dele quando ele começa a chorar em seu peito, se visse a maneira devota e carinhosa como ele te toca, se pudesse enxergar seu olhar beirando o abandono e o desespero, você não o deixaria tanto tempo esperando.
Lu, se você tivesse uma ínfima noção do quanto esse garoto te ama, ainda não seria nada comparado ao que ele sente.
Eu desejo que você viva esse amor, Luhan. Porque eu tenho certeza que Sehun irá acordar todos os dias alguns minutos mais cedo só para te ver dormindo e ir dormir alguns minutos mais tarde só para ouvir sua respiração suave e seus suspiros preguiçosos. Ele é quem irá te cobrir no frio, te tirar do meio das cobertas no calor, te embalar nas noites sem sono. E ele também fará qualquer coisa para te ver feliz, pois está estampado nos olhos dele o tamanho desse amor. Não deixe isso passar, Luhan, eu te imploro.
Por favor, volte logo.
Dia 7 de junho, memórias de Baekhyun.
Luhan teve um momento consciente hoje. Como uma flor que desabrocha, ou um floco de neve que cai, ficamos todos a sua volta esperando algo mágico acontecer, com uma sensação de que tudo daria certo no peito.
Foram alguns minutos, em que ele abriu os olhos meio abobado e lançou um sorriso débil a cada um de nós. Sehun ajoelhou-se ao seu lado, lhe tomando as mãos e perguntando por ele em um misto de desespero e alívio.
- O-Oi - murmurou, a voz rouca por falta de uso - Oi, Sehunnie. Oi, mãe. Oi, Baek-ah.
- Oi - Sehun foi o único que encontrou a resposta e ele chorava com um sorriso no rosto - Oi, Lu...
Luhan o fitou e mesmo entorpecido, havia amor em suas íris. Uma pequenina lágrima se formou no canto de seus olhos desfoques e escorreu por seu rosto pálido, indo se alojar no colchão em que estava deitado. Fungou baixinho, ainda sem desviar-se do garoto, e repetiu.
- Oi, Sehunnie...
Sehun acariciou seu rosto com a ponta dos dedos, como sempre fizera quando ele estava adormecido, e beijou sua testa com um carinho puro e delicado. O silêncio era quase absoluto enquanto eles se fitavam. Luhan tinha lágrimas escorrendo incessantemente pelo rosto.
Seus dedos se entrelaçaram aos de Sehun e ele brincou com o pingente de meia lua, rodando-o entre os dedos. Então, seus olhos se voltaram para o garoto e ele esboçou um meio sorriso travesso, criando dobrinhas adoráveis no canto de seus cílios e salientando bochechas que ele ainda tinha apesar de toda magreza.
Depois fechou os olhos e adormeceu.
Dia 8 de junho, memórias de Baekhyun.
Luhan não conseguiu terminar seu livro.
Me ligaram hoje de manhã e eu recebi a notícia.
Estava me preparando para esse momento desde que seu corpo já não reagia mais ao tratamento, mas nunca pensei que pudesse haver essa dor tão repentina e corrosiva.
Incrivelmente, me permito chorar só agora depois do enterro, porque acho que Luhan precisava de mim forte até o último momento. Há um oco dentro de mim e tudo que eu quero fazer é poder fechar os olhos e nunca mais acordar. Foi exatamente desse jeito que me senti quando perdi Chanyeol e a ferida quase cicatrizada está sangrando novamente. Acho que Sehun é meu único propósito para continuar vivo, porque aquele garoto precisará de mim.
Sehun não suportou saber que Luhan havia falecido e foi a mãe do meu pequeno anjo chinês que contou para ele.
Foi horrível.
Eu vi seu olhar incrédulo antes de ele cair de joelhos no chão e começar a gritar histérico, com as mãos na cabeça e uma expressão desolada. Os enfermeiros demoraram a contê-lo na cama e sedá-lo porque eu podia ver que seu corpo frágil lutava para se livrar daquele aperto de mãos e braços e se debatia com toda sua força para ver Luhan. Quando o garoto finalmente dormiu, eu fui ver meu amigo.
