Três meses após o sequestro do príncipe caçula a maioria das pessoas já duvidava que ele voltasse com vida, ou mesmo que ainda estivesse vivo. Mas sua prima, Aiden Huldz, não fazia parte desse grupo.
A capital de Izalith levava o mesmíssimo nome do Reino e, dada as proporções de uma cidade, era tão enorme quanto. Aiden estava no centro comercial realizando seus afazeres, carregava com si uma cesta de palha de bom tamanho e um sorriso estonteante. Rodeada por milhares de pessoas e construções. Havia perfumeiros, armeiros, alquimistas, cervejeiros, mineiros, padeiros, agricultores, carpinteiros e os outros mais diversos tipos de comerciantes por ali.
O sol havia acabado de atingir o ponto mais alto do céu quando ela terminou suas compras, não as do dia, mas sim a que começara desde que seu primo fora raptado.
Enquanto as outras moças de sua idade, dezoito anos, optavam por charmosos e pomposos vestidos ela gostava das roupas ditas masculinas. Usava uma calça de algodão tingido de preto e uma camisa de linho branco. E sapatos de couro. Divertia-se com as reações das pessoas ao verem que era uma mulher, houve uma época onde aquilo a incomodava, mas a adolescência faz parte da vida de todos. Prendia seu cabelo de um Ruivo vibrante, que muito mais se assemelhava a sangue do que ao por do sol, num rabo de cavalo que ia até o meio das costas.
Como se já não bastasse a represália por ser mulher, sofrera também por não querer abaixar a cabeça, e uma ainda maior por ser filha de um imigrante. Por tratar de uma nobre, era literalmente sobrinha direta do Rei, suas decisões não ortodoxas, assim como as de seu Pai, diga-se de passagem, resultaram em uma educada exoneração de grande parte de seus direitos como alguém de sangue real. A conta foi bem simples, um nobre tem todos os direitos, um plebeu tem metade deles e os imigrantes nenhum. Somando os direitos do Pai e da Mãe e dividindo por dois, ela se tornara uma simples plebéia. Assim a maioria dos nobres, assim como a maioria das pessoas, simplesmente nem sabiam da existência dela.
Mas seu tio estava longe de ser um homem mau, e garantia uma boa renda para ela. Acontece que a realeza é um enorme jogo de xadrez, onde ter uma sobrinha imigrante podia ser visto como fraqueza, e no fim das contas ela passou a sentir-se agradecida por não ter que participar dele.
Tinha um rosto excepcionalmente feminino, com queixo e nariz finos, lábios que se destacavam pela cor viva e lindos olhos verdes. Havia uma cicatriz que começava acima de sua sobrancelha direita e acabava em sua bochecha. Um infeliz acidente de combate, que por sorte não a cegara de um dos olhos.
Juntando tudo que havia comprado desde que se decidira a ir atrás de seu primo ela tinha: uma corda de cânhamo, um kit médico (atadura, pomadas, álcool para ferimentos, ervas medicinais, e dois frascos de poção de vitalidade de apenas um uso cada), uma mochila sob medida para si, uma bolsa acolchoada para carregar as moedas sem fazer barulho, um pergaminho para anotação, uma pena, um frasco de tintas, um cantil de metal, um pé de cabra, uma tocha que duraria até duas horas, alguns frascos de óleo de baleia (que junto de alguns panos alongariam o tempo de vida da tocha), uma pederneira, um par de algemas de metal e um saco de dormir feito de pele de urso. Comprou também um cavalo de guerra, rédeas, uma sela militar com alforjes e uma armadura para ele, e o preço fora aumentado em cinqüenta por cento pelo seu pedido especial de sigilo, e só esses últimos itens custaram setenta por cento do que tinha guardado. Tudo fora comprado ao longo daqueles três meses de foco, determinação e planejamento.
Fizera um pedido especial ao tio, aproveitando a proximidade de seu aniversário, alegando que queria viajar e ele prometeu-a algumas moedas a mais.
E sim ela viajaria, mas não iria para as cachoeiras, lagos ou rios de Izalith. Não passaria um tempo em fazendas luxuosas ou qualquer coisa do tipo. Iria atrás do seu Primo e do suposto assassino do seu pai: O Bruxo.
O homem que a criou após a morte da sua mãe em seu parto chamava-se Heitor Huldz, e aos cinqüenta e seis anos de idade morrera protegendo seu sobrinho Magnus. Ele era o Coronel da Guarda Real dos Leões de Izalith que pessoalmente coordenava os dois pelotões, um total de mais de sessenta homens e apenas um sobrevivera apenas para espalhar a história por aí. Mesmo Aiden que estava longe de ter alma investigativa e maliciosa sentia algo errado nessas contas.
