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História Safe And Sound - Questão de confiança


Escrita por: MxrningStar

Notas do Autor


Olá, minha gente Tudo bom com vocês?
Prontos pra nossa conversinha Limantha sobre a situação da Lica? Porque eu não estou nem um pouco rsrs. Esperemos que a coisa não desande.

Sobre o capítulo de hoje: problemas no paraíso.

Boa leitura!

Capítulo 21 - Questão de confiança


Quando Heloísa chegou em casa ao final daquele dia, a única coisa que queria na vida era um bom banho e cama. A despeito da tarde agradabilíssima que passara junto de Samantha e Luna (e a menina tinha energia demais para um corpinho daquele tamanho), sua mente andava no modo marcha lenta. Pedira demissão. Ok, era um fato. Samantha, a princípio, parecera aceitar sem pestanejar, mas conhecendo a namorada como conhecia, ela não deixaria por menos. Lica podia imaginar o turbilhão de perguntas que viriam na próxima vez que se reencontrassem, o que, pelas contas dela, seria em mais ou menos... dez horas.

E era dessas eventuais perguntas que ela queria fugir. Das perguntas que Samantha lhe faria e das que ela fazia a si mesma. E agora? Uma vez sem emprego, era uma vez o presente de casamento de Clara. E seus aluguéis... bom, Lica não queria nem imaginar eles se acumulando de novo. Tinha conseguido tão bem mantê-los em dia sem atrasos. Até sua coleção de multas de estacionamento ela conseguira quitar.

Voltaria à estaca zero ou abraçaria a chance que haviam lhe oferecido? Bom, no momento, abraçar a chance lhe parecia o mais sensato e a única opção a tomar, porque seria no mínimo esquisito e para lá de incômodo ela, uma desempregada que precisava contar os vinténs no final do mês, andar para cima e para baixo como namorada de uma das maiores empresárias do ramo do entretenimento daquela cidade, quiçá do país.

- De segurança da Samantha a... namorada na fila do desemprego? – se pegou falando sozinha com seus miolos – Eu sou um desastre.

Foi o que concluiu. E geralmente era um mesmo. Mas nem doía mais tanto constatar aquilo. Do tanto que a vida já lhe esfregara na cara, já ficara anestesiada. Na verdade, já usara muito da sua condição, a que ela chamava de “fracasso atestado”, para debochar de si mesma. Um belo dia em uma festa qualquer, depois de ter sido reprovada pela segunda vez em seu psicotécnico, no auge dos seus vinte e seis anos, uma menina se insinuara para seu rumo.

Uma capitã da Aeronáutica convidada a se retirar da corporação para conseguir se recompor porque não tinha mais condições de fazer a única coisa que sabia fazer na vida. Lica riu debochada com o copo de vodka na mão, talvez o quarto ou quinto, manteve a postura e soltou um “Heloísa. Não trabalho, não estudo e nem tenho projetos. Muito prazer”.

Não mentira, afinal. E acabou ganhando a moça; A prova de que em uma balada, nomes, intenções e objetivos são a última coisa que importa. Mas teve que arcar com a parte pesada depois que o efeito da bebida e do sexo absurdamente gostoso que teve com a mulher, passou. Sua mãe, morando do outro lado do mundo, explodiu de raiva e depois de preocupação quando soube por Clara que ela, Lica, havia quase morrido em um acidente e sido convidada por Bóris a se retirar.

Primeiro rompante: “como que você me esconde uma coisa dessas?”. Segundo rompante: “eu sou sua mãe! Tenho o direito de saber o que se passa com você aí!”, Terceiro rompante: “Vai fazer o quê agora, filha?”

Bom Lica fez: terapia por três anos, iniciou dois cursos técnicos e largou no meio do caminho, virou garçonete de Keyla nas horas vaga até quase derrubar, mais de uma vez, a bandeja nos clientes. E perdeu a conta de quantas vezes acordou no meio da madrugada gritando assustada e suando, ouvindo explosões e barulho de hélices perdendo força e se partindo. E enquanto havia falta de rumo de um lado, as contas se acumulavam de outro. A saída que achou era a mais óbvia: unir o útil ao necessário. Não aprendera só a pilotar na Aeronáutica: passara pela Inteligência da Corporação, sabia bem como se defender, como agir em situações de risco e como investigar. Usou desses conhecimentos para obter seu sustento.

