— Samantha ligou. — não respondi. — Você vai ligar de volta?
— Claro.
— Reparou que você passou os últimos quatro ou cinco dias vegetando em casa? Vegetando e levantado peso?
Vegetar. Pensei no que Keyla sempre dizia de mim: “garota melancolia”.
— Não fiquei vegetando. E não fiquei só levantando peso. Li. Pensei em Bernardo.
— Mesmo?
— É.
— Pensou em quê?
— Pensei em escrever uma carta para ele.
— Ele mandou todas as minhas cartas de volta.
— Sério? Talvez não responda às minhas.
— Talvez não — ela disse. — Mas não custa tentar.
— Você parou de escrever?
— Parei, Lica. Doía demais.
— Faz sentido.
— Só não se decepcione, tá? Não espere muito. Seu pai foi visitá-lo uma vez.
— O que aconteceu?
— Seu irmão não quis recebê-lo.
— Ele odeia vocês dois?
— Não. Acho que não. Acho que ele tem raiva de si próprio. E acho que tem vergonha.
— Ele devia superar isso. — não sei por quê, mas esmurrei a parede ao falar isso. Minha mãe arregalou os olhos. — Desculpe — eu disse. — Não sei por que fiz isso.
— Lica?
— O quê?
Havia algo em sua expressão. Um olhar sério, preocupado. Ela não estava com raiva nem fazia a expressão séria das vezes em que bancava a mãe.
— Que foi, Lica?
— Você fala como se tivesse outra teoria sobre mim.
— Pode apostar que sim — ela disse, com a voz agradável, gentil e amigável.
Minha mãe levantou da mesa da cozinha e serviu uma taça de vinho pra ela. Pegou duas cervejas e colocou uma na minha frente. A outra, no meio da mesa.
— Seu pai está lendo. Vou chamá-lo.
— O que houve, mãe?
— Reunião de família.
— Reunião de família? Pra que isso?
— Novidade — ela disse. — E daqui pra frente, vamos ter várias.
— Assim você me assusta, mãe.
— Ótimo.
Ela saiu da cozinha. Cravei os olhos na cerveja diante de mim. Toquei o vidro frio. Não sabia se devia beber ou só olhar. Talvez tudo não passasse de um truque. Minha mãe e meu pai entraram na cozinha. Os dois sentaram de frente para mim. Meu pai abriu sua cerveja. Em seguida, abriu a minha. E deu um gole.
— Vocês estão se juntando contra mim?
— Relaxa — meu pai disse, e tomou outro gole de cerveja. Minha mãe bebericava o vinho. — Você não quer tomar uma cerveja com seus pais?
— Acho que não — respondi. — É contra as regras.
— Novas regras — minha mãe disse.
— Uma cerveja com seu velho não vai fazer mal. Nada que você não tenha feito antes. Qual é o problema?
— Está tudo bem estranho — eu disse, e logo dei um gole. — Felizes?
O rosto do meu pai ficou muito sério.
— Já contei do meu tempo no Vietnã?
— Ah, sim — respondi. — Estava até pensando em todas as histórias de guerra que você me conta.
Meu pai estendeu o braço e segurou minha mão.
— Mereci ouvir isso. — ele apertou minha mão por um bom tempo antes de soltar. — Estávamos no norte. Norte de Da Nang.
— Era lá que você ficava? Da Nang?
— Aquela era minha casa longe de casa — ele falou, com um sorriso torto. — Estávamos em missão de reconhecimento. As coisas ficaram bem quietas por uns dias. Era o tempo das monções. Meu Deus, como odiava aquelas chuvas sem fim. Estávamos um pouco à frente de um comboio. A área já havia sido neutralizada. Estávamos lá para garantir que o litoral fosse neutralizado. Então as portas do inferno se abriram. Balas por todo lado. Granadas estouravam. Tínhamos caído numa armadilha. Não era a primeira vez. Mas dessa vez foi diferente. Disparos para todos os lados. A melhor coisa a fazer era recuar. Luis pediu para um helicóptero nos tirar de lá. Tinha um cara. Um cara muito bom. Meu Deus, como era jovem. Dezenove anos. Nossa, um menino.
Meu pai balançou a cabeça.
— Seu nome era Anderson. Um cajun de Lafayette — meu pai retomou, com lágrimas nos olhos. Bebeu um pouco mais de cerveja. — Não podíamos deixar um homem caído. Era a regra. Não se abandona um homem caído. Não se deixa um homem para morrer sozinho.
Percebi no rosto da minha mãe uma recusa absoluta a chorar.
— Lembro de correr na direção do helicóptero; Anderson vinha logo atrás. As balas voavam por toda parte. Pensei que ia morrer. E então Anderson caiu. Ele gritou meu nome. Quis voltar. Não me recordo direito. A última coisa de que me recordo é Luis me empurrando para dentro do helicóptero. Eu nem sabia que tinha sido baleado. Nós o deixamos lá. Abandonamos Anderson.