Chegou à casa um tanto exausta, havia virado a noite enfurnada em seus planejamentos e ainda assim tinha muito que fazer antes que o Sol se pusesse, e ainda mais quando a escuridão chegasse. Arrumou todo seu equipamento, buscou sua armadura e entocou-a na mochila, pegou também sua espada e seus objetos especiais de tanto valor, teve de escondê-los dentro de dois mantos negros para que seu brilho não passasse do ponto.
E saiu de casa em direção à periferia.
Até era um lugar interessante, muitas casas de madeira e crianças por toda a rua. Roupas secavam em varais improvisados, e mulheres desciam e subiam aquele morro com imensos baldes de água na cabeça. Mesmo ali elas se obrigavam a usar no máximo uma saia e uma camisa de pano, e a calça de Aiden chamava bastante atenção. Mas ninguém mexia com ela, podiam não saber quem era, mas sabiam por que estava ali, e nunca é bom atrapalhar o negócio de alguém tão querido ali quanto Marin, a Sombra Assassina.
Ele que vinte e um anos atrás era apenas mais uma criança de seis anos que vivia na rua comendo o pão que o diabo amassou, agora era um respeitável ferreiro e temido assassino. Por sua culpa algumas das guildas menores haviam entrado em confronto por serviços sendo feitos em áreas erradas, muitos deles feitos por esse rapaz que teve de aprender a sobreviver de qualquer forma. E para a infelicidade de todas elas, Marin não era fiel a nada além do dinheiro, chegado ao ponto de acordo em que a contratação dos serviços dele tornara-se proibido para não haver uma guerra completa e catastrófica. Restando a ele apenas seus serviços como ferreiro, e poucos assassinatos pedidos pessoalmente.
Aiden esmurrou a porta três vezes com bastante força e gritou:
—Marin. Marin.—mas ele não a respondeu.
“Ele vai mesmo me obrigar a chamá-lo daquele apelido ridículo?” pensava ela.
—Sombra!—ela gritou e a porta foi aberta meio segundo depois.
—Prazer em te rever ruivinha. Deixe-me adivinhar, saudades?
—Até parece que eu sentiria saudades de você. Anda, deixe-me entrar.— falou empurrando-o para dentro e invadindo a ferraria.
O Cômodo onde ela entrara era basicamente uma sala de recepção, havia um balcão com várias armas e escudo distribuídos ali. Armaduras em manequins de madeira e adagas em mostruários. Tudo era feito de pinho, sem dúvida uma das madeiras mais resistentes que havia em todo o reino. Peles e cabeças de animais decoravam o lugar. A cabeça de um leão estava empalhada como se no meio de um rugido.
Marin ostentava o devido vigor do homem de vinte sete anos que era. Não exatamente por ser corpulento, até porque apesar dos músculos ele era bem magro, seu vigor destacava-se pelo jeito que se portava e se apresentava. Não havia insegurança em seus olhos e muito menos em suas atitudes, mesmo assim conseguia não ser arrogante apesar de sempre abusar de um ácido senso de humor. Conhecido por sua calma e controle emocional, Marin dificilmente se estressava. Quase sempre sabia como se portar e o que dizer, seja para persuadir alguém a fazê-lo um favor, ou para convencê-los sobre seu ponto de vista.
Tinha cabelos brancos e lisos que caiam até seus ombros, olhos chamativos de cor violeta e a parte que seria branca foi tingida de negro, um rito de passagem de uma guilda de assassinos que fizera parte. Quando decidiu sair dela a mesma virou-se contra ele, hoje em dia ela já não existe mais. O centro de sua testa tinha uma lua crescente e no canto de seu rosto fios grossos entrelaçados, tatuagens comuns nas comunidades nórdicas do Reino de Izalith.
Usava uma camisa de manga comprida de linho verde e uma calça de pano. Estava descalço, media exatamente um metro e noventa, não obstante não passava dos cento e cinco quilos.
Ela estava dentro da Ferraria da Calmaria e da Tempestade, um dos lugares que moviam maior parte dos crimes do Reino. Era ali onde toneladas de aço eram transformadas nas armas que matariam soldados, monstros e às vezes pessoas inocentes. Mas ela sabia que eles eram os únicos que fariam os aprimoramentos necessários em seu equipamento sem perguntar demais.
