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História One me two hearts - Papai, volta pra casa. Mamãe está morta


Escrita por: unkn0w

Notas do Autor


Meus pêsames pelos corações de vocês, meus amores

Capítulo 25 - Papai, volta pra casa. Mamãe está morta


Fanfic / Fanfiction One me two hearts - Papai, volta pra casa. Mamãe está morta

NICO

            No dia do meu primeiro concurso de música, o sino tocou de manhã bem cedinho.

            Pensei que alguém estivesse comemorando por mim, imaginei que fosse um prelúdio: seria um dia especial. Eu mudaria alguma coisa.

            Lembro-me de ter acordado sorrindo e animado. O evento seria logo pela manhã, dali duas horas. Comecei a me arrumar, colocar um dos ternos mais caros que eu tinha no guarda-roupa — o tecido branco fosco era bordado por fios brancos acetinados, que formavam uma estampa elegante. Por baixo, uma blusa cinza para não sair daquela escala de tons. Peguei minha gravata azul-cinzenta e saí correndo pelo corredor. Eu estava quase na dependência dos funcionários para pedir ajuda ao mordomo, quando travei.

            Não deveria ser meu pai a fazer aquilo?

            Neguei, dando um passo decidido ao meu destino inicial. E depois estaquei novamente. Dei meia volta, sem pensar muito, e subi as escadas de dois em dois degraus, até chegar à suíte principal. Dei duas batidinhas na porta, que pareceram excessivamente insignificantes, e esperei.

            — Bom dia, querido — minha mãe abriu e me cumprimentou nem um pouco sonolenta. — Vejo que já está arrumado — falou lentamente, como se duvidasse das próprias palavras.

            — Quase — sorri. — Falta a minha gravata.

            Ela me encarou como se não entendesse, por um momento.

            — Podia ter pedido ajuda ao Salon.

            Olhei para baixo, encarando meus próprios pés. Demorou dois segundos até Maria entender.

            — Ah, sim! Nesse caso, vou chamar o seu pai.

            Meu pai. Meu politicamente incorreto e imoral pai.

            Ele era um babaca. Um imaturo do cacete. Eu odiava tudo que fazia, todas as suas atitudes. Mas eu não o odiava. Havia tempos em que ele pegava uma bola e ia brincar comigo no quintal, levava eu e Bianca para tomar banho no rio durante o verão, explorava a mata com a gente. Eram pequenas lembranças que eu colecionava e me agarrava com todas as forças, dizendo para mim que aquele era o meu pai. Não me lembro bem de quando seu comportamento mudou tanto, talvez ele só tenha perdido o interesse.

            Entrei no quarto, que para mim era de tamanho normal, e parei ao pé da cama, observando meu pai adormecido enrolado nos lençóis. A luz da manhã batia quentinha na janela e nas bochechas dele. Assim, ele quase parecia decente.

            — Hades? — mamãe o cutucou e ele gemeu, virando o rosto para o travesseiro. — Meu bem, Nico precisa da sua ajuda.

            Ele sentou na cama olhando em volta, procurando desorientado por mim. Deu um sorrisinho quando me viu todo desajeitado naquele terno e escorregou para perto da ponta da cama. Ele cheirava a álcool, mas não reclamou de ressaca, embora apertasse os olhos com força, contra a claridade, e fizesse uma careta ou outra por causa, provavelmente, da dor de cabeça.

            Respirei fundo e prendi a respiração.

            — Do que precisa, Neeks?

            — Me ajuda com a gravata? — soltei de uma vez.

            — Claro, garoto de ouro — sorriu ainda mais e bagunçou meu cabelo.

            Ele ajeitou meu terno no meu corpo, esticou o tecido, desabotoou e abotoou novamente, só que do jeito certo. Desviei o olhar envergonhado por não ser capaz nem de arrumar meu próprio terno. Por fim, colocou minha gravata, tomando todo o cuidado do mundo, como se apreciasse aquele momento tão trivial.

            Assim que meu pai terminou, me olhou com um sorriso bobo. Devo ter corado e então anunciado que iria esperar lá fora, ensaiando no quintal, como adorava fazer, enquanto eles terminavam de se arrumar.

            Era um dia perfeito. Eu havia acordado de bom humor, meu terno era o mais bonito que eu jamais vira, o sol estava agradável e até mesmo os espíritos eram silenciosos. Meus pais estavam ali, sorrindo, juntos, se preparando para algo meu. Só faltava Bianca, então fui até seu quarto e bati na porta. Sem resposta. Tentei abrir a porta, mas estava trancada.

