Eu nunca tinha conhecido os meus avós. O meu avô porque ele morreu quando a minha mãe tinha doze anos. A minha avó porque elas não se falavam desde que minha mãe decidira sair de casa e ir morar na cidade. No começo, elas até trocavam cartas, ela me contou, mas então minha mãe conheceu o meu pai e o meu pai era um acadêmico comunista.
Ser comunista nos anos setenta não era muito legal. Minha avó não quis saber disso, porque os meus pais decidiram entrar pra guerrilha e lutar contra a ditadura. De minha parte, eu sinceramente amava a bravura dos meus pais. Mas, no ponto de vista da minha avó, isso aí foi mais do que ela supôs aguentar: era melhor cortar de vez as relações com a filha do que vê-la torturada, ou saber que estava desaparecida. Sinceramente, não entendo muito a minha avó, mas ao mesmo tempo eu entendo. A questão é que a minha mãe engravidou, eu nasci, a ditadura acabou, meus pais se separaram e eu ainda não a conhecia.
Então, em um belo dia durante as minhas férias no verão da faculdade do ano de 97, minha mãe decidiu que queria voltar pro interior e ver a minha avó. Acho que elas tinham voltado a se falar pouco tempo atrás, eu via algumas cartas e telegramas. Era um dia quente e melancólico.
Existem dias em específico que eu me sinto irremediavelmente triste por nenhum motivo muito visível. Eu odeio esses dias porque eles, além de infundados, parecem intermináveis. Como se dentro de mim eu abrigasse o vazio do universo, o infinito espaço temporal e sugasse tudo de uma vez, transformando-me na materialização da melancolia. A melancolia, aliás, não parece fazer o mínimo sentido para mim, porque ela é um limbo. Não é nem uma coisa, nem outra. Não é um estado de tristeza profunda e muito menos aproxima-se da alegria e, mesmo assim, ela me é necessária porque sou naturalmente melancólico. Gosto de pensar que eu nasci assim mesmo e ponto, mas não é verdade. Em algum momento eu me construí dessa forma e me acomodei nesse meu pequeno egocentrismo: Bourdieu costumava afirmar a teoria do gosto, que nossos gostos se formavam a partir das experiências que temos na vida. Nada é inerente ao ser humano, tudo é criado e eu concordo com ele. Sendo assim, eu sou só uma consequência criada a partir das circunstâncias que me moldaram.
Hoje é um daqueles dias em que eu me sinto irremediavelmente melancólico sem motivo aparente. Eu odeio me sentir assim, porque não há o que fazer com essa... Coisa que eu sinto. Se eu estivesse triste, então eu choraria. Se estivesse alegre, sorriria. Se sentisse tédio, não faria nada. Esse sentimento me remete à falta, mas eu não sei do que é que eu sinto falta. Alguma coisa dentro de mim está faltando, mas eu não posso sequer procurar esse pedaço que me falta quando não sei o que é e nada me é mais angustiante do que essa sensação.
Eu acordei meio assustado com o barulho da furadeira. Minha mãe tinha contratado uns caras para fazerem uns consertos no apartamento que morava só nós dois, coisa que não me interessava muito. Eu costumo ter uma sensibilidade forte em relação a sons altos. Quando o barulho parece maior, eu sinto que ele perfura todo o meu corpo. É uma vibração que me consome de um jeito muito negativo e é por isso que não posso ouvir músicas altas nos fones de ouvido do meu walkman e do meu discman, e eu costumo detestar quando pego carona pra voltar da faculdade com o Konoha e ele põe o CD no rádio em um volume muito alto: “Somos jovens e somos livres”, ele ri. Eu queria rir junto com ele, mas tudo o que eu consigo pensar é que eu sinto que algo está ecoando dentro da minha cabeça de uma maneira tão forte que eu vou ser consumido por isso. Além disso, eu não sou livre. Não como o Konoha, pelo menos.
