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História Probabilidade e o improvável - Domingo


Escrita por: Prejuiza

Notas do Autor


Senti saudade de vocês, demorei mas voltei.

Boa leitura a todos.

Capítulo 17 - Domingo


Pelos olhos da Macarena

A porta pesada de ferro fechou após a Zule entrar.

- Pra quê me chamou? – ela encostou na parede cinza e gelada próximo a porta, com expressão irritada e olhar cerrado. Pelo jeito eu atrapalhei algo muito importante.

- Fahir pegou Román novamente. Não acho que ele sairá vivo dessa vez Zulema – ela bufou e passou a mão na testa.

- Ele é um idiota – soltou em tom cansado como se estivesse afirmando o óbvio pela centésima vez - Não posso fazer nada – ela colocou as mãos nos bolsos laterais da sua calça preta, e encostou a cabeça na parede – O que mais? – ela bocejou cansada, aparentemente não havia dormido direito.

- Nada apenas, pensei que você já estivesse com um plano montado. Só isso – ela acenou positivamente com a cabeça voltando pra posição anterior.

Aproximei-me dela á passos lentos, e ficamos frente a frente.

- O que é?! – ela falou exasperada. Senti meu corpo ficar em alerta, do mesmo jeito quando passamos por um lugar perigoso à noite, aquela sensação de perigo eminente, que nos deixa com a mão suando frio, mas que também nos faz sentir mais vivo. Neguei com a cabeça.

- Nada. É só que... Com essa ficha extensa que você tem Zulema, um dia todas irão sair, e você ainda continuará aqui. O que pretende fazer durante todo o resto da sua estádia em Cruz del Norte? – ela fingiu considerar minha pergunta.

- A mesma coisa que venho fazendo todos esses anos loira.

- Sua liberdade? – ela acenou brevemente, eu sorri em escárnio - Você é um fiasco nisso Zulema – ela abriu os olhos que adquiriram um tom esverdeado juntamente com a raiva saindo pelos poros. Ela agarrou meu pescoço com uma das mãos e me empurrou em direção a parede com as unhas cravadas na minha garganta.

- Qual é a sua loira? Primeiro vem agindo estranho, e agora atrapalhou meus planos por exatamente nada – ela falava baixo e entre dentes de tanto ódio que sentia - Qual é exatamente o ponto aqui? – ela aliviou um pouco o aperto para que eu tivesse ar.

- Quero você – ela afrouxou ainda mais a sua mão no meu pescoço. E ficou me encarando sem expressar reação. Olhei da boca dela para os seus olhos, Zulema deu um sorriso descrente enquanto balançava a cabeça negativamente, e lembrei que tudo com ela é através da negociação – Tenho uma proposta, eu te ajudo a fugir daqui e em troca você me dá um vis a vis completo – ela cerrou o olhar na minha direção.

- E como pretende fazer isso? – expliquei meu plano em detalhes, ela avaliou e assentiu concordando que poderia sim dar certo se fizéssemos alguns ajustes.

- Então, podemos mar- Ela me interrompeu beijando duramente minha boca, o choque inicial de lábios e dentes se transformou em uma dança prazerosa das nossas línguas, coloquei minhas mãos na bunda dela e a agarrei enquanto a empurrei contra mim fechando a distancia entre nós, sua mão no meu pescoço puxou-me em direção à cama. Sentia nossos corpos grudados, o gosto da boca dela, as unhas dela na minha pele. De repente toda essa festa de sensações assim como a visão minha e da Zulema encima da cama, foram ficando amortecidos, distante, e tudo escurecendo. 

- Está na hora de acordar! Vamos! – levantei no sobressalto enquanto a guarda batia o rádio nas grades da cela e as luzes acendiam.

- Tá tudo bem? – Inês mirou-me preocupada.

- Sim. Está tudo ótimo – soltei com ironia e assenti brevemente. Meu cérebro é um belo filho da puta. Os pesadelos eu até entendo, mas isso ultrapassou o limite do aceitável, poderia pelo menos ter sido com a Kabila.

