Distrito de Dong-gu, Busan — 10.11.1989
Querido Kyungsoo,
O futuro é uma cilada. Você não pode escapar dele. Como um filme de suspense, quando você menos espera, ele o segura pela mão e o força a caminhar, mesmo que você ainda não saiba para onde deseja ir. É assim que o futuro é. Impetuoso, ansioso. Ele não espera que você decida ser um médico, um dançarino, um escritor ou o que quer que seja, e apenas o empurra na direção que lhe parece mais favorável. Ou que os outros achem mais favorável.
Silencioso e astuto como um felino, ele está sempre lá, à espreita. Esperando que você tome decisões com as quais não concorda, seja obrigado a frequentar aulas de um curso que não gosta ou a descobrir que, na verdade, você não se encaixa no padrão que as pessoas consideram ideal. Ou descobrir que está tão perdido que não sabe sequer quem é você mesmo.
Mas o futuro também é misericordioso. Ele permite que você refaça seus passos e decida por si mesmo. Porque, mesmo com todos os tropeços, você pode se levantar e começar de novo. Fazer uma nova escolha. Tomar um caminho diferente. Modificar o destino.
O universo é impaciente, Kyungsoo. Você não deveria viver se privando das coisas que quer fazer.
Por isso, mesmo que seja a última vez, ligue aquele toca-fitas empoeirado que você mantém guardado na gaveta, coloque sua música favorita para tocar. Imagine alguém especial enquanto faz seus dedos dançarem ao ritmo da melodia sobre as próprias pernas. Feche os olhos. Pense em mim. Escreva um romance, ou um suspense. Escreva sobre nós. Faça um desenho, mesmo que você seja péssimo nisso, porque é a experiência que importa. Dance na chuva, ou no quarto em frente ao espelho… Dance comigo. Sem ninguém para interromper seus pés pisando acidentalmente nos meus.
Componha poemas, letras de canções ou frases soltas. Veja o sol se pôr num sábado à tarde. Saia para correr de manhã cedo, ouvindo como os passarinhos cantam no alvorecer. Viaje pelo mundo. Compre um presente para o seu melhor amigo. Abrace os seus pais. Descubra quem você é. Diga “Eu te amo” pela primeira vez.
Faça tudo que você quiser fazer hoje, Kyungsoo. Porque o futuro é agora.
E ele não espera por ninguém.
『▪▪▪』
Há coisas que só melhores amigos podem fazer por você. Assaltar um supermercado para roubar gibis de Watchmen, por exemplo. Invadir o clube de teatro no meio da madrugada, resgatar um amigo precioso ou se infiltrar na casa de um desconhecido para uma investigação criminal. Seja o que for, são coisas que só uma amizade verdadeira seria capaz de sustentar.
Quando estamos cara a cara com a porta de madeira, Chanyeol ergue a sua alavanca com aquela expressão de um arrombador de fechaduras profissional — a testa franzida, a boca num biquinho concentrado e os olhos atentos a cada movimento. Depois de ajeitar o boné vermelho e branco na cabeça, o Park dobra os joelhos e se agacha em frente ao seu alvo, com seu ajudante Baekhyun auxiliando-o a encontrar as ferramentas certas na pequena caixa cinza de plástico.
Zitao apaga o cigarro na caixinha do correio e o joga no gramado, sendo severamente punido por Hwasa com tapas contra sua jaqueta e petelecos na testa, porque, segundo sua experiência assistindo a filmes de mistério, “não podemos deixar pistas, panacas.”
— Sem deixar rastros — Kyungsoo concorda, e então o chinês finalmente recolhe os vestígios que deixou para trás.
A porta abre com um rangido alto, quase como se fizesse de propósito. Baekhyun e Chanyeol comemoram baixinho, mesmo que o ruído das dobradiças velhas e enferrujadas já tivesse feito o trabalho de nos denunciar para toda a vizinhança.
O Park invade a casa apenas com metade do corpo, observando o lado de dentro e acenando com a cabeça, avisando que a barra está limpa. Assim, antes que algum vizinho veja todos aqueles adolescentes metidos a detetives entrando na casa dos Lee, entramos em disparada e fechamos a porta, suspirando de alívio.
Um passo de cada vez, penso comigo mesmo.
Bomi tira da sua bolsa dois walkie-talkies e entrega um a Zitao, testando a comunicação entre ambos.
— Vamos nos separar — ela diz, apertando o botão enquanto fala. — Eu, Hwasa e Baekhyun procuramos aqui em baixo. Você e os outros procuram lá em cima. Câmbio.
— Tudo bem. Câmbio.