            — Bianca — chamei, batendo. — Bia, acorde!

            — Estou bem aqui, maninho — ela falou atrás de mim.

            Quando me virei, notei algo estranho.

            Ela já estava arrumada, a maquiagem era leve, seu vestido era muito lindo, a gente combinava um pouco. Mas havia algo com a sua consistência física... Com o ar que a rodeava... Com a falta de sua sombra no chão... Com a falta de vida ao seu redor.

            — Vou ensaiar mais uma vez enquanto papai e mamãe se arrumam — dei um sorriso cordial. — Depois disso, vamos sair. Achei que você tinha esquecido, mas... Você está linda! Obrigado por... Por se lembrar do concurso.

            Ela fez uma reverência com a cabeça que me pareceu leve e calculada demais.

            Seu sorriso era estranho, perturbador.

            Desci as escadas um pouco assustado, mas minha mente infantil logo tratou de deixar tudo que dava medo de lado e me pôr a concentrar na peça que apresentaria no violino.

            Saí da mansão já abrindo o estojo do instrumento. Algumas das almas me rodeavam em silêncio. Vi Andrew e Fairy de mãos dadas, Elizabeth com seu sorriso sonolento, o homem velho que sempre usava chapéu, uma moça de seus 20 e poucos anos que eu chamava de Gea, e só. Todos pareciam de muito bom humor, e me encaravam com sorrisos próximos do perverso — apesar de que Fairy não podia me encarar, ela era cega. Mas sorria assim mesmo.

            Ignorei e me preparei para tocar mais uma vez a partitura que eu havia decorado.

            Paganini, la Campanella. Uma música relativamente simples, se tratando de Paganini. Não era uma enxurrada de notas e sentimentos, era... Como contar uma história de aventura.

            Minha habilidade era simplesmente sem comparação. Eu “toquei” a música inteira de forma impecável. Ritmo impecável, notas impecáveis, postura impecável. Impecável, não perfeito. Porque eu sentia... Eu sabia que algo estava errado.

            Ao terminar a música, aquele menino imaturo e despreparado notou que na verdade os fantasmas não o olhavam. Alguns sim, outros riam e cochichavam, apontando o teto da mansão.

            Franzi o cenho e dei alguns passos para frente. Depois me virei e tentei enxergar o que estavam olhando.

            “O sino

            “Ao lado o sino”

            “Olhe o sino”

            E, ao lado do sino, pendia o cadáver da minha irmã. Mas eu via gente morta demais para gritar, então chorei.



Eu senti ódio. Ódio de Bianca por atrapalhar, ódio dos meus pensamentos, ódio dos espíritos. Eu entendia agora que fora a alma de Bianca que falara comigo pela manhã, e não ela. E isso também me dava ódio.

            Naturalmente, o meu concurso foi esquecido. Nem eu, nem meu pai nem minha mãe comparecemos. E a única esperança de fazer algo de bom havia desaparecido. Com ela, toda e qualquer motivação que eu tinha.

            O dia foi voltado ao enterro, que seria realizado à noite no mausoléu da família, onde meus bisavós, um avô, dois tios e um primo descansavam em paz. Apesar de fazermos tudo com pressa e no mais absoluto silêncio, a notícia se espalhou rápido e nossa fama na cidade estava cada vez pior. Percy também ficou sabendo, e nos falamos por mensagem. Ele disse que estava ali pra me apoiar, que faria qualquer coisa para que eu não me sentisse sozinho.

            Na mesma noite, Bianca apareceu no meu quarto.

            Eu não a vi, apenas senti sua presença escorada na parede ao lado da minha cama.

            — Todos estão fazendo um tumulto por sua causa — falei com a voz muito rouca. — Você é o centro das atenções. Deve estar se divertindo.

            — E como, irmãozinho. Eu não poderia pedir por algo melhor.

            De alguma forma, era como se a sua voz preenchesse todo o ambiente. Não falava alto nem firme, mas o som era simplesmente grande nele mesmo.

            — Por que fez isso? — perguntei sentindo minha visão borrar.

            — Vai saber. Os pensamentos das pessoas vivas são estranhos, não consigo me lembrar.

            Eu me encolhi, o joelho no peito, o cobertor sobre meu corpo em posição fetal. Respirei fundo, tentei parar de chorar.

