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História Ondas de Serpentina - Um conto a ser ouvido. - Canção da Volta


Escrita por: Sielg

Capítulo 6 - Canção da Volta


Para aqueles que não acreditam em deuses pagãos, aqui vai um relato interessante, ou melhor, o término de um ciclo da fase infantil, onde tudo é doce e se vê através de um filtro rosa, e o início da fase adulta, onde se conhece a verdadeira essência humana. 

Não é mesmo Kahli?

Os deuses da terra tornaram-se divindades corrompidas, tanto que os teus próprios filhos abdicaram sua devoção. Agora, a terra é desgraçada pelos seus viventes e toda sua abundância foi leiloada como a esperança dos que ainda não partiram. O mar ainda é a terra de todos, jamais trairá os que se abrigam nele, mas matará por afogamento aqueles que tentarem se apossar das suas profundezas e não souberem nadar.”

Três anos se passaram e alguém foi demasiado teimoso para se deixar levar pela morte. A água salgada e misteriosa daquele maldito oceano não deixaria um corpo tão frágil morrer após se entregar de peito aberto ao desconhecido. O corpo que agora estava praticamente desnutrido e completamente ferido de uma mulher se encontra boiando próximo ao Naufrágio. 

Com um pesado suspiro, quem parecia estar morto despertou. Seu longo cabelo castanho estava flutuando na altura de seu corpo, dessa vez suas ondulações estavam tão ressecadas e quebradiças que os fios estavam grudados uns nos outros. Era impossível abrir seu olho esquerdo, ele estava tão inchado que apenas a brisa que batia em seu rosto fazia com que parecesse que estava sendo apedrejada na face. Tudo o que restou no corpo foram grandes cicatrizes e vulnerabilidade.

O corpo é levado pela correnteza até a cabeça bater em um pedaço de madeira grande que estava vacilante na água. Ela faz um esforço e consegue se jogar em cima da madeira, sua fragilidade momentânea impediu que ela fizesse qualquer coisa além de desmaiar.

***

Com o toque de alguns fios de cabelo solto no rosto, Margot é acordada. Uma mulher de altura inumana, negra, com olhos acinzentados e cabelos escuros trançados e que possuía símbolos por todo corpo estava curvada, olhando fixamente para ela.

Imobilizada pela dor e incapaz de fugir, a única coisa que podia fazer era encarar aquela grande mulher de volta. Ela era muito bela, porém seu corpo não parecia a pele de um ser humano, se a observasse atentamente, nada lembrava uma pessoa.

Seus grandes lábios tentavam esconder algo que pareciam ser presas, mas não conseguiam, pois se notavam dois pequenos dentes tentando escapar. Mãos que cobririam facilmente a cabeça de um homem adulto e tinham grandes unhas tocaram o rosto queimado pelo sol e sal da água do mar da jovem garota. 

Tudo aquilo junto daria uma espécie de ser estranhamente belo e assustador, contudo a única coisa que a fazia temer aquilo era o fato de não parecer uma pessoa. E num distrair, ao olhar novamente o ser, notava-se que ele estava sorrindo, com belas presas brancas, que deixaram de ser  temíveis ao perceber a expressão de felicidade da mulher.

Ela se ajoelhou na tábua de madeira que estavam e apoiou a cabeça de Margot em suas pernas.

_ Me chamo Y-jara _ A grande mulher disse pronunciando seu nome corretamente, com uma voz baixa e esforçada, olhando-a como se fosse apenas uma criança, sua voz era grave e percebia-se que também era aveludada.

Algumas caudas escamosas e coloridas começaram a aparecer em torno da tábua, Margot entra em desespero e mesmo fraca tenta se mover. Ninguém gostaria de virar comida de sereia, ela nunca viu uma de perto, mas de acordo com as lendas, elas eram seres monstruosos e horrendos. Para alguém que acabara de voltar para superfície, morrer não estava nos planos.   

Y-jara vê o seu medo e a segura pelo rosto transmitindo sua calmaria.

_ O mar não irá te ferir. _  Ela diz isso mostrando certeza. _ Estão apenas nos protegendo.

A garota tenta falar algo em resposta, mas sua boca se corta e tudo o que sai dela é apenas um amontoado de grunhidos e sangue.

_ Não se acostumou com os… dentes _  Y-jara hesita em falar e sua voz sai falhando.

Ela leva um de seus dedos até seu dente e percebe a semelhança entre “I jara¹” e ela. Parando para pensar, seu corpo havia mudado bruscamente. Além de ela já está adulta e ter se desenvolvido mais, havia outra coisa e ela sentia isso.

_ Precisa falar ou nunca irá se acostumar. _ Y-jara diz.

Ela tenta pronunciar seu nome, mas ao dizer a primeira sílaba uma voz triste começa a cantar, sua origem era um pequeno barco no meio das calmas águas de Tristanas. 

_ A canção da volta… _ A bela mulher disse com o rosto entristecido.

_ Mãe… _ Uma sereia aparece se apoiando na tábua ao lado de Y-jara. Ela era loira com heterocromia nos olhos, um verde e outro castanho, possuía sardas e era branca, mas se movia de uma forma muito peculiar, como se ainda estivesse dentro d’água.

Margot se espanta com a beleza daquele ser, ela era mais bela que nas lendas de pescadores de bar.

_ Precisam respondê-la, o marido dela era um homem muito cruel, sua alma não está em paz. _ Ela fala para a sereia.

Após a ordem, todas as sereias que estavam ao seu redor cantaram uma melodia mórbida que não deixava de ser bonita. 