De frente um para o outro e com os aparelhos em mãos, eles trocam um olhar cúmplice e viram de costas, tomando caminhos diferentes. Tudo naquela cena me faz pensar que estamos protagonizando o melhor filme de mistério da história. Talvez seja o casaco quadriculado que peguei emprestado com meu pai, e que agora parece enorme nos meus ombros, porque Zitao não é o único que quis se vestir a carácter. Kyungsoo também carrega uma lupa no bolsinho da camisa, a boina cinza que ele colocou na cabeça me fazendo lembrar do jovem Sherlock Holmes em O Enigma da Pirâmide.
Somos a mistura perfeita de detetives e agentes secretos prontos para uma aventura.
Quando subimos a escadaria de madeira, fazemos esforço para que nossos passos sejam sempre silenciosos. Ela range no penúltimo degrau, mas não é suficiente para que a vizinhança perceba a movimentação estranha. O único ruído vem do chiado do walkie-talkie toda vez que o outro grupo entra em contato para avisar que encontraram alguma coisa, ou para dizer que a barra está limpa.
Há muita poeira e teias de aranha por toda parte, talvez porque o senhor Lee não esteja exatamente interessado em limpar a casa na ausência da esposa. O corredor inteiro cheira a cigarros, bebida barata e a fezes de alguém esquecida na privada do banheiro.
— Estamos na cozinha — Bomi avisa. — Nada aqui. Câmbio.
— Estou no banheiro do segundo andar — responde Zitao, metade do corpo enfiado num armarinho repleto de papel higiênico. — Além de um cocô teimoso que não desceu descarga abaixo, nada por aqui também. Câmbio.
— Procurem no quarto — alguém diz do outro lado, mas dessa vez a voz é de Baekhyun. E a voz da garota soa outra vez ao fundo, reclamando algo sobre o Byun não ter dito câmbio ao final da frase. — Ah, eu esqueci. Me desculpem. Câmbio, desligo.
Chanyeol ri, um sorrisão estampado no rosto enquanto ele se abaixa diante da porta de madeira. Ele murmura um “Ele é fofo”, mas sai tão baixinho que eu só escuto por estar muito perto, ajudando-o a destrancar o quarto de Sehun com o seu kit especial para arrombar fechaduras.
Ele não demora sequer um minuto para terminar o serviço. Como esperado de um profissional.
Quando dou o primeiro passo e piso no tapete, sinto aquela emoção outra vez. Um misto de adrenalina por estar entrando em território proibido e saudade, como se eu pudesse de fato vê-lo ali jogado sobre a cama em um dia comum, ouvindo suas fitas-cassete com Taemin ou amarrando um barbante no caminhão de brinquedo para que o pequenino pudesse arrastá-lo mais facilmente por aí. Mas é só uma miragem, é claro. Uma coisa que só acontece na minha cabeça.
Ao meu lado, Kyungsoo parece tão emotivo quanto eu. Seus olhos brilham quando ele vê o quarto pela primeira vez, olhando para cada cantinho como se ele fosse especial. Como se ele pensasse “Ah, então era aqui que Sehun dormia” e ficasse feliz por saber que ao menos o garoto tinha um lugarzinho confortável para se deitar.
Zitao não é lá um rapaz muito sensível, e sua primeira reação é vasculhar o cômodo sem tirar nada do lugar. Ele procura dentro do armário de duas portas, tirando as peças de roupa do lugar só para colocá-las cuidadosamente arrumadas de volta. Ele também faz isso com a caixa de brinquedos velhos ao lado da cama, tentando mantê-los organizados mesmo depois de arrancar um por um dali de dentro.
Com seu olho direito triplicando de tamanho por trás da lupa, Kyungsoo revira a primeira gaveta da cômoda à procura de alguma pista. Eu procuro na estante, vendo uma fotografia de um Sehun com Taemin agarrado às suas costas. Há outra com Sehun mais jovem vestido de smoking na formatura da oitava série, e outra da mãe soprando as velas do seu bolo de aniversário de quarenta anos. Elas não estavam lá antes, então eu imagino que a senhora Lee decidiu criar uma espécie de memorial dos melhores momentos do filho nas últimas semanas.
São bonitas. Algumas até comuns demais para despertar qualquer desconfiança, mas há um porta-retrato sobre a mesa virado de cabeça para baixo. Aquele é o que mais me chama a atenção. O vidro está inteiro, como se alguém o tivesse virado de propósito, e não apenas como se tivesse caído da parede. Quando eu o pego para analisar melhor, vejo que a foto está incompleta. Está rasgada ao meio, e isso sim é incomum. Apenas Sehun está ali, sorrindo de um jeito meio travesso com o braço de alguém rodeando seus ombros. Provavelmente um garoto.