Questionável fuçar a vida alheia e expor aquilo que havia de mais... triste nelas para quem estava interessado? Talvez. Lica tentava não ver por esse lado: ajudava as pessoas a abrirem os olhos. Expor casos e traições eram só uma forma de contar a verdade para as pessoas e a verdade, nem sempre ela é boa. A culpa não era sua.

Voltaria a mexer nos seus “casos?”. O que Samantha diria se soubesse que estava namorando uma... investigadora particular que nem certificada era e que, por vezes, fazia o trabalho que a polícia não estava disposta a fazer? Orgulho com certeza era uma coisa que ela não sentiria.

Como também não sentiria quando soubesse que ela, Heloísa, era um total e completo fracasso na única coisa que sabia fazer na vida. Uma incapaz e inapta assim como dizia o resultado dos últimos dois psicotécnicos que fizera. Não era engraçado, não era risível. Era vergonhoso.

E se tornava mais vergonhoso ainda quando via gente do seu lado trilhando exatamente o caminho oposto. Clara, por exemplo: mais nova que ela apenas uma semana, a bem sucedida dona e diretora do Colégio Grupo. Lica poderia ter sua participação na escola? Claro que poderia. Aquele lugar também era seu de direito? Não. Quando Edgar Gutierrez, seu pai, fez o favor de afundar a escola em dívidas e escândalos de corrupção antes de sumir no mundo, fez o favor também de deixar 49% das ações do Grupo para Clara e só e somente só ela. Uma retaliação por ter se sentido traído por Marta, mãe de Heloísa, quando ela assumiu o relacionamento com Luís. A ironia materializada, porque se tinha alguém traído na história, esse alguém era Marta e Luís.

Casado com Maria Lúcia Becker, mãe de Clara, o homem passou a vida inteiro achando que era pai da menina, quando na verdade, Clara sempre fora filha de Edgar. O pai de Lica traíra Marta por dezessete anos e tivera uma herdeira com a melhor amiga dela. E quando resolveu dar no pé para não ser preso, Edgar deixou tudo que tinha, no único ato legal que praticou a vida inteira, para Clara e Malu.

Para Lica, não era problema, afinal. Tinha sua carreira na Aeronáutica, nunca precisou de nada que viesse de Edgar. E muito embora Clara tenha mais de uma vez lhe infernizado para tomar partido da escola junto consigo, Educação nunca fora o forte de Heloísa. Estava bem onde estava. E não queria a benevolência da irmã. O Grupo era por direito de Clara e a maior parte dele, 51%, de Malu. Não valia ter que aguentar as provocações daquela mulher. Não mesmo. Preferia fazer seus bicos, até porque Maria Lúcia mesma não lhe daria nada e fazia questão de dizer que lhe queria longe.

A pergunta que martelava em sua mente era: seus bicos como investigadora seriam suficientes agora que tinha uma pessoa a quem dar algum orgulho e a quem paparicar de todas as maneiras? Seria suficiente se seu psicotécnico não desse certo como fora das outras vezes? Esperava mesmo que fosse.

Suspirando, Lica seguiu para o banheiro tirando a roupa no meio do caminho. Precisava pensar sim, mas àquela altura, sua cabeça já estava soltando fumaça.

No dia seguinte, parecia ter acordado mais cansada do que quando fora deitar. Um peso absurdo sobre os ombros que ela realmente gostaria de saber de onde vinha. Fez seu ritual matinal de ajudar Benê com o café e seguir para o trabalho. Talvez fosse seu último dia. Não sabia bem se queria que seu último dia ali chegasse. Querendo ou não, se apegara a K1 na recepção, ao Hélio e aos demais seguranças da portaria da gravadora. Ao Lucas dos estúdios. Principalmente: se apegara a Tina e Ellen. As três quando se juntavam pareciam amigas de infância. Uma ligação inusitada e um tanto quanto inexplicável.