 

 

Pelos olhos da Zulema

Seis, sete, oito, nove e... dez. Sentei no chão massageando os braços doloridos das flexões.

- Que diablos mujer se va a dormir (Que diabos mulher, vai dormir) - a Antonia reclamou da sua cama e ajeitou-se novamente para adormecer.

Deitei de barriga pra cima e iniciei as abdominais.

- Tu deberías hacer lo mismo (Você deveria fazer o mesmo) – soltei um grunhido pelo esforço físico - incluso porque tu estás un poco lleno (até porque você está meio cheinha) – ela bocejou um “tu ir la mierda” (vai à merda).

Fiquei sentada no chão morno e limpei o suor da testa com a camiseta gasta e amassada, mas logo retorno a sessão de exercícios. O pequeno espaço no chão está escorregadio por causa do suor. A cela ainda está no breu, e vez ou outra esbarro na ponta de ferro da cama de alguém.

 

 

 

Pelos olhos do Palacios

- Vejo que já retornou para o contrato anterior? – a senhora Cruz está sentada á minha frente com as pernas cruzadas e seu rosto travado em um sorriso de escárnio.

- Si señorita Cruz, se ha restaurado con todos los valores y plazos del anterior (Sim senhorita Cruz, foi restaurado com todos os valores e termos do anterior) – ela acenou positivamente e continuou a analisar os relatórios com o óculos simples de armação dourada que reluz tanto mesmo sob a luz fraca, acho que é latão banhado á ouro. Armazém de seres humanos deve lucrar muito hoje em dia.

- Ok então Palacios. Algo mais? – falou alto me despertando dos pensamentos longínquos, ela bateu os papéis na mesa para alinha-los e os colocou na mesa virado pra mim. Tirou os óculos guardando-os em uma caixa de veludo preta em seguida pondo tudo de volta na bolsa mediana marrom ornada com detalhes em dourado.

- Creio que não senhorita Cruz – ela assentiu prontamente e se levantou, segui o exemplo e me levantei também, senhora Cruz estendeu a mão pra mim e a apertei levemente em forma de cumprimento, após isso ela seguiu sala á fora.

Sentei novamente na cadeira respirando com mais facilidade. Todas querem o pescoço da Zulema, entretanto apenas uma pequena parcela das detentas é corajosa ou louca o suficiente para tentar esse feito. Carolina quer viajar no final deste ano, ainda não expliquei pra ela que não poderemos ir devido ao meu salário ter sido extremamente reduzido, pra poder pagar o gasto com a quebra do contrato de advogados anterior.

Suspirei já cansado, passei a mão na nuca e em seguida com a mão cheirando agora á perfume passei fracamente no rosto encostando-me ao espaldar da cadeira.

O que eu vou fazer com a Zulema e esse cara perigoso que pode explodir a prisão a qualquer momento? Como vou sobreviver com apenas um terço do meu salário? E pior ainda, como vou gerenciar essa prisão?

Todas essas dúvidas ficam comigo do momento em que acordo até a hora em que vou dormir, quando consigo dormir. Fábio apareceu na casa da Carolina á uns dois dias atrás pra pegar algumas roupas que não havia conseguido levar antes. Ela ficou sem jeito ao dizer me comunicar isso, mas não dei muita importância, sei que o Fábio não iria se aproveitar da situação, quando eu fui lá no dia seguinte abri a minha parte do guarda roupa e vi que ele havia deixado um bilhete escrito “Me perdoe. Seja feliz. Ass. Fábio” estava todo em braille, então não sabia qual era o conteúdo, depois que entreguei a Carolina ela passou os dedos nos pontos e me contou o que era. Fico feliz que ela e o Fábio estejam em paz, mesmo após tudo o que ocorreu.