            — Está com raiva de mim? — Bianca perguntou. — Está com raiva por eu ter destruído o seu mundinho? Ter estragado a sua única oportunidade, menino prodígio?

            — Não me chame assim! — gritei, colocando as mãos nos ouvidos. — Pare de me chamar de prodígio quando eu não passo de um erro!

            — Mas é o que você é, pequeno gênio — a menina riu. — O prodígio, a galinha dos ovos de ouro... Mas que infelizmente, é inútil. Você está com raiva de si mesmo por não ter conseguido, não é?


Pelos próximos meses, notei que pela dor, meus pais haviam se unido mais. Era como se cada um vivesse sem um grande pedaço de si, e por isso um se apoiasse no outro para que não sucumbissem.

            Eu não podia atormentá-los com os meus problemas, isso apenas os abateria mais e mais. Por isso procurei o meu refúgio. Não me entenda mal, não era como se eu estivesse apaixonado por Percy ou algo assim. Eu tinha uma queda por ele, e ele era o meu único amigo na época, não havia outro lado para o qual fugir.

            Eu com 12 e ele com 14 anos, nós nos achávamos maduros o suficiente para brincarmos de casal. Não acontecia nada demais, mas ainda era algo que começava a nascer entre nós, um tipo de relação.

            Um ano depois da morte de Bianca, eu já não aguentava mais a sua presença. No começo, eu achei que seria bom, que seria como se ela nunca tivesse morrido. Mas aquela não era Bia, minha irmã. Aquela coisa tinha consumido a própria humanidade. Era só amargura, ressentimento e frieza. Era Bianca em sua pior parte, era Bianca e não era, ao mesmo tempo. Um demônio que aparecia com determinada frequência, mas não tanta quanto hoje em dia.

            Mas eu aprendi a conviver com ela. Entendi que essa era a minha punição por apenas ignorar e pensar que as coisas se resolveriam se eu fingisse que elas não estavam acontecendo. Sei que com 10 anos eu tinha entendido todos os pedidos de ajuda de Bianca, mas eu não quis ajudar, não quis aceitar que ela estava se destruindo. Então agora, por ter errado, eu teria aquele lembrete por todos os dias da minha vida: sua irmã está morta. E você não fez nada para impedir isso.

            Eu me odiei quando entendi isso.

            Com o tempo, minha mãe foi se abatendo mais e mais. Em vez de se recuperar da perda, ela apenas se afundou. Mas na época eu não compreendia o que estava realmente acontecendo, ou talvez eu não quisesse fazê-lo.


Pouco depois do meu aniversário de 13 anos, minha mãe me chamou em seu quarto.

            Era noite, meu pai estava numa conferência do trabalho e ainda não voltara — já que agora decidira virar um homem decente e cuidar dos negócios da família da mamãe também —, portanto estávamos apenas nós dois em casa. Nós dois e ela.

            Dei três batidas na porta e entrei. Maria atendeu a porta por si só.

            Seus olhos eram castanhos e estreitos, os cílios bem longos, o nariz comprido. Abaixo de seus olhos, bolsas roxas denunciavam insônia e loucura. Sua camisola de um rosa claro deixava sua pele acinzentada por causa do contraste. O seu cabelo era todo bagunçado e cheio de nós por cima do tecido.

            — Mamãe? — minha voz transbordava medo.

            Bianca estava sentada perto da porta do closet. Eu sentia o seu olhar.

            — Ah, Nico — ela deu um suspiro e sentou na borda da cama. — Estou com insônia. Pode me ajudar a dormir?

            — C-claro, mãe — dei um sorriso amarelado. — O que quer que eu cante? Talvez Half The World Away ou Home?

            O mais engraçado — para não dizer trágico — dessa cena é que nos meus delírios e sonhos, nunca consigo encaixar a música que cantei no dia. Ou em meus pensamentos toca a melodia de Fly High, às vezes de Animal Soul, mas nunca a legítima. Penso que talvez seja uma proteção do meu cérebro, porque é doloroso demais lembrar, mas eu vou te contar. E vou te mostrar.

            — Safe and sound — cochichou mamãe, a voz falhando por algum motivo que eu não soube naquela noite. Mas era medo. Hoje eu sei. — Faça-me sentir são e salva.

            Tomava ar para cantar quando ela me interrompeu com pressa.

            — Nico, mais uma coisa. Feche os olhos e prometa que não vai abri-los até terminar a canção.

            — Prometer?

            — Prometa, Nico!