Mas mais que tudo: sentiria falta de Samantha todo dia ali ao seu lado, fosse lhe dando ordens, fosse fazendo brincadeirinhas provocativas, fosse só lhe tirando do sério mesmo. Gostaria de poder continuar vendo sua namorada com a mesma frequência. E ainda tinha Luna também: esperava poder continuar convivendo com a menina nos momentos em que desfrutasse da companhia de Samantha. Tinha de verdade se apegado a ela e sentia que o sentimento era recíproco.

Mas o destino... parece que ele tem como passatempo preferido pregar peças. E com certeza devia haver alguém lá em cima que não iria nem um pouco com a cara de Lica. Ela teve a prova quando passou pelas portas da Downtown naquela manhã e deu de cara com o carro de Rafael estacionado na entrada. Apressou o passo. Queria estar por perto se aquele palerma se atrevesse a chegar perto de sua mulher.

- Bom dia, K1 – cumprimentou a recepcionista – Eu vou onde a Samantha.

- Ela pediu pra não ser interrompida, Lica – K1 informou, o que faz Lica estacar – O assunto parece que é sério.

- Não ser interrompida? – Lica repetiu sem acreditar – Desculpa, mas eu sou segurança dela – e namorada, quis acrescentar – Eu vou lá.

- Lica, sério, a Samantha disse que não queria ser interrompida por ninguém. Ela foi bem clara no telefone – a recepcionista tornou a repetir.

Mas Heloísa mesmo não teve nem tempo de processar aquilo ou tentar entender. O telefone na mesa de K1 tocou e ela o levou ao ouvido imediatamente.

- Está aqui sim – K1 estava séria demais, Lica estranhou e franziu ligeiramente o cenho. Pelo visto o assunto era ela – Ok. Mando sim – a recepcionista desligou o telefone e mirou a segurança – A Samantha pediu pra você ir lá.

Lica nem titubeou, afinal já era o que faria mesmo. Rumou para o elevador para sair segundos depois na porta da sala de Samantha. Bateu duas vezes para se anunciar e passou por ela.

- Tudo bem por aqui? – já foi logo inquirindo e fuzilando Rafael com os olhos. O empresário tinha uma expressão meio debochada no rosto, o que a Heloísa deixou claro que a coisa não estava bem não. Para ele estar feliz daquele jeito, não estava mesmo. A alegria de Rafael era o oposto dos sentimentos dela e de Samantha. Lica sabia bem.

E por falar em sua chefe, ela estava de pé à mesa dela, a expressão impassível, mexendo em alguns papéis. Levantou o olhar assim que Lica passou pela porta, como se perscrutando a expressão dela. Parecia querer ver através de Heloísa. A segurança mirou dela para Rafael ali feito um completo bocó.

- Fecha a porta – Samantha foi curta e grossa e mais direta que aquilo, impossível. Lica se posicionou diante dela, relanceando o empresária.

- Está tudo bem? – ela só queria se certificar. Rafael deu uma risadinha sem humor.

- Tudo ótimo, Heloísa – foi ele mesmo quem respondeu. Samantha remexeu mais alguns papéis e ergueu a mão com um. A expressão ainda indecifrável.

- Você quer me explicar isso aqui? – e estendeu o braço para Lica pegar a folha. A segurança o fez um tanto hesitante e sem entender absolutamente nada, virou a página para poder checar o que havia ali. E quando a compreensão lhe atingiu, levantou os olhos dos escritos em um átimo, mirando Samantha que ainda lhe analisava com o olhar impassível.

Seu psicotécnico da Aeronáutica.

Lica engoliu em seco, a respiração começando a querer acelerar.

- Tem outro também – Samantha estendeu para ela seu termo de desligamento da FAB com o “inaptidão” gravado em negrito ao final – E mais esse – e estendeu também o laudo pericial do avião no qual Deco morrera com os nomes dela e de seu parceiro de voo negritados a cada vez que eram citados.