—Os mestres ferreiros estão aí?—Aiden perguntou.
—Não, apenas eu.—respondeu com um sorriso.
—Porra, logo hoje.
—Quer que eu dê um jeito nessa sua lâmina?
—Eu queria que eles dessem, mas pelo jeito vai ter que ser você.
—O que tem de errado comigo?—perguntou quase que pessoalmente ofendido.
— Das duas vezes que você reparou a minha espada eu senti ela desbalanceada, como se estivesse torta.
—Da última vez você gostou da coisa que eu tenho torta.—retrucou sarcástico como sempre.
—Me faltava experiência. Hoje sei que prefiro muito mais uma Claymore a essa sua faca de manteiga.—Aiden disse com seu sorriso bobo.
—Ai, essa doeu.—respondeu rindo, era seguro demais de si para abalar-se com um comentário obviamente ensaiado.—Mas venha, vamos à forja.
Marin guiou-a para dentro do armazém da loja e juntos subiram uma escada e lá estava ela, em frente à forja de mil céus. Sombra abria seus braços para ela, já havia visto aquele lugar antes, mas toda vez era mais maravilhosa que a anterior. Era uma enorme quadra de pedra. Cabiam facilmente vinte pessoas ali. E na borda colada a montanha havia uma piscina de lava, contida por pedras de obsidiana. E acima disso a cabeça de um urso, e da boca aberta dele era de onde o fogo em forma líquida saia.
—Cada vez mais bonito não?—Marin perguntou.
—Sem dúvidas.—Aiden respondeu deslumbrada.
—Mas ande, aos negócios.
Aiden abriu sua bolsa e começou a dispor peça por peça de sua armadura, incluindo seu escudo e sua espada. Logo todos ali estavam enfileirados.
—Quer que eu repare essas coisas? Elas não parecem quase nada gastas.
—Não vim aqui por reparos Marin, eu quero aprimorar tudo.
—E qual a sua...—O ferreiro não conseguiu mais falar ao ver o que estava em sua frente;—Não acredito. Isso é M...
—Exatamente o que você está pensando.—interrompeu-o.—Cale-se e me escute. Preciso que funda minha armadura com isso, assim como minha espada e meu escudo.
Marin perdera sua capacidade de fala. Estava extasiado, apenas lera sobre aquele material, e o único de toda ferraria que já havia dito ter visto aquilo era Thorin, seu mestre. E o próprio Thorin admitira ter visto seu Pai, o homem que lhe ensinara a arte da forja, fazer uma adaga com aquilo, não tivera nem a permissão de encostar.
—Onde você conseguiu isso Aiden?
—Meu pai deixou para mim, disse que talvez um dia eu precisasse dele. E esse dia é hoje.
—Você sabe das propriedades dessa merda? Sabe o que isso pode fazer? Tem ideia de que muita gente mataria por isso?
—Sim.
—Sabe das conseqüências que pode ter sobre você?
—Eu sei de tudo Marin. Agora me diga se aceita ou não o trabalho.
—É claro que aceito, mas pra que você iria querer uma armadura revestida de... Você vai atrás do bruxo!—O ferreiro gritou como se tivesse recebido uma mensagem divina.
—É, eu vou.
—Pois está com sorte. O Rei vai autorizar a caçada dele a partir da próxima semana.
—O que?—agora Aiden foi quem gritou.
—Segundo meus contatos ele cansou de fingir calmaria, está desesperado pelo filho, e vai botar uma recompensa um tanto singular na cabeça do bruxo além de dobrá-la caso tragam o filho dele vivo.
—Merda. Agora vou ter que competir com mil caçadores de recompensas diferentes.
—Ele vai prometer um título de sangue puro.
—O que?
—É, quem conseguir trazer o filho dele vai tornar-se um nobre de escalão quase tão grande quanto o Rei. Caso tragam apenas o bruxo vai ser dada a recompensa de título de Duque, que ainda é garantia de uma vida maravilhosa para você, seus filhos, netos e bisnetos.
—E como ele vai saber que é a cabeça do bruxo?
—Acha que ele e seus cavaleiros passaram esses três meses coçando o saco? Eles encontraram o desgraçado novamente. Uma boa parte conseguiu sobreviver dessa vez. E felizmente não viraram aquelas coisas iguais ao Astor. Deram a descrição dele ao rei e em dois dias vão ter cartazes sobre sua pronunciação por toda Izalith. Ele vai pronunciar-se no coliseu para toda a capital e mandar uma cópia do que disse para todos os murais de recados e recompensas que houverem no reino.