 

 

 

 

Pelos olhos da Zulema

Suspirei impaciente com a demora da fila pra andar. Quando chegou minha vez peguei a minha bandeja de alumínio com a caneca de plástico amarela exalando fumaça do café com cor de chá, o pão com margarina e uma maçã. Segui pra mesa vazia e sentei ali, a doutora certamente terá uma surpresa quando eu for vê-la, embora ela esteja agindo estranho e está planejando algo.

Mordi o pão seco, e tomei um gole pequeno do café fraco e sem doce. Inês é irmã da Safira a outra cigana que também está aqui em Cruz del Norte, parece que ela e a irmã dela Inês podem se ver através da sala de xadrez que Palacios montou recentemente pra socialização e competição entre os pavilhões, apenas presas sem histórico de violência podem competir e treinar. Safira e Saray passam a maior parte do dia conversando, cantando e fofocando, tudo o que a irmã da Safira conta á ela, é passado pra Saray que por último diz pra mim, aparentemente a loira tem estado bem ocupada ultimamente se esquivando das cantadas de um guarda que faz a ronda próximo ao portão, se não me falhe a memória o nome dele é soldado Augustin, o cara em questão é uns três ou quatro anos mais jovem que ela e tem boa aparência, embora ele hora ou outra transe com uma guarda que fica na sala das câmeras.

Quando levantei a caneca novamente um pedaço de papel que estava grudado caiu do fundo, quando desdobrei o papel minúsculo estava escrito com letra cursiva, “Venga a verme. L.” (Venha me ver. L.) olhei para os lados e entre as detentas conversando e passando de um lado a outro avistei a doutora sem o jaleco branco encostada na porta, escorada pra ficar aberta, e tomando seu café, segundos depois ela saiu.

- Ei Zule o que acha de jogarmos poker hoje? E quem sabe você finalmente compartilhe alguns daqueles cigarros com a gente. Vamos? – a Cigana falou animadamente enquanto depositava sua bandeja próxima á minha com Cachos acompanhando-a.

Comi o último pedaço de pão, e com a outra mão disfarçadamente coloquei o papel no bolso da calça, tomei rapidamente o último gole de café, e levantei.

- Talvez mais tarde Cigana – acenei pra Cachos que disse um “oi” fraco e sentou no lugar em que eu estava enquanto fui levar a bandeja para o lugar destinado, segui até uma guarda que estava vigiando o refeitório próximo a entrada.

- Chefa. Sabe dizer onde a doutora está? – acenou negativamente.

- Vá no pátio, ela gosta de tomar seu café da manhã lá, se não encontra-la tente na enfermaria – assenti brevemente com as mãos nos bolsos laterais da calça preta.

- Obrigado – ela acenou cordialmente e segui pro pátio.

A doutora está sentada junto aos bancos e mesa de cimento, tem-se um copo de café ao lado e ela está comendo salada de frutas que está em uma bandeja pequena de isopor, é desagradável ficar aqui fora por muito tempo nesse horário, o vento está forte e acaba trazendo sujeira e areia pra dentro do pátio e vez ou outra acaba ficando nos olhos.

Fui até ela á passos lentos e com os braços cruzados, se eu fosse com as mãos nos bolsos as duas guardas que estão ali no portão iriam atirar primeiro e perguntar depois.

- Sente-se – ela me olhou de lado brevemente e voltou a comer.

Quando sentei próximo a ela notei que havia um hematoma quase imperceptível em sua testa.

- Ele te fez uma visita? – a doutora acenou desdenhosa.

- Algo do tipo. Aceita? – ela se referia à salada de frutas, neguei levemente – Tem certeza? Perdi a fome e se você não comer vai acabar no lixo.

- Me dê – ela suspirou exasperada e empurrou na minha direção à bandeja pequena com a colher descartável. Cutuquei por um tempo as frutas, e em seguida comecei a comer. Quando eu terminei ela ainda estava finalizando seu café e olhando para o portão principal mais a frente brevemente coberto de areia – Não tenho o dia inteiro – ela assentiu lentamente ainda assoprando o café.