E existem momentos em que a gente quer só sumir e fingir que não é com a gente. Momentos de constrangimento, de vergonha, de risco, quando a gente se sente completa e totalmente fora de lugar. Lica se sentiu fora de lugar e com uma culpa absurda lhe correndo por dentro e lhe pesando nos ombros. Culpa porque podia ter partido dela aquilo. Culpa porque não explicara e alguém fizera aquilo no seu lugar.

A culpa que conseguira tão bem colocar de escanteio nos últimos meses, com a qual convivera como uma parte de si nos últimos anos. E a qual lhe atingia com a sutileza de uma bala de canhão agora. Tremeu na base, lhe faltaram as palavras e os gestos. Atônita, em riste como se se movesse um centímetro, sua vida pudesse acabar, ela permaneceu de cabeça baixa, folheando os papéis.

- Eu te fiz uma pergunta, Heloísa – a voz de Samantha cortou o ambiente – Você quer me explicar o que é isso?

E diante do silêncio dela.... Outra pessoa tomou a palavra.

- Eu posso explicar se você quiser, Samantha – a voz de Rafael irrompeu séria – Isso aqui é a prova de que você namora uma maluca, que contratou uma pessoa inapta e incapaz de fazer o próprio trabalho e que claramente coloca a sua vida e a da nossa filha em risco – ele fuzilou Lica com os olhos – Sua namorada... segurança... enfim. Essa pessoa aqui foi expulsa do antigo trabalho porque matou uma pessoa.

- Eu não matei ninguém – Lica se viu falando. Quis gritar, mas suas cordas vocais não lhe obedeceram. A voz saiu incerta e fraca. Queria bater em Rafael por inventar aquelas coisas, mas nem ela sabia mesmo até que ponto aquilo era ou não invenção. Ironia era que ela passou os últimos anos todos ouvindo aquilo da boca de todo mundo e não conseguia internalizar.

- Não é o que diz aí – o empresário insistiu – Fala que você abandonou um avião em chamas e deixou seu amigo morrer.

- Não foi bem isso que aconteceu – Lica se viu respondendo parecendo um cão acuado. Se atreveu a buscar os olhos de Samantha como que pedindo ajuda. Mas o que encontrou nas íris de sua namorada a fez perceber que não, não poderia contar com aquilo. Samantha seguia impassível, o rosto duro, sem expressar nada.

- Então é verdade – a empresária concluiu – Você não saiu da Aeronáutica simplesmente. Te colocaram pra fora. Te colocaram pra fora porque....

- Eu não matei ninguém – Lica tornou a repetir – Eu não fiz isso. Foi um acidente.

- Se foi só um acidente, você podia ter dito na entrevista de emprego, não é? – Rafael colocou lenha na fogueira – Num acidente, você seria tão vítima quanto seu colega que morreu. Ou não teve uma entrevista de emprego?

Teve. Teve sim. E Samantha perguntara os motivos de ela não integrar mais os quadros da FAB. E a resposta que recebera fora um “eu não gostaria de responder isso agora, se possível”. E não respondeu em nenhum dos outros momentos. Deus do céu, a coisa podia ser menos pior? De onde estava, Lica podia ver as engrenagens do cérebro de Samantha trabalhando a todo vapor tentando processar a situação e claramente não conseguindo.

E mais uma vez, Heloísa acabara com tudo.

- Se você olhar aí, vai ver que...

- Que o avião do seu amigo caiu enquanto você dava voltinha de paraquedas? – Rafael era ácido e nem forças para rebater, Lica tinha – Nas Forças Armadas não ensinam as pessoas a salvarem umas às outras? Muito altruísta você – ele ironizou. E Samantha ainda em completo silêncio. A inércia dela atingia Heloísa mais do que as sandices que Rafael proferia.

E ela nem sabia dizer mais até que ponto eram sandices mesmo.

