Capítulo 11: Um minuto da sua atenção, por favor
-- Deite aqui, que estou com frio. - Abri o cobertor e ofereci a Lorde Kaiser um lugar ao meu lado.
O Imperador ficou um tempo parado no meio do quarto e considerei que ele tinha desistido, que talvez a bebida tivesse perdido o efeito e ele tinha caído em si, percebendo a loucura que era para um Imperador conversar de “igual para igual” com um reles escravo. De repente, ele pulou na cama, de bota e tudo.
-- Sem as botas, que horror. - Reclamei.
Ele sentou-se, tirou as botas e deitou-se novamente, enterrando a cabeça no travesseiro. Puxei o cobertor e cobri nós dois, até as nossas cabeças, fazendo uma cabena.
-- O que é isso?
-- Eu fazia isso antes da guerra, sabe, quando eu tinha uma cama e tudo o mais. É como penso que nem os fantasmas podem nos atacar. - Disse.
-- Não são exatamente fantasmas, são os amorfos da Casa de Ezuuta. Eles não tem forma e parecem invisíveis, gostam de causar confusão e sempre tivemos problemas em conter o ímpeto que alguns deles tinham em se passar por fantasmas e poltergeist na casa das pessoas. - Lorde Kaiser explicou, virando a cabeça na minha direção, seus olhos brilhantes estavam mais apagados que o normal. Por acaso o álcool cria esse efeito? Enfraquece os vampiros? -- Hoje em dia eles usam as “cascas”, armaduras ultra tecnológicas, que funcionam como um corpo para eles.
-- Hmmmm. Eles possuem pessoas também?
-- Ah, sim, é a parte mais divertida de não ter um corpo, segundo eles. - Lorde Kaiser disse, sorrindo, como quem lembra de uma história engraçada. -- Mas não vim aqui falar de Ezuuta. Vim falar de… Nós.
Nós. Existia um plural agora? Eu me sentia eufórico por um lado, havia um “nós”! Ele estava verbalizando isso e me deixava feliz, mas, por outro lado… Como poderia haver um “nós” entre pessoas de classes sociais tão distantes? Não era exatamente a uma união que ele se referia, mas a uma situação, a de hoje mais cedo, na sala de banho. Comprimi os lábios, depois soltei e suspirei.
-- Claro, mas… Para que a conversa seja justa, você tem que fechar os olhos, sei que vampiros enxergam no escuro como se fosse dia e eu não posso enxergar você.
-- Muito bem. - Fechou os olhos, concordando.
Fiquei entregue à escuridão total no quarto. Era muito assustador, mas eu ainda podia ouvir a sua respiração, sentir o calor do meu lado e o peso a mais no colchão. Não senti medo, eu me senti... bem.
-- Agora sim.
Deitei-me sobre o peito dele, me aninhando em seu calor, passando um braço ao redor de seu corpo e Lorde Kaiser prendeu a respiração, como se eu tivesse feito algo proibido. Um pouco depois, como eu não me mexi, ele tornou a respirar e repousou a mão em meu ombro. Essa posição me fazia sentir bem, acolhido, como se eu pertencesse a alguém e gostei dessa sensação… Eu não me sentia sozinho do lado dele.
-- Passei a noite pensando no que me disse. - Lorde Kaiser começou. -- Sobre eu estragar todas as coisas.
-- Ih, desculpe. - Mordi a boca, meu coração deu um salto. Eu estava levando uma bronca? -- Eu não devia ter dito nada daquilo e nem tocado no senhor sem o senhor pedir, majestade.
-- Eydwen? - Ele chamou seco.
-- Hm?
-- Em uma conversa de igual para igual, você pode parar de me chamar de senhor ou majestade? - Exigiu.
-- Ah, claro, desculpe senh… Kaiser. - Nesse instante eu pensei que, se ele estava bêbado, eu não queria que ele lembrasse de nada no dia seguinte. Capaz que eu apanhasse por chamá-lo pelo primeiro nome.
-- Eu não vou mais encostar a mão em você, prometo.
-- Espera, estava lendo meus pensamentos? Então isso não é uma conversa de igual para igual. - Levantei a cabeça do peito dele, encarando-o e ele abriu os olhos. -- E como poderia, você é um vampiro, eu sou um humano… Não é de igual para igual.