— O que estamos procurando exatamente? — Chanyeol pergunta baixinho, desviando a minha atenção. Seu corpo comprido está estirado no chão para olhar debaixo da cama. — Ei, pessoal. Tem uma coisa aqui embaixo.
Kyungsoo para o que está fazendo e olha para trás.
— O que é?
— Uma caixa — ele diz o óbvio, arrastando o objeto de papelão para que todos possam ver. Quando ele a gira para abri-la pelo lado certo, vejo a palavra “lixo” na lateral, escrita de modo rebuscado em canetinha vermelha. — Alguém pega uma tesoura!
— Deve ser só um monte de lixo — Zitao resmunga, mas, mesmo assim, pega a tesoura de um porta-lápis sobre a escrivaninha e a estende para o garoto.
— Talvez esse monte de lixo seja o que estamos procurando — digo, otimista, embora não acredite muito nisso.
Eu me aproximo para ajudá-lo, arrancando o excesso de fita adesiva na parte de cima. Não há muita coisa além de folhas de suas antigas redações escolares, provas de matemáticas com notas assustadoras (Sehun era péssimo aluno), bolinhas de gude rachadas e pilhas usadas. Parece inofensivo.
Kyungsoo se aproxima com o mesmo retrato que eu segurava alguns minutos antes, parecendo estranhamente afoito.
— Uma foto rasgada. Precisamos encontrar uma foto rasgada.
Há alguma coisa errada com aquele retrato. Ele também sabe.
— Não há nada disso aqui — Chanyeol responde, mergulhando uma das mãos na caixa. — Só um monte de papel amassado e nenhuma foto. Por quê?
— Alguém rasgou a metade dessa fotografia de propósito. Talvez tenha sido o próprio Sehun. Isso é estranho… Significa que ele tem alguma coisa contra a pessoa da foto, então é uma pista. Se encontrarmos a parte rasgada, podemos tentar descobrir quem é e o que ele fez para ser tão odiado.
— Não foi o Sehun — explico, balançando a cabeça. — Da última vez que estive aqui, esse retrato não estava caído desse jeito. Parece ter sido recente. Como se… como se alguém tivesse descoberto alguma coisa. Se eu fosse cogitar, diria que foi…
— A mãe dele — Kyungsoo diz baixinho, completando minha linha de raciocínio.
Chanyeol e Zitao se olham, intrigados.
— Talvez… — o Park sugere. — Talvez essa pessoa tenha tirado a vida do Sehun.
O chinês concorda com um menear de cabeça, cabisbaixo, tão lentamente que chega a soar triste.
— Kyungsoo — eu chamo, tocando seu ombro de leve e apontando para o retrato. — Vamos desmontá-lo. — Eu o ajudo a livrar a fotografia da moldura, meus dedos trêmulos dificultando o processo. — Sehun tinha o costume de escrever atrás das fotos. Ele fez isso com as fotos da Irene e do Taemin, então talvez tenha feito isso com essa também.
E eu tenho razão.
Quando finalmente conseguimos pegar a imagem rasgada ao meio e olhar o verso, vemos que há algo escrito em letras pequeninas e meio borradas. A mesma caligrafia feiosa pertencente a Oh Sehun.
Beom
1988
Está pela metade, infelizmente, e é quase impossível adivinhar o nome completo só por uma sílaba. Então, com um sorriso animado no rosto, Kyungsoo caminha pelo quarto de modo eufórico, procurando por algo em específico.
— Estamos perto — ele comenta, abaixando o tronco para olhar sob a mesinha, logo tratando de puxar uma cesta de lixo abarrotada dali debaixo. — Aqui! Se isso é recente, então talvez a parte rasgada ainda esteja aqui.
Eu e o baixinho vasculhamos a lixeira sem pensar duas vezes, virando-a e derrubando todo o conteúdo no chão. Não há mais tempo para tentarmos passar despercebidos. Em nossa busca incansável, encontramos fitas quebradas, uma garrafinha de refrigerante e papéis de balas repletos de formigas. Parece que chegamos a um beco sem saída novamente. Isso, é claro, até Kyungsoo perceber os pedacinhos de papel fotográfico em meio a todo aquele lixo.
Chanyeol e Zitao se juntam a nós para tentar juntar todos os papeizinhos com fita-adesiva, quase como se estivéssemos montando quebra-cabeça.
— É como nos filmes… — o Park deixa a frase no ar, sua voz num tom sonhador e até mesmo infantil. Afinal, no fundo, ainda somos apenas garotos brincando de detetives.
Zitao revira os olhos.
— Cala essa boca, Chanyeol.