Meu pai enterrou a cabeça entre os braços e começou a soluçar. Havia uma semelhança entre o som emitido por um homem que sofre e os gemidos de um animal ferido. Aquilo partia meu coração. Passei tanto tempo desejando que meu pai contasse alguma coisa da guerra, mas não suportei ver a crueza de sua dor, a maneira como tinha passado tantos anos, como aquela dor ainda estava viva e intensa logo abaixo da superfície.
— Não sei se acreditava na guerra ou não, Lica. Acho que não. Penso muito nisso. Mas me alistei. E não sei quais eram meus sentimentos nacionalistas. O que sabia mesmo era que meu país eram os homens que lutavam a meu lado. Eles eram meu país, Lica. Eles. Anderson, Luis, Roney e Gio, eles eram meu país. Não sinto orgulho por tudo que fiz na guerra. Nem sempre fui um soldado bom. Nem sempre fui um homem bom. A guerra mexeu com a gente. Comigo. Com todos nós. Mas os homens que abandonamos, esses são os que aparecem nos meus sonhos.
Bebi minha cerveja. Meu pai bebeu a dele. Minha mãe bebeu o vinho. Fizemos silêncio pelo que me pareceu um bom tempo.
— Às vezes, eu ouço — meu pai disse. — Anderson. Ouço Anderson chamar meu nome. Eu não voltei.
— Você morreria também — falei, em voz baixa.
— Talvez. Mas não cumpri minha tarefa.
— Pai, por favor, não… — senti as mãos da minha mãe começarem a correr pelo meu cabelo e a secar minhas lágrimas. — Você não precisa falar disso, pai. Não precisa.
— Talvez precise. Talvez seja hora de acabar com os sonhos… — Ele se encostou em minha mãe antes de perguntar: — Não acha, Marta?
Minha mãe não abriu a boca.
Meu pai sorriu para mim.
— Uns minutos atrás, sua mãe entrou na sala e tirou o livro das minhas mãos. E disse: “Fale com ela. Fale com ela, Edgar”. Ela usou aquela voz de fascista dela. — minha mãe riu graciosamente. — Lica, é hora de você parar de fugir.
Olhei para meu pai.
— Do quê?
— Você não sabe?
— O quê?
— Se continuar a fugir, isso vai acabar com você.
— O quê, pai?
— Você e Samantha.
— Eu e Samantha?
Olhei para minha mãe. Depois para meu pai.
— Samantha é apaixonada por você — ele disse. — Isso é bem óbvio. Ela não esconde isso de si própria.
— Não posso controlar o que ela sente, pai.
— Não. Não pode.
— E além disso, pai, acho que ela já superou. Ela gosta daquela Diana.
Meu pai concordou com a cabeça.
— Lica, o problema não é só Samantha estar apaixonada por você. O problema real, para você, pelo menos, é que você está apaixonada por ela.
Fiquei calada. Apenas olhei o rosto de minha mãe. E, depois, o de meu pai.
Eu não sabia o que dizer.
— Não sei. Quer dizer, isso não é verdade. Sei lá, acho que não. Quer dizer…
— Lica, eu sei o que vejo. Você salvou a vida dela. Por que acha que fez isso? Por que imagina que, do nada, sem pensar, você se joga para tirar Samantha da frente de um carro em movimento? Você acha que isso simplesmente aconteceu? Pois eu acho que você não suportava a ideia de perdê-la. Simplesmente não podia. Por que você arriscaria a própria vida para salvar a de Samantha, se não a amasse?
— Por que ela é minha amiga.
— E por que você arrebenta a cara de um sujeito que bateu nela? Por que faria isso? Tudo isso, Lica, tudo quer dizer algo. Você ama essa menina. — continuei com os olhos na mesa. — Acho que você a ama mais do que pode suportar.
— Pai? Pai, não. Não. Eu não posso. Não posso. Por que você diz essas coisas?
— Por que eu não aguento mais ver a solidão que mora dentro de você. Por que eu amo você, Lica.
Minha mãe e meu pai ficaram me assistindo chorar. Pensei que fosse chorar para sempre. Mas não. Quando parei, tomei um gole generoso de cerveja.
— Pai, acho que gostava mais quando você não falava. — minha mãe riu. Eu adorava seu riso. E então meu pai riu. E, por fim, eu ri. — O que vou fazer? Estou muito envergonhada.
— Vergonha de quê? — minha mãe falou. — De amar Samantha?
— Eu sou uma garota. Ela é uma garota. Não é para as coisas serem assim. Mãe…
— Eu sei — ela disse. — Josefina me ensinou algumas coisas, sabe? Todas aquelas cartas. Aprendi um pouco. E seu pai tem razão. Você não pode fugir. Não de Samantha.
— Eu me odeio.
— Não se odeie, amor. Te adoro. Já perdi um filho. Não vou perder outro. Você não está só, Lica. Sei que você pode ter essa sensação. Mas não é verdade.
— Como você pode me amar tanto?
— Como poderia não amar? Você é a menina mais bonita do mundo.
— Não sou.
— Você é. Você é.
— O que eu faço agora?
— Samantha não fugiu — meu pai disse com a voz suave. — Sempre a imagino apanhando daquele jeito. Mas ela não fugiu.
— Certo — eu disse. Pela primeira vez na vida, entendi meu pai perfeitamente.
E ele me entendeu.
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