            — Certo, certo! Eu prometo.

            Ela deu um sorriso acolhedor.

            Maria estava tão cansada nas últimas semanas que eu não tive como negar o pedido, nem pensei em questionar. Seu olhar estava tão sem vida que eu seria capaz de tudo parar tentar ajudar.

            Fechei os olhos e mais uma vez inspirei. Minha voz de criança tremia enquanto eu cantava.

            — I remember tears streaming down your face when I said: I'll never let you go, when all those shadows almost killed your light. I remember you said: Don't leave me here alone. But all that's dead and gone and passed tonight…

[Eu me lembro das lágrimas escorrendo pelo seu rosto

Quando eu disse, "Nunca te deixarei ir embora"

Quando todas as sombras quase acabaram com a sua luz

Eu lembro quando você disse, "Não me deixe aqui sozinho"

Mas tudo está morto e acabado e já passou nessa noite]

            Ouvi o barulho dela se mexendo na cama e imaginei se estaria se ajeitando para dormir. Dei uma breve pausa nesse ponto e continuei.

            — Just close your eyes...

[Apenas feche os seus olhos]

            Nesse ponto, escutei um barulho diferente. Como um murmúrio baixo, e a voz não era de nenhum espírito que eu já tivesse ouvido. Eu queria negar de toda forma, mas aquela era a voz da minha mãe. Ela emitia um ruído de quem sofre, agonia de algum tipo de dor.

            Seria só fruto da minha imaginação?

            — The sun is going down...

[O sol está se pondo]

            Arfei e comecei a ter medo quando ouvi o som de algo sendo cortado. Era o seu pescoço. Eu, uma criança de treze anos, estava escutando minha mãe cortar a própria garganta.

            — You’ll be alright. No one can hurt you now... Come morning light, you and I'll be safe— parei repentinamente ao ouvir um baque mudo no chão.

[Você vai ficar bem. Ninguém pode te machucar agora... Ao chegar a luz da manhã, eu e você estaremos salvos]

            Abri os olhos.

            Ah, que erro.

            Minha mãe estava no chão, uma poça de sangue se formando ao redor da sua cabeça. Sua garganta estava cortada, a faca em sua mão banhada de sangue. Bianca estava agachada ao seu lado, sorrindo como um animal mostra as presas.

            Levei minhas duas mãos á minha boca e nem percebi quando as lágrimas não vieram.

            Era o meu último momento com a minha mãe, eu não queria que ninguém interrompesse. Então não chamei por empregados, e não liguei para a emergência, pois sabia que ela estava morta e que de nada adiantaria ter paramédicos ali. Apenas me ajoelhei à sua frente, minha calça estava se encharcando em sangue, e beijei uma última vez a sua pele alva — e aliás, essa é outra cena que meu cérebro nunca me lembra com decência. Sempre relembro com Bianca por trás dela, segurando a faca enquanto ainda está em sua garganta. E acaba aí.

            O meu maior medo naquela hora foi que ela voltasse como Bianca, com a humanidade consumida. Eu adoraria tê-la me assombrando, desde que realmente fosse minha mãe.

            Repentinamente a consciência de que meu pai acabara de perder a esposa veio, e meu coração doía de tão forte que eram as batidas.

            Levantei-me sem desgrudar os olhos do seu corpo e peguei o celular.

            Liguei para Hades e, antes mesmo de ele dizer “alô”, disse as palavras mais dolorosas daquele dia:

            — Papai, volta pra casa. Mamãe está morta.


O enterro foi na tarde seguinte. Passei boa parte do dia resolvendo mais um funeral, situação que parecia erroneamente familiar para mim e meu pai. Pela tarde, houve o evento e, depois dele, Percy veio correndo falar comigo.

            — Nico! Nico, espere!

            — Fala, Jackson.

            Ele estava desconcertado.

            — Eu sinto muito.

            — É claro que sente. Também sinto muito. Mas nossos sentimentos são por motivos diferentes.

            — O que quer dizer?

            Revirei os olhos.

            — Nada.

            Um silêncio desconfortável se instalou entre nós. Os dois pareciam prestes a falar a todo segundo, mas acabou que nada foi dito antes do meu pai chegar. Seus olhos eram cansados, no entanto não vermelhos. Ele também não havia chorado, assim como eu. Sua expressão era de alguém que acabara de madurecer 20 anos.

            — Nico, precisamos resolver mais algumas coisas hoje.

            — Pode me dar um minuto? Já vou para o carro.