— Mas não é? — Ele cutuca meu braço, pedindo por atenção. — Diz pra ele, Jongin. Eu tenho razão, certo? É exatamente como nos filmes.
— Ei, pessoal — Kyungsoo chama, um pouco mais alto do que estávamos acostumados a falar. Tínhamos combinado de cochichar para não atrair atenção, mas o garoto deixa aquela regra de lado quando conseguimos colar a foto. — Olhem só pra isso.
E, apesar de ela não estar inteira, ainda faltando uns pedaços aqui e ali para a imagem se encaixar perfeitamente, há alguma coisa lá. O rosto do rapaz é familiar, provocando arrepios na minha espinha. Mesmo assustado, meu coração se enche de satisfação. Estamos cada vez mais perto de entender o que realmente aconteceu. Temos um suspeito.
Ele tem um nome, sobrenome e uma data borrada quase ilegível logo abaixo.
Byun Baek Beom
07.11.1988
Chanyeol fica boquiaberto.
— Esse é… — ele começa a dizer, mas a voz morre.
Antes que ele possa continuar, arranco o walkie-talkie do bolso da jaqueta de Zitao, tentando contatar os outros o mais rápido possível. O mais rápido que meus dedos trêmulos conseguem apertar o botão, pelo menos. Kyungsoo se mantém por perto enquanto respiro fundo e tento organizar meus pensamentos, seu queixo apoiado distraidamente em meu ombro. Meu polegar desliza sobre o aparelho, ensaiando antes que eu possa finalmente falar.
— Bomi, você pode passar o walkie-talkie para o Baekhyun, por favor? — peço, meu coração martelando no peito tão forte que, por um momento, acho que posso desmaiar. Mal tenho forças para dizer a próxima palavra. — Câmbio.
A garota parece confusa, talvez até curiosa, mas ela murmura um “Tudo bem” antes de acatar o pedido.
Ele atende depois de alguns segundos.
— Oi, Jongin. Vocês encontraram alguma coisa por aí? Câmbio.
— Baekhyun, você… por acaso… tem irmãos?
— Irmãos? — ele pergunta, mal se dando conta de que eu sequer havia dito “câmbio” ao final da sentença. Fecho os olhos bem apertados, esperando que ele continue. — Tenho um irmão mais velho. O nome dele é Baekbeom. — E ali está. Aquele olhar. Nosso pequeno grupo de quatro se comunica através de olhos arregalados e lábios entreabertos, como se aquela fosse a maior descoberta da humanidade. — Byun Baekbeom.
Mas não há tempo para que eu possa rebater. Quando a porta range no andar de baixo, ninguém diz mais nada. É como se, em questão de segundos, ficássemos petrificados. Ninguém move um músculo, e até Zitao fica parado como uma estátua em frente ao armário, os dedos imóveis ainda tocando o puxador de ferro.
— Alguém está entrando na casa — Bomi sussurra no aparelho, tão baixo que quase não consigo entendê-la.
Desligamos os walkie-talkies sem qualquer um dos lados dizer “cambio”. E o barulho continua, um rangido tão alto que dá para ser ouvido do segundo andar.
Vem da porta de entrada, penso.
Todos nos entreolhamos e, assentindo, começamos a recolher o que bagunçamos o mais silenciosamente possível. É uma tarefa incrivelmente difícil fazer isso enquanto os dedos tremem e o coração parece querer explodir, tanto é o meu nervosismo em ser descoberto.
O rangido da porta é lento e torturante, quase como a cena de um daqueles filmes de terror que eu nunca tive coragem de assistir até o final. E, depois, vem o baque. Aquele ruído quase surdo da porta sendo fechada e o som agudo dos trincos girando do lado de dentro.
O Sr. Lee está aqui.
Som de passos. Aqueles passos fazem uma contagem progressiva até o andar de cima, degrau a degrau. E, quase inconscientemente, enquanto esperamos escondidos atrás da cama, nós contamos. Um, dois, três… Ele chega no alto da escadaria quando estamos no dez, e para no corredor no treze. No dezessete, a porta do quarto ao lado é aberta. Temos alguns segundos até sermos descobertos. Talvez, se tivermos sorte, cinco segundos. Talvez menos.
Cinco. O meu coração volta a disparar.
Quatro. E os passos retornam.
Três. Alguém empurra a porta do nosso quarto, e prendemos a respiração.
Dois. Uma figura atravessa o cômodo.
Um…
Chanyeol ergue uma das suas hastes de ferro. De repente, estamos todos preparados para correr, e o Park solta um grito apavorado enquanto aponta o objeto para o invasor. Fecho os olhos até estar pressionando-os com tanta força que consigo ver pontos brancos dançando na escuridão. A voz do grandalhão morre, e ele começa a gargalhar e se atira no chão, uma mão apoiada no peito.
