“Nós, a quem o noticiário geralmente se refere como monstros ou loucos, descobrimos uma vantagem muito tardiamente: nós somos muitos. Mas, ironia do destino, estamos fadados a não compartilhar da união duradoura.
Há agendas e objetivos diferentes a nos dividir. Em toda reunião a qual participei nas sombras sempre fui uma dessas vozes reticentes com uma possível aliança. Mas com o tempo aprendi a prezar por colaborações. Boas colaborações.
Não é segredo nenhum quais foram meus colaboradores mais frequentes. Olhando em retrospectiva, ainda me assombro que tenha me aventurado tantas vezes em alianças com o Coringa. O lado bom com certeza era sua criatividade, mas quando o Morcego entrava em cena sua empolgação punha tudo a perder.
Charada, por outro lado, era o meu colaborador perfeito. Se fosse defini-lo em uma palavra seria “metódico”. Nós passávamos horas a fio criando planos e repassando todas as suas etapas até que ficassem gravadas em nossas mentes.
Devo retificar o que disse acima: Charada era o meu colaborador quase perfeito. Sim, pois havia uma coisa que o impedia de ser o criminoso mais bem sucedido do país: seu enorme ego. Quantas vezes ele podia ter ganhado se simplesmente evitasse de deixar uma pista para o Morcego?
Mesmo assim, aprendi a gostar de sua companhia e acredito que a recíproca era verdadeira. Não o via ligando ou marcando encontros com outras pessoas apenas para colocar o papo em dia, além de mim, Pamela e Selina – se bem que ele nunca escondeu o quanto desejava ambas.
Desde que trabalhamos juntos na criação da intricada trama envolvendo o Silêncio passamos a nos falar esporadicamente. Inclusive, trocávamos de esconderijos e compartilhávamos recursos quando necessário.
Lembro que foi no meu velho apartamento na banda podre da cidade que tivemos a ideia certa noite. Ideia famigerada, como se virá a seguir.
Enquanto apreciávamos vinho e nos atualizávamos, a pauta acabou enveredando para o Vigilante Encapuzado, como sempre. Eu comentava o quanto odiava mais o primeiro Robin que o Morcego em si. Ele era tão arrogante e sorridente que fervia meu sangue. Nigma concordou, mas observou que o terceiro Garoto Maravilha era um bom garoto. ‘Era uma pena ele ter sofrido a lavagem cerebral do Morcego’, dizia, ‘ele podia ser um ótimo ajudante para mim’.
Edward tocou num ponto ao qual nunca havia me atentado: de todos, Batman foi o único que pensou a longo prazo. Ele pode ser apenas um homem contra uma multidão de bandidos e malucos, mas ele investiu em literalmente criar seus próprios aliados. E o resultado está aí hoje: uma infinidade de jovens cerrando fileira ao seu lado.
‘Nós devíamos ao menos considerar a ideia’, disse ele. Pois bem, a título de passatempo, começamos a imaginar qual seria o ‘processo seletivo’ adequado para um candidato a ajudante do Charada ou do Espantalho.
Nigma sempre prezou demais a inteligência, por isso ele supunha situações em que o ‘candidato’ precisava usar o seu intelecto para ser classificado, quase como se fosse uma gincana um pouco mais radical.
No meu caso, a resistência ao medo seria o critério maior de vitória. Não procuraria por valentões, pois no fundo eles são inseguros enrustidos. Eu deveria encontrar meus pupilos entre aqueles rejeitados por todos.
‘Tem que ser uma criança’, enfatizava ele, ‘só assim para moldar todo seu pensamento, sua prática’. A mim a ideia não agradava nenhum pouco, pois sempre odiei crianças, inclusive quando eu ainda era uma delas. Mas confesso que era um projeto tentador”.
**
Selina entrou na sala sem dizer nada e jogou um maço de folhas no colo de Edward, que estava sentado bem em frente ao painel de monitoramento.
O ruivo se surpreendeu, embora sentisse pelo semblante da sua namorada que estava em apuros. Kyle, contudo, foi gentil ao ponto de lhe contextualizar:
-Nosso amigo Crane me deu isso ontem – o “nosso amigo Crane” foi carregado de ironia – É um rascunho do seu livro de memórias. Tem muitas partes falando sobre você.