-- Mas é entre eu e você. - Lorde Kaiser retrucou.
Ficamos um tempo assim, em silêncio, cada um contemplando a situação, o “eu” e o “você” naquela frase. Eu enxergando o pouco que podia ver no escuro e ele observando o meu rosto sonolento. Seus dedos deslizaram por meus lábios de um jeito sensual e eu acabei com aquela distância - ainda que ínfima, parecia enorme - entre nós, beijando-o.
A princípio ele apenas me deixou sugar sua língua e brincar com o seu sabor, depois, ele veio absorvendo minha saliva e crescendo um beijo maravilhoso entre nós, apertando a mão ao redor de minha nuca e me beijando. O beijo dele me fazia sentir estar flutuando e o mundo todo girando mais devagar e mais depressa ao mesmo tempo. O beijo encerrou devagar e cheio de carinho.
-- Não vou ler os pensamentos, eu prometo. - Lorde Kaiser garantiu, a mão na minha nuca, tomando posse e ao mesmo tempo, protegendo-me.
-- Hm. E posso confiar em você?
-- Sou um homem de palavra. - Ele ergueu as sobrancelhas.
-- É um homem que usa as palavras para manipular tudo ao seu favor, não é exatamente o tipo de homem de palavra que posso considerar confiável. - Ousei.
-- Compreendo. Falhei em ser confiável. Pode me conceder uma chance de redimir? - Pediu.
-- Pode. - Concordei.
-- Você está chateado porque eu coloquei uma coleira em você, não está?
-- Nao disse que não ia ler meus pensamentos? - Arfei.
-- Eu não li, deduzi. - Ele riu, me abraçando e me puxando para deitar sobre o corpo macio dele.
Eu me deitei sobre o seu peito, por cima das roupas, sentindo seu perfume e o calor de seu corpo me envolvendo. Aninhei-me ao lado dele, de um jeito que podia olhá-lo e entrelacei a perna com a dele, nossos pés ficaram se acariciando e sua mão, desceu para a minha lombar.
-- Aquele lance do cachorro nem me incomoda. - Confessei, permitindo o abraço e inspirando o perfume de suas roupas, a fragância mista com o cheiro de álcool.
-- Não minta. Qualquer um se chatearia. - Ele falou.
Eu estava em seus braços, por baixo do cobertor, fiquei com calor e lutei para sair debaixo das cobertas. Ele ficou me observando, com as mãos para cima, no travesseiro e eu amei a forma com que seus cabelos estavam espalhados, em desordem, por cima da fronha branca, formando rios pretos que se misturavam com a escuridão.
-- Não. Não me incomoda. Talvez eu não seja qualquer um. - Provoquei.
-- Acho eu posso tecer um elogio e dizer que você é especial. - Lorde Kaiser mordeu os lábios, sorrindo e me deu um selinho. -- O que acha de mim?
-- Você é ao mesmo tempo fascinante e enigmático.
-- Isso é bom?
-- Diga-me você! - Ri. -- Eu não sei o que esperar de você. Fico curioso, quero descobrir, testar suas reações até conhecê-las, mas não faz sentido! Você se aborrece com tudo… Penso que me ajudou e eu queria agradecer tudo o que faz por mim e minha irmã, mas nunca sei se estou indo pelo caminho certo…
-- Então você me acha confuso.
-- Dicotômico.
-- Não consegue me prever e não sabe se gosta de mim? - Havia um tom de quase insegurança em sua voz. Suas mãos envolveram meu rosto fazendo um carinho e amoleci, como um gato preguiçoso por cima dele, roçando meu nariz no dele. -- Eydwen?
-- Eu gosto de você. Só não sei se você gosta de você…
Lorde Kaiser inverteu a posição comigo, me jogando no colchão e agora a escuridão já me permitia ver o vulto de seu rosto, as formas, os lábios que ele mordeu, cada vez com mais detalhes.
-- Eu sou muito constante, mas você causa essa dicotomia em mim. Sinto-me eufórico e calmo, feliz e triste, irritado e…
-- Irritado! - Completei rindo.
-- Certo, tudo bem, deixo você ficar com essa. Diga-me, o que sentiu a primeira vez que me viu? - Aquela era uma pergunta séria e também uma armadilha.