Ele dormia.
Ou pelo menos, eu me forçava a acreditar que dormia.
Seu rosto estava sereno naquela mesa fria e apesar de todas as coisas impostas pela doença, Luhan ainda conservava uma beleza pueril e encantadora. Os lábios meio arroxeados estavam entreabertos e eu quis, por um momento, sentir sua respiração. A mãe de meu amigo apareceu ao meu lado antes que eu começasse a chorar. Me dói saber que nunca mais ouvirei sua voz ou verei seu sorriso meio torto. Eu o queria de volta.
Luhan sempre disse que a dor é descritiva, por isso ela é fácil de superar. Mas como superar um vazio que tem nome, rosto, forma, cheiro? Como preencher uma pessoa que perdeu outra? Como simplesmente fingir que uma parte importante de você foi embora, deixando para trás uma tonelada de trejeitos que eram fundamentais para sua vida? Não, não é como perder um braço; não é como perder uma perna; é como perder tudo. É como perder seu rumo e estar no meio de um deserto frio. A única diferença é que você não quer ser resgatado daquilo. Você quer sentir aquela dor.
Sehun acordou horas mais tarde, enquanto eu estava em seu quarto. Seus olhos inchados e vermelhos me faziam perguntar se ele tinha chorado dormindo e talvez seus pesadelos fossem quase tão ruins quanto à realidade. Havia um ar de trégua entre nós e ele parecia perdido, assustado. Sozinho.
- É verdade? - ele me perguntou com a voz manhosa e eu jurei que nunca queria ter que dizer sim a alguém naquela situação.
Eu sabia como Sehun se sentia. Era um vazio no estômago, uma dor lancinante no peito que te faz ter vontade de arrancá-lo com as unhas e o pior é a sensação de ter que continuar. Você nunca quer continuar nessas horas. Então ele me deixou sentar em sua cama, abraçá-lo e ouvi-lo chorar em meu ombro, pois aquilo fora o que Luhan fizera comigo quando eu precisei.
- Posso ver ele?
- Pode - eu sussurrei.
Não haveria como privá-lo daquilo e seria até injusto se eu o fizesse. Sehun procrastinava os passos para o necrotério, andando como se não soubesse aonde ia e foram várias as vezes que precisei apoiá-lo pelos ombros. Tanto por mim quanto por ele, nos entregaríamos a um sono profundo para não ter que sentir aquela dor. Ele se arrastava e trombava nas paredes, meio entorpecido pela tristeza.
Sehun entrou naquela sala fria e o único corpo ali era o de Luhan, coberto por um lençol branco, aguardando seu enterro. Eu aguardei na beirada da porta, o deixando ter um momento particular sem me distanciar muito. Seus passos vacilaram e ele desabou em frente à maca, soluçando como uma criança perdida e chamando pelo meu melhor amigo em uma voz que beirava a angústia e o desespero. Não me aproximei.
- Isso não pode estar acontecendo - ele murmurava entre ganidos feridos.
Luhan sempre me dissera que Sehun suportava o pior da vida nos ombros sem se abalar, mas naquele momento eu o via desmoronar em si mesmo, relembrando que era apenas um garoto de quinze anos que não deveria estar naquela situação.
Ele passou quase meia hora apenas chorando em frente ao corpo de Luhan, até que uma hora as forças esvaíram de seu corpo, anestesiando sua mente com um leve torpor. Se levantou com dificuldade e descobriu meu melhor amigo, acariciando seu rosto como se ele fosse a coisa mais importante de sua vida. Todo o amor que aquele menino expressava era ao mesmo tempo doloroso e um alívio para mim. Eu assistia em silêncio enquanto Sehun de olhos inchados sussurrava coisas inteligíveis para Luhan, com as mãos tocando de modo gentil a pele gelada, as lágrimas quentes pingando sobre ela e fazendo um barulho alto ao se chocarem com a mesa de metal. Sehun lhe beijou os lábios e então a testa, tomando o corpo quebradiço entre os braços com adoração.