- Eu sei que você já a conhece. Digamos que me dói a alma em ver, o quanto Castillo consegue ser óbvio às vezes.

- Sutileza não é o forte de algumas pessoas – a doutora sorriu brevemente concordando.

- Você quer contata-lo e eu sei de alguém que pode fazer isso – “não será ela a fazer isso porquê já está tendo bastante trabalho em esconder a filha” é eu creio que sim, e também é certeza que Fahir vai achar que ela está trabalhando comigo. Balancei a cabeça positivamente concordando com os meus próprios pensamentos em silêncio. – Tudo isso não irá durar muito.

- E qual é a troca? – ela bebeu o último gole do líquido marrom já morno.

- Maelumat ean hayaati (Informação, pela minha vida). Avise para a sua amiga, namorada, colega, ou seja lá o que for, que aquele cara que vem cortejando-a está quente – traduzindo ele está trabalhando com o Fahir – e vai ferver ela – em resumo, vai matá-la – mas com o incentivo certo, ele também pode um ótimo mensageiro.

- Um ou dois – é o número que eu vou cortar de uma das mãos dele.

- Talvez os cinco. Mas deixe em bom estado – interessante, creio que seja pra dar tempo de reimplantar depois – Pra alguém que já cozinhou uma face com o vapor do ferro de passar, isso será fácil – bufei e concordei.

- Yolanda – lembrei-me dela brevemente – não foi pessoal.

- E dessa vez será? – falou tranquilamente enquanto olhava o desenho impresso no copo de isopor.

- Não. Como diria aquele mafioso que eu não lembro o nome – respirei fundo tentando achar paciência pra toda aquela formalidade - São apenas negócios – nesse caso o meu investimento principal é a minha liberdade. Ela sorriu disfarçadamente.

- Claro. Bom... Já está tarde. Vou indo. Qualquer coisa, sabe onde me achar – acenamos em breve cumprimento enquanto a doutora voltava para a enfermaria, eu continuei sentada no banco, peguei um cigarro do bolso da calça fui até o guarda mais próximo e acendi, sentei no chão próximo as grades perto de uma flor amarela que nascia do musgo no chão de cimento, passei o dedo levemente nas pétalas.

Interessante, a proposta exata foi, o lobo está me convidando pra me juntar-me a alcateia e lutar ao seu lado, caso contrário irá confabular com o inimigo pra me devorar viva. Uma única palavra pode ter muitos sentidos, vai depender de quem as pronúncia. O significado de uma palavra depende de muitas coisas, varia do lugar, da pessoa, do tempo, do sentimento, do tom. Aqui na prisão nada é o que realmente deveria ser.

O recado foi direto.

Me ajude, ou eu te mato.

 

 

 

 

 

 

Pelos olhos da Macarena

- Quanto tempo ainda tenho aqui? – o advogado do outro lado do vidro segurando o telefone avaliou um monte de papeis que hora ou outra caia no chão por estarem mal empilhados na frente dele.

- Bom os sete anos foram retirados, porém você tinha mais cinco devido a tentativa de fuga e tudo mais, você está aqui desde de 2015, correto? – acenei confirmando – ok... – ele começou a murmurar pra si mesmo “estamos em 2019, creio que a tramitação da documentação vá demorar uns bons dois meses” - Você poderá pegar a condicional no final desse ano.

- Sendo assim ainda tenho três meses pela frente? – ele considerou a minha pergunta e depois assentiu.

- É melhor do que cinco anos – bufei e abri um sorriso.

Me despedi do advogado e fui pro pátio. Inês veio correndo na minha direção.

- E ai como foi?

- Ainda tenho dois anos. Vai demorar um pouco ainda – ela deu de ombros e concordou. Aqui dentro se você quiser arranjar problemas é somente sair anunciando por aí que já está pra ter a condicional.

- Nossa. Pensei que você teria menos tempo – mudei o assunto e passamos a conversar do clima e sobre algumas fofocas de traição e novos casais entre as detentas daquele pavilhão.