—E ele sabe onde o bruxo está?
—Não. Ele vai passar todas as informações cabíveis a todos. Parece que descobriu uma forma possível de encontrar o bruxo e também de enfraquecê-lo, algo do tipo. Mas as informações realmente privilegiadas apenas nobres de alto escalão terão acesso.
—O mesmo político de sempre...
—Nem fale.
—Mais alguma coisa que eu deva saber?
—Acho que não, só que ele tem várias informações e relatos conseguidos ao longo desse tempo. E pelo jeito algo muito sério mesmo foi descoberto. Algo nível risco nacional.
—Que inferno.
—Houve recrutamento em massa nos últimos meses, muitos dos que não ligavam pro exército estão ficando assustados com histórias das nossas fronteiras estarem ficando menores, além de toda essa parada da magia vagar silenciosamente pelo nosso reino.
—E o que você sabe sobre grupos? É impossível que ele permita que sessenta pessoas assumam posições tão grandes do nada.
—Mais de sessenta cavaleiros de elite foram mortos na primeira vez, vinte dois na segunda, e até onde sabemos nem tocaram ao bruxo. Não acredito que ele se preocupe que muitas pessoas trabalhem juntas.
—Vai para caçar também Marin?
—Nha.—grunhiu.—Trabalho melhor sozinho e ir sem um grupo e às cegas é meio que loucura, para não falar burrice, e sim isso foi uma indireta pra ti. Devo antes procurar pelas informações adicionais, só depois eu caço o desgraçado. Ele foi bom em emboscar, vamos ver como se sai sendo emboscado.
Aiden pensou por alguns segundos antes de falar:
—E então, qual o custo do serviço?
—Simples, quero aprimorar minhas lâminas com isso também. Se o que eu li estava certo, tem bem mais que o suficiente. Pode levar uma das três embora que eu não vou precisar.
—Porque você cisma em usar o termo lâminas? Tanto pra minha espada quanto para adagas e até machados.
—Foi o teste de Thorin para descobrir se eu valia o esforço para tornar-me um bom ferreiro ou não.
—Parar de falar espada?—Aiden perguntou confusa.
—Defina-me uma espada Aiden.
—Cabo curto, lâmina longa. Sei lá, cara.
—Mas deve ser feita de metal ou madeira? Ter um ou dois fios? Entende aonde quero chegar? Quando se trabalha muito com essas coisas definir uma espada se torna algo praticamente impossível. As mais curtas podem ser confundidas com facas ou adagas mais longas. Podem ser perfurantes e cortantes, ou mesmo as duas coisas. Leves ou pesadas, retas ou curvas, metal ou de madeira, aos diabos Aiden nossos antepassados usavam lâminas de pedra. Você tem razão em generalizá-las em um cabo curto e lâmina longa, mas apenas por você ser uma leiga. Eu trabalho com isso a mais da metade da minha vida. Quase todas são feitas de metal, em geral aço forjado atualmente. Os movimentos delas são mais longos se comparados ao das facas. Os golpes mais comuns consistem eu perfurações na barriga ou cortes nos braços visando desarmar o oponente. E, evidentemente, golpes no pescoço ou perfurar o coração também acontecem, sendo mortais em sua maioria. Mas também tem os floretes e rapieiras, não permitem cortes de modo algum. Já as montantes podem quebrar ossos graças ao tremendo peso. Mas a ligação entre o cabo e a lâmina é fundamental. O método Izalithiano consiste em rebitá-los. No oriente é mais comum usar um encaixe de madeira. Nos desertos a parte anterior da lâmina tem projeções perpendiculares nas quais o cabo é rebitado. As colônias sulistas usavam cimentação e colagem. E mesmo assim todas se mostraram úteis em algum ponto da nossa história. Então acho mais fácil apenas chamar de lâminas.
—Uau. Isso que eu chamo de aula de metalurgia.
—Disponha-se, não vou cobrar a hora.—falou curvando-se debochadamente.—O serviço deve estar pronto à noite. Vai partir hoje mesmo?
—Até iria, mas preciso buscar algo na casa do meu tio antes. Devo sair pela manhã.
—Eu nem sabia que você tinha tio.—Marin falou rindo.—Vai realmente atrasar sua viagem em oito horas pra ir à casa de um parente? O quão longe ele mora?
E com um sorriso no rosto, enquanto observava o castelo real no horizonte ela respondeu:
—Um pouquinho.
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