Na mesma hora a moça que já estava triste desabou em lágrimas. Tudo aconteceu rapidamente sob os olhos de Margot. A madeira começara a ser empurrada subitamente e a garota se assusta, se inicia um tipo de viagem que dura em torno de nove horas até a Lagoa Usura, que é rodeada por uma cadeia de montanhas e florestas. Margot já não estava aguentando mais, sua energia estava se esgotando e sua fome aumentando, parecia que seu estômago estava devorando seu interior para ela não desacordar.

A mulher extremamente alta se levanta mostrando suas belas tranças que estavam decoradas por conchas, pega o corpo aparentemente morto de Margot e fica a beira da lagoa com ela em seus braços, assim ela adentra a floresta densa e úmida que ali estava, levando o corpo recém-nascido de sua nova filha para ser testemunhado pelo velho cacique.

Y-jara era alta o suficiente para alcançar a copa das árvores de pé, suas passadas eram longas, logo o tempo gasto com o caminho foi dividido em dois. Ela tira alguns galhos espinhosos da frente do caminho e se depara com duas árvores torcidas que se uniam feito um arco.

_ Chegamos. _ Com um semblante tranquilo ela murmura.

Atrás do arco havia uma pequena trilha e após cruzar esta, finalmente chegam em pequenas ocas feitas de folhagens e algumas casas de barro muito humildes que eram enfeitadas por penas ou apanhadores de sonho. Uma grande fogueira estava acesa e em torno que eram encontradas as moradias, havia uma boa quantidade de pessoas se aquecendo, tanto crianças quanto adultos. 

O que estava diante de seus olhos podia ser reconhecido como uma das tribos selvagens que eram escritas nos mapas de Serpentina. As características físicas deles eram: Homens tinham cabelos cinzas, grandes e completamente trançados. As mulheres não podiam trançar seus cabelos, eles eram longos e cacheados, no mesmo tom dos homens. Todos andavam semi-nus com o corpo geralmente coberto por tinturas ou algo como tatuagens, o máximo que poderia chegar perto de roupas eram as peles e penas de animais e folhagens. E não podemos esquecer do mais importante: Todos eles estavam mascarados. As máscaras eram feitas de madeiras e eram únicas, cada um tinha a sua. As crianças só eram um pouco diferente dos adultos, pois conforme a sua idade o cabelo ficava mais claro ou acinzentado, ou seja, quanto mais novo, mais branco era.

Apenas a presença de Y-jara fez com que o cacique logo saísse de sua tenda. Ela dá alguns passos a frente e o velho ancião se curva para cumprimentá-la.

_ Cuide dela para mim, preciso que ela fique bem dentro de um mês.

O cacique sorriu e recebeu um sorriso de volta da mulher. Ele chama alguns homens para carregar Margot até uma tenda mais confortável, faz um símbolo na testa dela e manda eles levarem-na.

_ Dessa vez a senhora escolheu uma bela menina, será que ela sobreviverá? _ O cacique indaga.

_ Nem o pesadelo mais tenebroso abalará minha criança. _ Ela sorri esperançosa e continua _ Aproveite que ela está faminta, vai gostar da sua hospitalidade.

O povo que estava na fogueira reverência ela e em pouco tempo ela se retira abençoando o cacique.

***

Olhares curiosos invadiam a tenda da nova hóspede, principalmente os das crianças, o fato de uma jovem ter cabelos tão escuros era novidade para elas. Uma das mulheres percebeu a quantidade de pessoas na tenda e mandou todos saírem.

_ Andem, andem! _ Uma mulher com máscara de pássaro e penas no cabelo ordenava. _ A coitada deve estar morrendo de fome, tragam novas roupas, curativos, façam comida, precisamos ajudá-la! _ Ela tinha um sotaque suave na fala.

O povo se dispersa e começa a fazer o que aquela dona mandou. As crianças começaram a tranças fios para fazerem suas roupas. Os homens foram a floresta pegar ervas medicinais, mulheres mais velhas preparavam a comida e as mais novas ficaram cuidando dela junto do cacique.

Margot ficou deitada em uma espécie de maca feita com galhos de uma árvore. 

_ Tragam a manta e troquem as roupas dela, ela está em estado grave, precisamos de cautela. _ O cacique pede com uma voz doce, de um bom velhinho.

Ele se retira da tenda para dar mais privacidade a jovem e deixa quatro crianças entrarem com uma longa manta colorida, enquanto as outras ainda estavam tecendo as roupas. Tiraram as roupas dela com cuidado, pois os ferimentos estavam grudados nela, elas pareciam muito felizes em estar ajudando mas Margot estava cada vez mais próxima de desmaiar novamente. Trocaram suas roupas e os homens voltaram com as ervas.

A tribo estava uma loucura, não sabiam se deviam comemorar ou se deviam se preocupar com o estado do novo membro.

Assim foi o primeiro dia dela na tribo dos selvagens, que afinal não tinha nada de selvagem. Eles cuidaram dela, trataram de seus ferimentos e saciaram sua fome. Margot dormiu por um dia inteiro como se fosse uma pedra, nem se movia e mal dava para notar sua respiração, mas estava bem.

***


“Envie um comunicado ao corvo… Precisamos da ajuda dele.”


***

_ Veja só… Um antigo amigo me convocando? _ Um homem de estatura musculosa e cheio de cicatrizes nas costas pensa em voz alta, com um pequeno bilhete nas mãos. _ Nunca pensei que eu diria algo tão profano assim… 

Ele interrompe sua fala ajeitando suas tranças num cabelo cujas laterais são raspadas, veste suas roupas negras de couro e termina de falar vestindo sua máscara de pássaro negro: _ Que Y-jara nos abençoe!






Notas Finais


"I jara¹" vem de Y- jara que lê e se pronuncia Iara, referência à Iemanjá em uma língua indígena.


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