 

 

 

Pelos olhos da Zulema.

Estava na lavanderia quando a guarda me chamou.

- Nove seis seis é você? – ela olhou a prancheta que tinha em mãos e apontou pra mim.

- Isso chefa – deixei o último cesto de roupa limpa próximo ao balcão de passar roupa.

- Você tem visita – ela tirou o óculos rapidamente e o guardou no bolso.

- De quem?

- Alguém chamada Alhena – me encostei na secadora descrente no que tinha ouvido, já fazia trinta anos que não ouvia esse nome – vai ir ou não? – recobrei a compostura e segui a guarda.

Ela estava em pé na frente do vidro, olhei sem acreditar no que estava enxergando.

- Zulema. Há quanto tempo... – ela segurava o telefone para falar. Sentei na cadeira, com o arrependimento de ter vindo correndo por cada fio de cabelo.

- Alhena... O que queres? – ela engoliu a seco e me olhava com receio, seu véu verde preso a baixo do queixo, e seu olhos, o tempo não havia passado pra ela. 

- Rashida, está doente. Achei que deveria lhe avisar. – Cerrei o olhar, mordi a bochecha.

- E o que eu tenho haver com isso? – encostei-me à cadeira com as pernas abertas, tentando ficar calma.

- Você como filha, tem o dever de – a interrompi levantando da cadeira.

- Não, eu não tenho. – Voltei com a guarda para o térreo.

- Zulema você tem visita! – olhei para o guarda desconfiada e o acompanhei até a sala - Meu coração subiu na boca. Não podia ser. Depois de trinta anos. Quando tentou me casar, eu tinha treze anos, mas Alhena, minha tia, deu-me o último incentivo pra não fazer isso, “Fuja Zulema, fuja!” – Voltei para a porta de ferro pensando em ir embora, “ela não veio aqui de graça, melhor me inteirar do que se trata”. Respirei fundo mais uma vez, um último gole daquela maldita coragem que queria me abandonar, segurei a grade do corredor e segui.

Parei em frente do seu olhar morto, e sentei. Somente seus olhos estavam fora da sua burca preta.

- Tinha esperança de que estivesse morta – ela desviou o olhar. – Trinta anos sem saber de mim... Mudei muito? – ela voltou a me encarar, aquela figura estática estava me dando náuseas, quanto mais rápido acabasse, melhor. – Porque veio mãe? – ela abaixou o véu de seu rosto e finalmente falou. Já havia esquecido do seu rosto, ou da sua voz. Agora terei o desprazer lembrar.

- Só quero falar com você. – “ Depois de malditos trinta anos, agora ela quer falar comigo?” Ouvia os batimentos do meu coração em meus ouvidos.

- Eu não quero falar com você. – Já me faltava o ar. Não conseguia encarar seus olhos, olhei para o vidro da separação da cabine e me recordei daquele momento, passei o dedo no vidro simulando a borboleta branca que vi naquele dia. – Você se lembra. Aquele dia. Em que, uma borboleta entrou no meu quarto? Não podia voar. E tentava sair pela janela, você entrou e arrancou as suas asas, e deixou o corpo com vida. – um cansaço me atingiu, meu coração de repente cansou de martelar em meu peito, e resolveu doer para mostrar o seu desgaste – E me disse: - O que não pode ajudar a viver, ajude a morrer.

- Eu fiz o que tinha que fazer – suas tentativas de justificar me irrita, porém a tristeza me irritava ainda mais.

- Quer me dizer porquê diabos você veio?

- Fátima – “Ela não lembrou-se de mim por trinta anos, e de repente, magicamente lembrou da neta” – Talvez eu não fosse uma boa mãe. Mas eu tentei ser uma boa avó – bufei e ri em ironia. – Ela. Não é como você. Eu vim para pedir que a transfira, para a prisão que estava antes. Será mais fácil, se você falar com o diretor.

- Eu queria que você tivesse se preocupado comigo mãe. Mesmo que fosse um pouco.