Nigma estava entrando num novo nível de preocupação. Não era medo de ser difamado perante ao público que lesse essa porcaria tendenciosa, mas o receio de perder a simpatia e o amor da pessoa com quem mais se importa fora a sua filha.
-E o que ele diz? Sobre mim?
De braços cruzados, Selina respondeu secamente:
-É melhor você ler.
**
“Crianças são naturalmente cruéis. Em parte, elas ainda não sabem muito bem dosar seus sentimentos, mas há também o fator externo. Crianças são como transístores, elas conseguem captar as frequências mais baixas da sociedade com muita habilidade. Se elas soam muito rudes e violentas é porque é o que intuem dos adultos.
De certa maneira, o ajudante ideal não podia ser recrutado, mas criado literalmente. Onde Batman encontrava seus soldadinhos? Provavelmente colhia pivetes da rua ou órfãos perdidos nas instituições de acolhimento.
Assim, dediquei os primeiros meses a observar o movimento nas ruas das gangues juvenis, nos orfanatos mais pobres e até num colégio da periferia. Quando encontrei alguns possíveis “candidatos” comecei a preparar suas novas moradas na fazenda que fora de minha avó. No porão havia espaço suficiente para ser dividido em quatro cubículos, quatro quartos.
Uma vez terminado minha aventura enquanto carpinteiro, tratei de capturar os alvos: um pivete que morava debaixo do viaduto, um órfão franzino do abrigo paroquial e uma melancólica estudante. Quem me deu mais trabalho foi o morador de rua, pois por pouco quebrou a seringa com tranquilizante.
Sobre os dois meninos desaparecidos, nenhum pio. A mãe da menina, contudo, apelou para todas as autoridades e deu chorosas entrevistas aos jornais locais. Em pouco tempo, todo o departamento policial e o Morcego estavam empenhados em resgatar a criança.
Eu não estava preocupado. A fazenda era bem distante da cidade e não estava no meu nome – minha avó preferia tê-la queimado que entregá-la a mim. Eu poderia prosseguir com os experimentos sem pressa.
Tentei conversar com eles, explicar qual era o objetivo de sua estadia ali. Tirando o pivete, estavam petrificados de medo. Não conseguiam nem olhar no meu rosto. Claro, a máscara intimida um pouco.
Como não respondessem meu questionário sobre seus medos, precisei ser pragmático: a cada 4h os expunha a uma dose um pouco mais elevada da minha toxina. Eles estavam acorrentados ao catre que coloquei em cada quarto, mas os surtos de pavor lhes davam uma força quase selvagem. Não raro se machucavam ao se debater, ao tentar subir pelas paredes.
Os que não conseguissem se recompor, eu devolveria à cidade. Só estava interessado em encontrar aquele ou aquela que como eu encontrasse no medo um meio de se fortalecer. Como o experimento prosseguisse, foi natural que me desanimasse.
Foi quando recebi uma ligação de um velho conhecido. Edward estava às voltas com um novo plano (envolvia montar um supercomputador) e precisava contar as engenhosas soluções que encontrou no caminho. Depois de se gabar por alguns minutos, perguntou no que estava metido e eu contei tudo. Ele ficou sem palavras. Depois me perguntou um tanto incrédulo: ‘isso é uma brincadeira, não é? Você não iria tão longe?’.
Assegurei que era verdade e que estava me guiando pelo que conversamos naquela noite no meu velho esconderijo. Ele rapidamente desconversou e a ligação não durou mais que um minuto. Rapidamente ele se despediu, como se estivesse extremamente desconfortável. Eu fiquei ao lado do telefone. Senti que ele me ligaria de novo”.
**
-Meu Deus! – exclamou para si próprio enquanto lia – Esse desgraçado...
-Chegou na parte em que ele fala do seu esquema?
-Sim... Espera aí, como assim “esquema”?
Edward parecia bem desnorteado. Selina , por outro lado, estava bem concentrada. Seu pé estava batendo o tempo todo e seus dedos tamborilavam o painel. Ela estava se controlando para não explodir na hora errada.
-Eu lembro que na época você vivia falando desse maldito supercomputador...
-Ah, mas isso não tem nada a ver com ele!