            — Certo.

            Vi meu pai se afastar e peguei na mão de Percy, indo para um espaço fora da vista das outras pessoas no cemitério.

            Puxei a sua gravata e o beijei. Creio que não seja do seu interesse saber a intensidade e o modo que isso foi feito, basta dizer que foi desesperado.

            — Está tudo bem — sussurrei quando nos separamos. — Mas preciso de um tempo sozinho. A gente se fala qualquer dia, ok? Mas me espere ligar.

            Percy assentiu.

            Fui para o carro, meu pai esperava com a cabeça jogada para trás e os olhos fechados.

            — O que temos que resolver?

            — Assuntos chatos e desnecessários de adultos, nada nem do seu ou do meu interesse.

            De fato, passamos as próximas horas rodando a cidade, pegando documentos, declarações. A empresa da família da mamãe tirou o resto da semana de luto, todos os funcionários ficaram devastados.

            Eu e meu pai continuávamos alheios a tudo. Nem uma lágrima derramada, nem uma palavra sobre dor, porque na realidade não a sentíamos muito.

            Chegamos em casa por volta das oito da noite. Ninguém nos esperava lá e eu nunca odiei tanto ver aquelas almas perambulando por aí. Parecia-me terrivelmente mais adequado que tudo estivesse vazio, assim como eu era por dentro.

            Tiramos nossas roupas de luto, preparamos nosso jantar — as sobras do almoço e assistimos à televisão, tudo em silêncio e combinadamente junto. Depois de não muito tempo, meu pai anunciou que iria dormir e eu fiquei sozinho na sala.

            Encarei o meu violino em cima do piano, e depois meus olhos desceram para o violão e para as teclas marfim, descobertas. Havia uma flauta transversal, um violoncelo e uma guitarra naquele mesmo canto. Todos com cheiro de verniz e se instrumentos felizes, eu suponho.

            Levantei. Nem mesmo calcei minhas pantufas, porque a música me hipnotizou. Andei em passos sedentos até aquele canto da sala que era reservado a mim e os meus treinos...

            E então, eu toquei.

            Não como havia tocado em todos os outros dias da minha vida, apenas passando os dedos pelas teclas ou dedilhando as cordas. Eu toquei. A música me tocou e eu toquei a música. Engana-se quem pensa que tocar bem é ter velocidade ou não errar nenhuma nota, isso é apenas habilidade, qualquer um pode adquirir com um tempo — e não há nenhum demérito em tê-la. Tocar de verdade exige algo, alguma coisa que nasce com você. Ou você tem, ou não tem. Simples assim.

            E naquele dia eu toquei. Eu finalmente chorei e o violino chorou comigo. Eu gritei e o violão gritou comigo. Eu me matei e o piano morreu comigo. A música morreu comigo.

            No intervalo durante a troca de um instrumento para outro, a consciência súbita da perda me voltava e eu chorava, sem ter forças para me manter de pé, sem conseguir enxergar nada além de um borrão. Mesmo assim, eu avançava, devorava uma canção após a outra.

            Recordo-me desse dia como se fosse ontem, como se tivesse acabado de vivê-lo. Lembro-me de cada melodia, de cada nota. O finalmente choro do meu pai ecoando pelo corredor, a aura dos funcionários em luto em seus aposentos. E cada nota que saía de mim parecia tremer no ar e depois cair, afundar, morrer, queimar. Suas cinzas eram levadas e desapareciam. Cada nota era um pedaço de mim. Tudo que eu tinha, naquela noite, eu toquei.

            Eu também cantei. Cantei com dor, com desespero, com calma, cantei enquanto chorava, minha voz nunca pareceu tão bela. Cantei aquilo que palavras ditas não poderiam dizer. Eu era o instrumento e agora minha música saía diretamente de mim.

            Quando meus dedos estavam a ponto de sangrar, minhas mãos tremendo como se eu estivesse tendo uma convulsão, minha garganta não produzindo mais nenhum som que poderia ser considerado voz, os primeiros raios de sol surgiram. E minha música tinha ido embora.

            Não havia calor pra mim. Não havia luz. Não havia cor. Aquilo não era um novo dia. Não havia o novo para mim; tudo era uma reta contínua de sofrimento.

            E desde aquele dia, eu odiei a música.


Notas Finais


Olha o sino pequenino sino de belém
Gente eu acho que vou fazer um especial de natal, que sai da linha temporal da fic. O que vocês acham?


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