- Talvez, se não tivesse te feito forte, não teria sobrevivido. – “minha vontade, era atravessar aquele vidro e matá-la”

- Não fale o que você não sabe. Você não sabe quem eu sou. Não sabe quem eu sou.

- E eu não quero saber! Só quero que ajude a Fátima – minha boca tremia, sentia o ódio subir pela minha garganta, após tantos anos, ela veio aqui para gritar que novamente, não quer saber de mim.

- Você... a levou assim que nasceu. Você a levou assim que nasceu.

 

Acendi um cigarro espantando aquela memória sombria, encostei-me no batente do enorme portão de metal que dá acesso pro pátio, observei o movimento por ali, uma das detentas que estava jogando basquete iria esmagar a flor pequena e amarela que brotava do musgo no chão de cimento, fui até lá e tirei a flor, é pequena e frágil. Fiquei ali agachada perto da grade até a Cigana me chamar.

- Zule vai começar – a voz dela saiu rouca e sem força.

- Vale (ok) – dei uma última tragada no cigarro já o descartando e a flor eu levei comigo. Fui em direção a porta quase sempre fica fechada, que é onde fica a capela.

A capela em Cruz del Norte é menor e menos aconchegante, os bancos de madeira envernizada, a cruz na frente é de prata os castiçais nas duas laterais está com vela de sete dias, tem-se o cheiro de incenso e defunto no ar. Os guardas também estão aqui fingindo prestar as condolências.

O caixão aberto está no meio da capela, algumas detentas choram em silêncio, outras rezam, mas a maioria apenas observa todo o evento se desenrolar na frente delas.

O padre em questão chegou com a sua batina na cor verde, e começou o velório. Pelo que entendi dos cochichos das detentas mais velhas é que a família da Dolores não está atualmente na Espanha e estão no meio da viajem e só chegarão aqui amanhã, então o corpo foi liberado e o Palacios pediu a permissão dos familiares e da coordenação do presídio, após ambos aceitarem ele organizou o velório apenas para o nosso pavilhão com as detentas que cumpriram mais de quatro anos de pena no presídio ficando aberto também para as detentas já idosas.

Após aquela coisa toda do padre rezar e alguém mais próximo falar algumas palavras o caixão foi liberado para irmos até ele e prestarmos nossas homenagens ao corpo.

Fiquei próximo a ele coloquei a flor entre os dedos duros e frios da Dolores, e sussurrei “wafaqak allah , fa'iina dhanbi dafaet bidam waearaq alakharin” (Que Alá lhe conceda a justiça, do meu pecado pagado com o sangue e suor alheio.).

- “li'ana almutaham mudhnib mithl almutaham” (Pois o acusado é tão culpado, quanto o acusador.) - a doutora completou se aproximando e deixando um ramo de mini margaridas próximos a região das pernas do corpo. Sorri fracamente.

- “allaamutanahi fi alkhatiyat alati tajtahuha al'ard , wafi aljasad aladhi takuluh al'ard”  (O infinito, está no pecado que a terra varre, e no corpo que a terra consome.) – acenamos em breve cumprimento e seguimos para os nossos lugares nos bancos de madeira.

Alguns minutos mais tarde o caixão foi levado e seguimos pra nossa rotina do presídio.

 

 

 

Pelos olhos da Macarena.

Um guarda trouxe a solicitação de vis a vis da Zulema. Nunca vou me acostumar a pegar esse bilhete com o nome e o número da detenta que solicitou, no caso as informações são da árabe.

Quando cheguei na sala, foi a mesma coisa de antes tive que ficar lá esperando eles trazerem a Zulema, e quando ela entrou percebi que estava estranha, ela estava aérea.

- Zule.

- Loira – assentimos como forma de cumprimento rápido e ela seguiu pra cama e deitou de barriga pra cima e com o braço tampando os olhos – Qual o nome daquele guarda que você gosta?