— Caramba, Junmyeon… Você quase me matou do coração, cara.
Até mesmo Zitao, encolhido atrás da cama com as mãos agarrando o edredom, tem de admitir que estava morrendo de medo. Ele solta um suspiro aliviado, erguendo-se com certa dificuldade.
— É sempre ótimo ver você, meu caro Kim — cumprimenta, a respiração ainda falha. — Mas você precisava realmente fazer tanto suspense? É bom que sua família seja rica mesmo pra poder nos pagar um bom cardiologista.
Ele ri, confuso. Tudo nele emana inocência quando ele ergue uma sacola na mão direita e sorri abobado, os cabelos de tigelinha fazendo-o parecer extremamente ingênuo.
— Eu trouxe uma câmera. Achei que fôssemos precisar.
Os outros rapazes enchem-no de abraços enquanto eu volto a apanhar o rádio-comunicador.
— Bomi, alarme falso — eu aviso através do walkie-talkie. — Era só o Junmyeon bancando o terrorista. Como vocês estão aí embaixo? Câmbio.
— Ufa! Achei que seríamos pegos. — Ela suspira, e a transmissão solta um chiado por um momento. — Estamos no porão. Achamos alguns documentos… interessantes. Suspeitos, eu diria. — Ela faz uma pausa e eu ouço o som de folhas de papel. — Como foi que você disse que o Sehun morreu?
Olho para Kyungsoo, chamando ele e os outros para mais perto.
— O jornal diz que foi suicídio. Mas não é nisso que eu acredito.
— Bom, não foi — ela responde. A essa altura, nós dois já não nos incomodamos mais em dizer “câmbio”. — É o que diz o relatório da autópsia, pelo menos. É impossível que seja, a menos que ele tenha conseguido dar uma paulada na própria cabeça.
Pela milésima vez naquele dia, fico boquiaberto. É informação demais para lidar. E, para ser sincero, nunca pensei que chegaríamos tão longe. Aquilo me assusta.
— Então… Isso quer dizer…
— Homicídio, Jongin. Sehun foi assassinado.
― ◆ ―
Quando saímos da casa dos Lee, alguns minutos mais tarde, vemos o homem chegar cambaleando pela rua estreita. Ele tem numa das mãos uma garrafa de soju vazia e nos olhos movimentos preguiçosos. Lentos. Ele nos analisa de cima a baixo, mas não parece notar nossos olhares culpados ou como eu engulo em seco assim que ele passa. Sequer percebe que ainda estamos parados em frente ao seu quintal.
Ele acena com a mão livre, meio moribundo.
E nós acenamos de volta.
― ◆ ―
Meu quarto é pequeno demais para oito pessoas. Bomi, Hwasa, Chanyeol, Baekhyun e Zitao se espremem na minha cama enquanto Junmyeon e Kyungsoo passam as fotos nas mãos dos membros do clube, um a um, para que cada um faça um comentário a respeito. Sou o último, porque estou do outro lado do cômodo, esparramado na cadeira da escrivaninha.
— Dá pra ler? — O baixinho me entrega uma das fotografias. Aquela que Junmyeon tirou do relatório da autópsia.
— Dá — respondo, espremendo os olhos.
Algumas palavras estão meio desfocadas e são difíceis de ler, mas, em essência, o documento está legível.
— Você tinha razão esse tempo todo. Não foi suicídio.
A única coisa que levamos da casa foi a foto rasgada do irmão de Baekhyun, Baekbeom, e outra de Sehun segurando nas mãos o seu primeiro videogame, um sorriso de orelha a orelha.
— Ele era bonitão — comenta Zitao, assobiando como se estivesse flertando com alguma garota bonita.
— Deixa eu ver — Baekhyun pede.
Huang entrega-lhe a fotografia, rindo do jeito que o garoto a revira nos dedos até estar satisfeito. Sua expressão parece surpresa, e então o Byun olha para mim, a boca aberta sem que ele consiga dizer nada.
Tento incentivá-lo a falar.
— E então?
— Eu… Eu já o vi antes. Baekbeom e ele costumavam sair bastante. Pareciam ser grandes amigos. Quando ele ficou um tempo desaparecido, eu perguntei ao meu irmão onde estava aquele rapaz comprido que sempre vinha à nossa casa. Ele sempre respondia da mesma forma. “Meu amigo e eu estamos brigados. Ele não vai aparecer aqui por algum tempo.” — Baekhyun olha para as próprias pernas e respira fundo. — Bem, esse algum tempo já faz dois meses.
— Sehun nunca mais voltou — digo o óbvio, e ele assente.