-- Que você tinha entrado no lugar errado. Não era o tipo de cliente que aparecia naquela fazenda… Mas, fiquei grato por você aparecer.
-- Claro, a oportunidade perfeita de sair daquele lixo de lugar. Um homem oferecendo sacos de dinheiro por você. - Lorde Kaiser rosnou e se afastou um pouco de mim.
-- Não me culpe por isso. Você não sabe o desespero que eu passei.
-- Oh, eu sei. E não sei porque eu esperava que você fosse me dar uma resposta mais…
-- Romântica? Não existe romance no apocalipse. - Suspirei. Lorde Kaiser se afastou, apoiando o corpo de lado na cama. Ele segurou minha mão e ficamos entrelaçando os dedos enquanto conversávamos. -- Mas se existisse, seria exatamente como foi.
-- Ah, concordo. Uma cinderela em perigo, um Imperador, que é muito melhor que um príncipe, aparece para salvá-la. - Lorde Kaiser pontuou. -- É isso que eu sou um salvador?
-- Poderia, mas… O salvador é na verdade a Bela Adormecida, que vai cair em um sono profundo.
-- Então já sabe da maldição.
-- Eu ouvi aqui e ali, perguntei para quem sabia disso. É verdade? Você vai virar pedra e dormir para sempre.
-- Vou.
-- E o beijo do amor verdadeiro vai reverter isso? - Eu o beijei, só para constar;
-- Se fosse um conto de fadas, mas estamos em um apocalipse. - Lorde Kaiser exalou ar, demonstrando tristeza. -- Uma maldição, é uma maldição. Ela se cumpre e acabou! Não existem formas de interrompê-la ou curá-la.
Meu coração doeu. Muito. Eu mal o conhecia, tinha mais motivos para odiá-lo, mas quando pensava em perdê-lo, era como ter parte da minha alma arrancada. Que tipo de ligação era essa, carência? Eu não conseguia entender.
-- Por que uma bruxa amaldiçoaria o próprio Imperador?
-- Não foi uma bruxa. Foi o Deus de nosso Universo. Está previsto nos Registros, o Imperador amaldiçoado. - Lorde Kaiser explicou, deslizando os dedos pelos meus braços, criando um arrepio. Eu reagi, virando a cabeça para o travesseiro e sorrindo. -- Minha única salvação é eu amar e ser amado.
-- Fácil.
-- Bem, aí que mora o truque. - Lorde Kaiser bocejou e eu tirei a cabeça do travesseiro, para enxergá-lo. -- Essa maldição diz sobre um Imperador que não será amado pela única pessoa a quem ele verdadeiramente amar.
-- Deus é cruel. Não importa se é o deus dos homens ou dos vampiros, ele sente raiva e atira toda a sua ira sobre nós. - Eu disse, sentindo uma tristeza me consumir. -- Ele não amaldiçoou só você, mas todo mundo que se apaixonar por você.
-- Não se apaixone, Eydwen. - Lorde Kaiser segurou no meu rosto, me fazendo encará-lo.
-- Acho que pode ser um pouco tarde para isso, Kaiser. - Confessei.
-- Que droga… Eu estava esperando que pudesse ser você aquele que vou amar. - Lorde Kaiser suspirou, girando o corpo e ficando de costas no colchão. -- Sinto muito que não seja você.
-- Não é ruim. Significa que ainda vai encontrar quem você vai amar e pode ser que até lá, essa pessoa ame você também.
-- Às vezes é uma droga não amar, outras vezes, essa frieza emocional te dá poder… - Lorde Kaiser boceja. -- O que nos leva novamente ao ponto em que começamos essa conversa, Eydwen. Sei que quando eu for amar, não serei amado em retorno, mas como vou amar se meu coração é seco e frio?
-- Eu não sei.
-- Eu quero que você me ajude, Eydwen. Quero que você me ensine a ser alguém melhor para o mundo. - Lorde Kaiser pediu.
-- Eu não sei como fazer isso…
-- Descubra. É isso que quero fazer nos meus últimos dias. - Ele bocejou mais uma vez, já de olhos fechados.
Essa manhã, eu não consegui dormir e fiquei velando o sono do Imperador, fazendo carinho em seus cabelos. Teve um momento que ele franziu a testa, como se um pensamento pesasse, beijei entre seus olhos e ele relaxou.
(Continua)
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