Se eu soubesse tocar algum instrumento, definitivamente não seria uma bateria. Um dia, eu fui no ensaio da banda do Yamato e toda vez que ele batucava as baquetas no tambor, meus olhos piscavam junto e, se fosse inconsciente, o meu corpo sairia pulando. Eu arrepio todo, parece que alguém tá balançando rudemente o meu coração, sem cuidado nenhum, e a minha cabeça segue esse embalo, minha cabeça sempre segue o embalo do que eu estou vendo e ouvindo. O som me chega a ser doloroso porque toda a vibração me arrepia a pele. Parece que a baqueta está tamborilando o meu coração. Esse também é o motivo de eu não conseguir estudar escutando música, como a maioria dos meus amigos fazem. Além de ser distraído, eu não consigo dividir a minha atenção quando percebo sons muito visíveis ao redor. Um dia me irritei com um passarinho cantando na minha janela. Eu também detesto sons muito repetitivos. É, manias chatas para uma pessoa chata.
Tudo isso só para tentar demonstrar como é torturante o barulho da furadeira na parede: esse, para mim, além do escapamento solto de uma moto, é o som mais insuportável que existe. O som da furadeira me faz querer tapar os ouvidos e gritar para que isso pare porque ele me faz ficar absolutamente desesperado. Sons dolorosos. Já pensou nisso? Esse som é doloroso demais pra mim. O pior de tudo é que quando ele acaba, o meu ouvido parece ficar meio... Surdo. É difícil descrever, mas alguma coisa ressoa no meu ouvido de uma maneira muda. É um silêncio com som.
Foi assim que eu acordei naquele dia. Era onze da manhã, o que ainda estava cedo para os meus padrões de férias. Eu levantei tapando o ouvido e já ia procurar uma roupa qualquer para sair de casa e me livrar daquele inferno quando minha mãe entrou no meu quarto.
— Prepara uma mala, a gente vai ir visitar sua avó.
Bem, é claro que eu fiquei surpreso. Principalmente com a autoridade repentina da minha mãe, que dificilmente me mandava fazer alguma coisa. Ela era bem livre e me deixava agir da maneira que eu bem entendesse — deve ser por isso que eu sou tão chato. Mas, principalmente, porque a gente ia visitar a minha avó. Dezenove anos de vida e ela me dizia que a gente ia visitar a minha avó agora? Qual era a dela? Me senti levemente traído. Tipo, a gente deveria ter feito isso muito antes, quando eu era uma criança e ficava imaginando quais seriam as feições da mãe da minha mãe. Eu até chorava pensando nisso. Agora, já não me era nem de longe tão emocionante, só... Curioso.
Foi essa curiosidade que me fez arrumar a mala bem rápido. Peguei uma bolsa grande e separei algumas roupas, uns livros, umas fitas e uns CD’s. Não sabia muito bem o que esperar. Já tinha ido para o interior algumas vezes antes, poucas, admito, e todas elas em viagens de família, quando meus pais ainda eram casados, durante as férias, mas não me lembro muito bem. Meu pai adorava cidades do interior porque, nas palavras da minha mãe, ele sempre viveu na cidade. Pessoas da cidade são as únicas que amam o interior, aliás, pessoas da cidade amam muitas coisas, ela costumava dizer, e ainda continuava: por exemplo, as pessoas que moram no litoral dificilmente ficam repetindo o quanto elas amam o mar. Aposto que ficam de saco cheio dele quando é alta temporada. Minha mãe às vezes era bem amarga, como se pode notar, e provavelmente também deve ter sido ela a principal responsável pelos meus pensamentos irônicos e amargos. Chato, como ela diz.
Descemos o elevador, entramos no carro, ela fez um sinal da cruz, católica como era, e nós partimos. Os caras consertando nossa cozinha continuaram lá. Ela deixou a chave com a vizinha. Pelo menos eu me livrei do barulho e isso era um alívio imenso. Ufa.
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