— Agora que penso nisso, há algo estranho. Kyungsoo disse que Sehun desapareceu em setembro, certo?
O baixinho de olhos grandes balança a cabeça, concordando.
— Fim de setembro.
— É estranho — Baekhyun repete. — É realmente estranho. Porque, mesmo quando Sehun ainda estava desaparecido, Baekbeom sempre repetia que seu amigo não voltaria tão cedo.
— O que isso quer dizer? — alguém pergunta, provavelmente Bomi.
E ela não é a única. Hwasa ergue as sobrancelhas, perdida. Chanyeol se ajeita na cama, como isso pudesse ajudá-lo a ouvir melhor, mas é outro que também está longe de entender. Eu também não compreendo de imediato, mas Kyungsoo parece perceber como todas as engrenagens estão funcionando na cabeça do Byun. Ele arranca páginas de seu bloquinho e começa a escrever várias frases, uma atrás da outra, até que as linhas fiquem cheias de anotações.
Quando Baekhyun torna a falar, o único ruído no quarto é o som do lápis riscando o papel.
— Quero dizer que… Talvez, e essa é uma suposição estranha e bizarra, mas… Talvez meu irmão soubesse desde o começo. Ele nunca esperou que o amigo estivesse vivo, de fato. Seu olhar tinha sempre aquele brilho tristonho, mas ele fazia o possível para esconder, como se estivesse tentando enterrar os seus segredos bem no fundo. De alguma forma — ele sussurra a última parte —, Baekbeom sempre soube que Sehun estava morto.
― ◆ ―
São quase quatro e meia da tarde. Pelo menos é o que o meu relógio diz.
Kyungsoo se ajeita melhor no assento do trem, deixando as costas retas contra o estofado e abrindo seu novo romance policial favorito, Se Houver Amanhã, sobre as próprias pernas para que nós dois possamos ler juntos.
Naqueles últimos dias, era sempre assim. O baixinho sempre me encontrava depois das aulas para compartilharmos a leitura. Às vezes, ele se culpava por desviar a minha atenção justamente durante a semana de provas, mas era inevitável. Acabávamos esparramados no chão da biblioteca da cidade ou em algum banco da praça mais próxima para dar um fim à nossa curiosidade. Nas terças e quintas-feiras, depois de ensaiar as coreografias de Grease, o nosso musical, ficávamos espremidos em algum canto do clube para ler.
Quando eu não estava pensando em Kyungsoo, estava pensando em livros.
Quando Kyungsoo não estava pensando em mim, estava pensando o que Tracy Whitney, a personagem brilhante desenvolvida por Sidney Sheldon, aprontaria no próximo capítulo.
E era um ciclo vicioso. Ficamos nisso até que o livro acabasse, e então convenci o garoto a ler também os meus gibis de Watchmen. Naquele fim de tarde, no entanto, nos concentramos em reler o romance policial. É a terceira vez que relemos as cenas dos jogos de xadrez, porque aquilo é tão excepcionalmente genial que nós precisamos relembrar a sensação de prender a respiração toda vez que o autor nos surpreende. Não dura muito, infelizmente.
Do lado de fora, chove como não chovia há algum tempo. Talvez semanas. A janela do vagão está tão encharcada e úmida que posso desenhar corações nela. O trem está a caminho de Nampo-dong, onde Baekhyun e Chanyeol moram, percorrendo os trilhos naquele embalo constante. Quase flutuando enquanto desliza por Jungang-daero. Kyungsoo logo sente a vista cansada e afasta o livro, esfregando os braços arrepiados pelo frio para tentar aquecê-los. “Ele está com frio”, eu entendo o código subliminar, e então tiro meu casaco da mochila, colocando-o sobre nossos corpos como se fosse um cobertor.
— Já entendi a dica, Do Kyungsoo.
— Que dica? — ele pergunta, erguendo uma sobrancelha. Ele já parece esperar que eu diga qualquer bobagem, porque o garoto me conhece bem.
Dou de ombros, tentando soar casual.
— Que você tá morrendo de vontade de ficar agarradinho comigo embaixo do meu casaco.
— Acho que é você quem está querendo fazer isso — ele diz, escorregando o corpo para baixo a fim de se ajeitar melhor sob o tecido quentinho, esfregando seu braço descoberto no meu a ponto de me deixar com aquele sorriso bobo de menino apaixonado.
— Shhh… Não negue seus desejos inconscientes, Kyungsoo. — Por baixo de todo aquele pano, eu busco seus dedos e toco apenas a pontinha, brincando com as suas unhas um pouco crescidas. Ele entende o recado, e então olha para os dois lados antes de segurar a minha mão. Mas, para mim, ainda não é o suficiente. — Vem aqui, hyung. Chega mais perto.