- Como assim? Que guarda? – ela ficou alguns segundos em silencio – o Augustin – ela confirmou – por Deus, aquele cara é nojento. Mas o que tem ele?

- Parece que ele e o Galleta (bolacha) se dão muito bem.

- E me deixe adivinhar. Ele quer me matar?

- Bingo.

- Que novidade – soltei com ironia e suspirei cansada. Ela continuou deitada na cama e eu sentei no chão próximo a parede.

- Seu amante vai perder os dedos

- Qual á finalidade?

- Quero conversar com o Fahir e ver qual a proposta dele. Talvez ganhar algum tempo antes que ele mande a prisão pelos ares. E esse idiota é a melhor chance no momento – ela coçou o pescoço despreocupada e retornou pra posição anterior.

- Simples assim?

- Se tiver algo melhor eu adoraria ouvir.

- Não. Vai nessa. E em questão dos dedos eu só lamento que não poderei estar junto na hora – ela zumbiu concordando – Zulema. Aconteceu alguma coisa hoje? Você está estranha – ela imediatamente se sentou na cama e suspirou.

- Só estou pensando loira. Creio já terminamos então – ela não iria me dizer, só havia um modo de confirmar a minha suspeita.

- Espera – ela estava próximo da porta e eu levantei do chão e batia as mãos na parte de trás da calça pra tirar a poeira do chão – eu conversei com meu advogado hoje e ele me disse que em um mês eu já consigo a condicional – ela cerrou o olhar e balançou a cabeça positivamente. Algo definitivamente aconteceu.

- Hm. Boa sorte pra você – ela iria bater na porta mas eu coloquei a mão no ombro dela.

- Zulema? – perguntei de forma ambígua, algo como, "o que aconteceu?", e, "você está bem?"

- Loira eu entendo que a prisão seja uma merda, mas pare de usar drogas, está te fazendo muito mal – ela deu meio sorriso.

- Eu acabei de falar que posso sair amanhã mesmo e você simplesmente não me ameaçou pra montar um plano magnifico de fuga ou sei lá mais o que. Anda, admita, você não está bem, e claramente, alguma coisa aconteceu.

- E porquê caralhos você quer saber? – a Zule colocou as mãos no bolso da calça.

- Porquê somo gêmeas univitelinas, lembra? – ela tinha dito isso pra mim enquanto tentávamos resolver a questão com as chinesas – e seja lá o que aconteceu com você uma hora ou outra vai me afetar também.

- Não é nada de importante loira, vai por mim, se fosse algo como a prisão vai explodir ou a Kabila fosse tomar um tiro, eu te avisaria – me venderia a informação ela quis dizer, porque no segundo seguinte ela iria me colocar em algum plano maluco dela pra compensar.

- Zulema. Você teve coragem de contar pra Saray que tinha uma filha. Mas não tem coragem de contar pra mim seja lá o que diabos aconteceu? – pode não parecer mas deixei ela sem alternativa. Caso ela não responda agora é porque algo da mesma magnitude aconteceu e ela não é de mostrar essa fraqueza, e se Zulema me der essa abertura ela sabe que usarei isso a meu favor.

- Uma mulher chamada Rashida está doente – assenti absorvendo a informação.

- É a sua tia? Mãe? Talvez irmã?

- Ela não é nada minha. É apenas uma mulher precária, que está doente – ela deu três batidas na porta de ferro – Chefa! Terminamos! – a mulher robusta abriu a porta e alternava o olhar entre a Zule e eu.

- Tem certeza? Vocês ainda tem vinte minutos. Talvez esse tempo seja necessário pra colocar a relação em dia – ela sorriu em ironia.

- Temos certeza – falei brandamente e a árabe estendeu os pulsos pra guarda algemar.

Cada uma seguiu pra sua cela. Se ela quer que seja assim por mim não tem problema, embora eu pretenda devolver na mesma moeda.

 

Assim finalizou o dia.


Notas Finais


Obrigado pelo seu tempo...
Até o próximo capítulo.


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