-Ed, você sabia que as crianças estavam com esse maluco e não fez nada! Basicamente a arma dele é a tortura e ele estava com crianças!
Nigma começou a se alterar e suar frio. Era a primeira vez que ela o via gaguejando e olhando angustiado em todas as direções.
-Calma, Selina, deixa eu explicar, por favor!
-Torturar crianças não é demais?
-Eu contei para o Batman! – Edward precisou aumentar o tom de voz, quase gritar, para interromper Kyle – Eu contei para o Batman, assim que soube. Nós não sabíamos onde ele estava. Eu repassei para o Batman os endereços de todos os esconderijos que eu conhecia, mas ele não estava em nenhum. Só descobrimos que existia uma fazenda depois que o menino tinha entrado em coma.
A gata precisou respirar fundo e fechar os olhos. Ela sabia que Edward não era assim tão frio, mas lhe incomodava ainda mais saber que eles continuaram se falando depois disso.
-Ele disse que você ligou uma segunda vez e o encorajou a continuar.
-Sim, eu estava querendo tirar alguma pista de onde ele estava. Selina, eu juro! Você sabe que eu já trabalhei como informante para o Morcego.
-A teoria dele é que você queria que ele continuasse solto, pois assim toda a atenção da polícia e do Batman estaria voltada para resgatar as crianças enquanto você continuava roubando os componentes das big techs para montar o seu...
-Eu sei, parece que o Charada faria isso, mas você me conhece – Nigma pegou suas mãos e com uma voz piedosa arrematou – Eu não seria tão insensível assim. Ele está tentando nos colocar um contra o outro.
-É a cara dele – isso ela tinha que reconhecer – mas como você pode continuar em contato com esse doente depois de tudo isso?
Edward parecia tremendamente envergonhado:
-E-eu gostava dele, das nossas conversas, e também não queria que ele soubesse que tinha ajudado o Morcego. Sabe como ele é vingativo.
Selina sabia que Edward quase sempre tinha bons argumentos para péssimas ideias, mas era alvo estranhamente novo vê-lo admitir pela primeira vez que tinha medo. A arrogância sempre lhe caiu bem, mas essa vulnerabilidade tão sincera o deixava tão irremediavelmente fofo.
-Eu acredito em você – ela deu um leve beijo em sua bochecha – Mas ainda estou zangada.
-Não se preocupe. Eu vou resolver isso.
Nigma se aproximou como se fosse abraça-la, mas ela o conteve.
-Nada disso. Nós vamos.
**
O apartamento não cheirava mais a mofo. Na gestão de Harvey Dent, o pardieiro em que Jonathan Crane mantinha seu esconderijo tinha sido reformado. Agora era um conjunto habitacional vertical. O seu apartamento estava ocupado por uma família.
Ele tentou entrar, mas o porteiro era bem atento. E hoje, com as trancas condicionadas com leitura de íris, é bem mais difícil arrombar fechaduras. O que ele pode fazer foi se contentar em observar lá embaixo, na pequena praça, a janela do seu antigo esconderijo. Ele não tinha pisado lá, mas só de ver as luzes e as plantas no parapeito ele podia dizer que ali não cheirava mais a mofo.
Não, nessa cidade brilhante e nova, ele é o único a exalar um odor fétido. O homem mau que foi esquecido no hospício. Um dos últimos a não sair esclerosado. O bicho papão que a noite abandonou.
-Eu queria ter entrado.
O homem atrás do pobre diabo respondeu:
-Não precisa: lá não está mais cheirando a mofo.
-Eu estava pensando a mesma coisa agora.
-Dizem que os gênios pensam igual.
-Quer dizer que você me considera um gênio?
-Do mal, mas ainda um gênio.
-Então você também se tornou um moralista...
Edward Nigma se sentou no banco de concreto ao lado de Jonathan Crane. Ele estava perto o suficiente dele para perguntar sem floreios ou rodeios:
-Por que fez aquilo, Jonathan?
O homem grisalho ergueu a cabeça, deu uma boa olhada no céu noturno e depois passou a enumerar agressivamente:
-Ressentimento com o maldito que me prendeu, inveja da sua felicidade, pura maldade: pode escolher o motivo.
-Não, eu digo as crianças. Por que fez aquilo?
-Nós éramos maus e loucos. É o que maus e loucos fazem.