Ele solta uma risada baixinha, mas acaba arrastando o corpo para mais perto de mim, minha bochecha ficando esmagada contra os seus cabelos cheirosos.
— Você é terrível.
— Assim é bem melhor, não é? — pergunto, feliz da vida. Ele balança a cabeça só para confirmar o que eu já sei.
E sua mão aperta mais a minha quando ele diz:
— Elementar, meu caro Jongin.
『▪▪▪』
Distrito de Dong-gu, Busan — 13.11.1989
Querido Kyungsoo,
Me pergunto qual seria sua reação se soubesse que estou lhe escrevendo agora.
Essa carta será curta, porque não posso correr o risco de ser descoberto. Principalmente porque estou usando o seu bloco de anotações. (Cansei de usar o vidro embaçado da janela para escrever o seu nome, e aqui estou eu). Me perdoe por isso.
Você está dormindo ao meu lado, apenas alguns minutos antes de chegarmos ao nosso destino, mas eu seria capaz de atravessar milhares de estações só para poder observá-lo um pouquinho mais. Você fica bonito assim. Mesmo que seus cabelos estejam amassados e arrepiados na parte de trás da sua cabeça, você continua sendo a pessoa mais linda do trem. Do mundo inteiro, quem sabe. Não importa. Você é a pessoa mais bonita para mim.
Queria que você estivesse dormindo no meu ombro, como naqueles filmes românticos que sempre passam na sessão da tarde, mas você não está. Sua cabeça continua pendendo contra o encosto do banco e tremendo toda vez que pegamos velocidade, e isso é engraçado. É melhor eu nunca mostrar essa carta a você, porque você não me perdoaria se soubesse que eu ri quando você começou a roncar baixinho.
Se um dia nos casarmos, Kyungsoo… talvez eu precise de tampões de ouvido.
Não que eu me importe.
『▪▪▪』
A rua está um pouco escura devido ao tempo nublado, principalmente porque continua a chuviscar de modo muito superficial na estação. Há alguns pares de pessoas na rua, ostentando seus guarda-chuvas e capas de plástico enquanto nos aventuramos a enfeitar nossas camisetas com gotinhas d’água.
Aquilo me parece legal. Caminhar ao lado de Kyungsoo sempre parece legal, na verdade. Mas, naquele dia, tudo parece ter um significado diferente. O peso em nossos ombros é leve e pesado ao mesmo tempo. Estamos mais perto de descobrir o que houve com Sehun do que imaginávamos, e isso faz com que sintamos aquela calma e curiosidade típicas de verdadeiros detetives literários.
Quando alcançamos o outro lado da rua, eu seguro na barra da sua camiseta, como um cordeiro com medo de se perder do rebanho.
— Precisamos de um código, Kyungsoo.
— Um código? — ele pergunta, andando com as mãos enfiadas nos bolsos das calças jeans. Tento imitar a sua postura. As costas retas, os passos ritmados e a pose confortável, mas não pareço tão descolado quanto o garoto ao meu lado.
— Um código secreto para que a gente possa flertar em público sem que ninguém desconfie.
Aquilo o pega de surpresa. Ele joga a cabeça para trás e ri, os ombros chacoalhando levemente.
— Você tem algum fetiche com flertar em público?
— A questão é, hyung… que nós não podemos simplesmente dizer certas coisas na frente de outras pessoas.
Ele sente o tecido da blusa ser puxado e então olha para baixo, voltando a andar com aquele sorriso discreto nos lábios.
— E o que você gostaria dizer? — ele questiona, finalmente me dando a atenção de que preciso.
— “Eu sinto sua falta” — sussurro para ele, porque essa é a verdade. — Ou “Eu pensei em você durante o fim de semana inteiro”. Precisamos de um código pra isso. Não posso dizer que quero te encher de beijos no meio da rua, então vamos precisar de um código pra isso também.
— Você quer me encher de beijos agora?
Minha resposta está na ponta da língua.
— Quero te encher de beijos o tempo todo.
Ele olha na minha direção só por um segundo, seus olhos grandes parecendo muito brilhantes, mesmo naquela tarde tão apagada. Kyungsoo é uma daquelas pessoas que são como estrelas cintilando durante a noite. Às vezes, quando há pouca luz, é o momento em que consigo enxergá-lo com todo o seu brilho.
— Isso é bom — ele diz. — Então apenas diga “Estou com vontade de fazer xixi”, e eu vou entender.
Coloco a mão no peito. Dramático, como sempre.