Eu saí e, encostado na porta, fiquei ouvindo-o soluçar até que a exaustão o vencesse e eu tivesse que acordá-lo do chão do necrotério.
- Obrigado por me deixar vir aqui - ele sussurrou, se soltando de meus ombros.
- Não foi nada... - disse de volta.
- Será que eu posso ficar com isso? - o garoto me exibiu uma correntinha dourada, a mesma que ficava pendurada no pulso de Luhan.
- Claro que pode...
- Eu deveria ter sido melhor para ele - Sehun agarrou os próprios cabelos curtíssimos no alto de sua cabeça.
- Você foi tudo que ele precisou. Isso já me deixa eternamente agradecido.
- Eu o amava.
- Tenho certeza que Luhan sabia disso. E que ele te amava também.
O enterro não foi menos doloroso. Eu escolhi as roupas de Luhan porque sua mãe não suportava entrar no quarto e foi difícil para mim fazê-lo. Deixei que o vestissem com uma camiseta azul turquesa e um jeans meio largo no mesmo tom, porém ver outras pessoas tocando-o parecia quase pecaminoso, violando o corpo de meu amigo sem que ele tivesse o direito de se defender. Ele não gostaria.
O dia estava ironicamente lindo e o céu azul parecia zombar das poucas pessoas em torno do caixão de um garoto de dezenove anos, quase vinte. Uma brisa suave, a mesma que invadia meu terno escuro, balançava as folhas das árvores e rodopiava a terra do chão. O velório se passou numa pequena capela, completamente silencioso e pesado. Ninguém ousou falar uma palavra sequer, porque isso seria admitir que era uma despedida. Ninguém queria se despedir.
Sehun chegou em um carro que valeria mais que meu pequeno apartamento perto da universidade. Vestia um terno que parecia amarrotado, com a mão do pai no ombro enquanto a mãe de óculos escuros segurava-lhe a destra. Seus olhos estavam inchados demais e sua expressão, cansada. Estava mais próximo de desistir de tudo do que eu um dia estivera. Não trocou olhares ou palavras com ninguém e dispensou a presença dos pais assim que chegou perto de um Luhan adormecido para sempre. Havia uma correntinha dourada em seu pulso.
A mãe do meu melhor amigo o cumprimentou e o abraçou forte. Eu tentei chegar até ele para dizer algo, mas minhas pernas evitavam o esforço da locomoção. Não queria dizer nada. Nada iria fazer mudar.
E passamos longas horas somente sentados em um silêncio profundo que disseminava provocações e dúvidas em todos nós. Acho que nenhum de nós estava realmente presente ali. Eu os via a todos, com os olhos foscos, o corpo entorpecido, vivendo em um passado não tão distante onde Luhan ainda estava conosco. Sehun sentara-se num canto e apertava as mãos. Quando voltava para o presente, chorava e soltava suspiros que ocultavam gritos penosos que ele tinha vergonha de gritar.
As horas passaram.
Ninguém queria ir embora.
Levaram o corpo dele.
Luhan parecia frágil, sacolejando devagarinho com o rosto sereno e gélido. Nós o seguíamos em um silêncio pesado. Nossos passos pareciam pesar toneladas. Era difícil.
Eu fechei os olhos durante o enterro.
E naqueles poucos minutos em que o silêncio reinava, as lembranças gritavam.
Quando os abri, Luhan já havia sumido.
Eu vi Sehun entrar no carro acompanhado da mãe, seu rosto inexpressivo, seus olhos mortos. Todo o encanto que meu amigo dera àquele garoto fora tirado dele impiedosamente. Fui o último a voltar, como se deixar aquele montinho fofo de terra fosse errado. Então, escrevi.