-Nós éramos. O tempo passou e o que somos agora?
-Velhos, maus e loucos, apesar de vocês dois se recusarem a admitir.
-Não sei você, mas eu estou cansado de viver sob um rótulo. Eu quero aproveitar o pouco que ainda me resta.
-Bom pra você. Mas o que me restou? Quinze anos e nem mesmo o Morcego estão mais por aqui para eu me vingar. Só sobrou você e a Gata.
-Por que você tem que se vingar de nós?
-Não se faça de sonso. Eu sei que você me manipulou. Você me enrolou e quando seu negócio estava seguro me entregou ao Batman. Não negue.
-Assim que terminei a ligação naquele dia eu fui falar com o Morcego.
Silêncio. Jonathan virou-se. Ele estava olhando bem nos olhos do amigo. Um sorriso começou a se esboçar em seus lábios secos.
-No fundo, no fundo, um samaritano!
-Você tinha ido longe demais, Jonathan. Uma criança ficou em coma!
-Eu não sabia que ele tinha problemas de coração. Batman também levava os seus filhos para situações de risco de morte, mas...
-Mas não somos ele. Nós estávamos errados.
Após breve silêncio, Crane deu com ombros e declarou:
-Bem, o que está feito, está feito.
-E o que vai fazer agora?
-O mundo não é mais o mesmo e eu estou cansado. Nada de grandes planos. Eu só preciso fazer uma saída do palco com dignidade. E já pensei no jeito perfeito – Nesse instante Jonathan tirou algo do bolso do casaco e botou na mão de Edward – Manipulando o manipulador.
Nigma tentou soltar o revólver, mas Jonathan o apertou contra sua mão com bastante força. Ele sabia que estava carregada e um dos dedos de Crane estava no gatilho, contudo, o cano estava apontado para a cabeça do ex-Homem de Palha.
-As testemunhas na praça vão confirmar o tiro, as minhas memórias vão dar o motivo. Você vai ser preso pela minha morte, Nigma. Dez anos por bom comportamento, no mínimo.
Então ouviu-se um estalo e em seguida um estampido. As mãos sentiram uma lapada forte, tão forte que as puxou para trás. Era Selina Kyle e seu famoso chicote.
O tiro passou de raspão, mas a proximidade com o cano causou o sangramento do tímpano de Jonathan, que estava agonizando de dor no banquinho da praça.
-Está bem? – Kyle estava preocupada com Nigma.
-Sim, ele que levou a pior.
-E o que vamos fazer com ele agora?
**
Na sala de leitura do centro de acolhimento especial, um homem franzino de bochechas secas e óculos de armação grossa estava lendo um livro. Ele estava sozinho ali, bem pelo menos estava até chegar uma visita.
Era outro homem, esse um pouco mais simpático. Ele sentou na cadeira e cumprimentou o amigo. Informou que nunca botou muita fé nesse projeto da prefeita Gordon, mas que o local parece muito bom.
-Eu esbarrei no corredor com o Cara de Barro e o Onomatopeia! Foi quase como viajar no tempo.
O leitor continuava impassível, sem tirar os olhos das páginas, ignorando solenemente o seu amigo ruivo e sorridente.
-Me disseram que você anda lendo para os mais jovens do projeto social. Romances de terror, na certa. Já leu Frankenstein para eles?
Nada. Nenhuma resposta, nenhuma fisgada na boca ou mudança de olhar. O leitor seguia compenetrado. Sentindo-se estúpido, o visitante se levantou e caminhou para a porta, quando ouviu uma voz:
-Nigma, obrigado por me parar.
Não havia pitadas de sarcasmo, o que por si só já era incrível vindo de Jonathan Crane. Era apenas uma expressão sincera de gratidão. Mesmo que ele não o encarasse, o infeliz estava sendo sincero. Isso aqueceu de certa forma o coração de Edward, que ao chegar ao corredor comentou com Selina:
-Ele está ficando melhor. Sei que desconfiei bastante no início, mas até que foi uma ótima ideia confiar nesse projeto da Gordon.
Alisando os cabelos dele, a Gata provocou:
-Claro que foi, afinal eu sou uma gênia.
-E eu sou o quê?
-Um cara esforçado, mas não se preocupe você está no caminho certo.
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