— Que horror, Kyungsoo! Suas ideias não são nada românticas. Sinto um pouco de pena das pessoas que vão ler seus romances no futuro.
Kyungsoo acerta um soco no meu braço, tão fraco que sequer mataria uma mosca. Às vezes, ele tem aquela carinha ameaçadora de serial killer de quadrinhos, mas seu coração é tão gigantesco que ele não conseguiria fazer mal a ninguém. Um verdadeiro príncipe saído de algum livro de contos de fadas. E eu tenho a maior sorte do mundo de ser o seu gato borralheiro.
— Meus romances vão ter mais mistério do que beijos na boca, com certeza. — Ele para, os tênis estacionados numa poça d’água, mas ele não se importa. O garoto vira o corpo e, de alguma forma, sinto sua mão tocar o meu peito, mesmo não sabendo como ela foi parar lá. — Então, Jongin… porque as minhas histórias não terão muito romance… você vai precisar me abraçar e me beijar bastante pra compensar tudo isso.
— Você está mesmo dizendo isso? Com todas as letras? Bem aqui no meio da rua?
Ele ri e me dá um empurrão.
— De verdade. Cada sílaba. Quero que você me beije agora.
Kyungsoo fica na ponta dos pés, e é ele quem me beija primeiro, enroscando os dedos nos cabelos da minha nuca. Seus lábios sobre os meus são macios e incrivelmente suaves. É quase poético. Como aquelas poesias que têm milhares de versos, o jeito que ele sorri quando minha mão aperta a sua cintura me dá milhares e milhares de arrepios. E não é só por causa da chuva que começa a cair mais forte, ou porque estamos mais do que propensos a pegar um resfriado, mas porque o garoto tem aquela energia na ponta dos dedos que vira meu mundo inteiro de cabeça para baixo. Ele toca meu rosto quando se afasta, seu polegar tocando superficialmente meu lábio inferior.
E eu não sei fazer outra coisa além de sorrir como um bobalhão, encostando minha testa na dele.
— Estamos mesmo nos beijando no meio de uma investigação importante?
— Somos péssimos detetives — Kyungsoo responde baixinho.
— Se é isso que significa ser péssimo, acho que quero ser péssimo mais vezes.
Quando arranco o meu casaco e abrigo nós dois da chuva, ainda numa esquina movimentada de Nampo-dong, acabamos por roubar toda a atenção do público ao redor. Afinal, agora não somos mais apenas dois garotos se beijando no meio da rua. Somos dois garotos se beijando com um casaco enorme em cima da cabeça. Com mãos na cintura, dedos embrenhados nos cabelos e selinhos que não acabam mais, porque não queremos nos separar.
Kyungsoo vira sua cabeça, apenas alguns milímetros.
— Estão olhando pra nós.
— O mundo ainda não entende pessoas como eu e você — digo, dando de ombros. — Azar o dele.
Azar o dele. E de todos os que ainda não conseguem compreender o amor por inteiro.
Azar o de quem não sabe que, no fundo, o amor também pode começar com dois garotos se beijando no meio da rua. E mal sabem eles o quanto isso é incrível. O quanto Kyungsoo é incrível. E, agora, eu só quero gritar para o mundo inteiro que eu posso beijá-lo e abraçá-lo o quanto eu quiser, bem ali, em público, como todos os outros casais fazem. Como George Peppard beija Audrey Hepburn em um dos clássicos do cinema. Seja debaixo de chuva, ou debaixo de um casaco ridículo, eu só quero contar ao mundo sobre o amor.
Porque o amor começa na ponta dos dedos molhados de alguém na sua nuca.
E o meu começa em Do Kyungsoo.
― ◆ ―
Baekhyun mora num sobrado de uma rua pacata da cidade. O andar de baixo funciona como uma loja de conveniência que de conveniente não tem nada. Eu e Kyungsoo sequer conseguimos nos abrigar da chuva ali porque o toldo está todo rasgado, e também não conseguimos comprar uma refeição com o dinheiro restante porque eles não vendem ramyun. O lugar só é conveniente para quem deseja comprar uma caixa de fósforos ou utensílios de cozinha a um preço baixo, mesmo que isso signifique levar uma panela com teia de aranha dentro.
Esperamos em frente a loja até que nosso amigo Byun desça para abrir a portinha de madeira ao lado do estabelecimento, mas, quando ela se abre com um rangido, não é Baekhyun que aparece do outro lado do portão.
O rapaz que nos encara fixamente com um sorriso que não alcança o olhar é alto. Bem mais alto do que o irmão mais novo, e com cabelos mais claros, meio aloirados e curtos. Ele apoia desajeitadamente em uma muleta para nos cumprimentar.
— Olá, eu sou o Baekbeom.
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