Queria fazer um final digno para esse livro de memórias, mas será que adeus é uma boa maneira de terminar um sofrimento que nunca terá final?
Será que um adeus vai encerrar toda essa dor que todos estamos sentindo? E como será o amanhã, sem Luhan?
É horrível saber que o mundo vai continuar como se nada houvesse acontecido e seremos forçados a continuar com ele, insensíveis a esse vazio que se formou em todos nós, ainda maior em mim.
Mas Sehun, esse livro é para você. Te entregá-lo agora somente te machucará e Luhan não iria querer isso. Nesse momento eu espero que possa me deixar ajudá-lo, pois eu sei exatamente como é.
Luhan já te contou do acidente? Creio que ele teria me dito se houvesse.
Eu perdi a pessoa mais importante em minha vida, há exatos três anos, oito meses e vinte e seis dias.
O nome dele era Chanyeol e eu o considerava meu melhor amigo junto de Luhan. Me deixe falar sobre ele ou sinto que vou ficar louco. Eu me apaixonei por ele em um dia que inventamos de invadir um orfanato para atormentar as freiras. Roubávamos comida da dispensa quando um garotinho apareceu, com os olhos esbugalhados e a boca meio aberta, prestes a chorar. Chanyeol sorriu e, sem nenhuma brincadeira, ele tinha um sorriso muito escroto, e pegou o menininho no colo. Naquele momento eu vi todo o carinho que um rapaz delinquente ocultava, com aquele sorriso tosco na cara e um menininho assustado no colo, conversando com ele como um igual.
Porém éramos adolescentes que só queriam saber de se divertir. Naquela noite não foi diferente. Compramos três caixas de cervejas, pegamos o carro de meu tio-avô e resolvemos sair em disparada. Chanyeol dirigia com apenas meia atenção na pista. Ou talvez nenhuma. Eu estava ao seu lado no banco do carona, o tronco para fora da janela gritando obscenidades bêbadas. Luhan estava atrás, com os pés jogados para cima e rindo alegremente. Em uma hora, o mundo era cores, sons, cheiros e girava a nossa volta. No outro, era apenas sangue e metal retorcido.
Chanyeol tinha morrido. E eu o amava, Sehun. Amava-o com tanta intensidade que não me imaginava sem ele. Eu sei como se sente.
Sehun, irão haver momentos de dor. Muitos, a maior parte do tempo. Uma dor que te fará enlouquecer e querer arrancar o próprio coração na esperança de aplacá-la. Eu entendo esse vazio corrosivo que está dentro de você, tirando todo o sentido do mundo. No entanto, talvez daqui algumas semanas, meses ou até anos, você vai sentir que não dói tanto. Talvez você consiga sentir aquele morno no peito, algumas lágrimas nos olhos, um sorriso no rosto e uma lembrança boa. São elas que irão fazer essa dor diminuir.
Desejei para Luhan o mesmo amor lindo e puro que eu tinha para com Chanyeol. E você, Sehun, lhe deu esse amor que nada no mundo pode se comparar.
Você o fez feliz em todo e cada segundo que ficou com ele. Você o amou como um rapaz carente que era, como merecia ser amado. Saiba que Luhan também te amou como nunca amou ninguém. Eu podia ver em seus olhos brilhantes, em seus gestos sutis, em suas palavras. Sinto muito por ter durado tão pouco tempo.
Nossa vida deve continuar seguindo apesar da dor e do pesar. Em meio a nossa tristeza, poderemos lembrar-nos de nosso Luhan e eu creio que um sorriso irá nascer. Porque nós todos sentiremos sua falta. Luhan nos deixa agora, levando consigo um pouco de cada um de nós. Mas me gratifica saber que todos também temos um pouco dele.
E embora seja o final do livro, nunca será uma despedida.
Então, até mais, Luhan.
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