- Samantha, eu não matei ninguém – Lica repetiu seu mantra. Nunca tinha repetido tanto aquilo na vida. Aliás, nunca nem havia conseguido dizer aquilo para si mesma nem para ninguém. E no dia que conseguia, ninguém acreditava. Porque já tinha ficado claro que Samantha não comprava o que ela falava. Engoliu em seco e remexeu nos papéis.

- Por que você não me contou? – foi tudo que ela perguntou, ainda em riste.

- Eu...

- Porque você não daria o emprego a ela, não ficou óbvio? – Rafael mais uma vez se adiantou. Lica abaixou o olhar para os papéis, começando a tremer.

- E você precisava do emprego – Samantha repetiu o que ouvira dela quando a contratara – Você sabe que é crime esconder isso do seu contratante, não sabe?

A respiração de Lica quis acelerar. Não. Ela não acreditava nas suas palavras. Samantha não acreditava nela. Tinha ficado claro. A pessoa que mais amava no mundo não levava fé nas suas palavras. Em coisas escritas em um papel, sim. Nas coisas que Rafael dizia, sim. Mas nela mesma, não. Lica não sabia dizer o que era pior. A ameaça velada na voz de Samantha ou o tom duro e impassível que ela usava, colocando-lhe na beira de um precipício. Lica estava na beira de um precipício.

E a última vez que se sentira daquele jeito foi quando aterrissara em segurança na pista da Base Aérea com os ecos da explosão do avião de Deco martelando em seus ouvidos. Sensação semelhante à que teve quando Bóris lhe pediu gentilmente que ela tirasse um tempo para cuidar de si depois de quase causar um acidente com um bimotor ao perder o timming de decolagem. E quando seu primeiro psicotécnico lhe garantiu a retirada de seu brevê. E o segundo... bom, esse Lica nem sentiu mais. Já estava meio que acostumada.

Não quis julgar Samantha, porque no fundo sabia que o que ela sentia ali tinha fundamento. Talvez ela não tivesse sido tão incisiva se tivesse tomado conhecimento daquilo pela boca de Heloísa. Mas, como sempre, ela dava um jeito de acabar com tudo, de estragar aquilo que estava bem na sua vida. Se deixara sucumbir nos traumas e perdera seu emprego. Ficara em silêncio para não ter que reviver aquilo e não fazer desandar mais nada na sua vida, e... ok, pensar em perder Samantha era pior que perder o emprego. Uma vaga de trabalho, ela poderia arrumar outra, pensou. Mas alguém como a empresária... o coração da Gutierrez essa hora já batia com um zumbido chato no ouvido.

Ficou em silêncio. Lica era boa naquilo. Anos de Forças Armadas lhe ensinaram a só falar quando fosse convidada ou quando tinha algo a dizer. Ali fora chamada a falar, mas realmente não havia nada que pudesse verbalizar. Ficou quieta e muda como estava, o que foi um erro, porque só deu mais munição para Rafael.

- Bom, é o seguinte, eu não tenho tempo pra ficar aqui esperando vocês se resolverem, então vou direto ao ponto – e virou-se para Samantha – Sua segurança barra caso ou seja lá o que vocês forem... ela é uma maluca que foi expulsa do antigo emprego porque matou uma pessoa....

- Eu não matei ninguém – Lica tornou a repetir com a voz fraca. Por dentro, era um grito desesperado para se convencer daquilo.

- Porque matou uma pessoa num acidente – Rafael tornou a proferir, ignorando-a – Ela não tem um psicotécnico que a torne apta a atuar como segurança de nada porque se mostrou... – e pegou um papel na mesa de Samantha. Pelo visto, haviam cópias – Incapaz de desempenhar as funções designadas ao seu posto de Capitã da Força Aérea Brasileira e de exercer atividade na segurança e aviação seja ela comercial, privada ou pública – o empresário mirou Samantha – E, olha só... ainda tem PSTP – e estreitou os olhos para apurar a vista – Perturbação de Stress Pós-Traumático. Peado, hein? – e debochou, respirando fundo, levantando os olhos para a empresária – Eu não quero essa mulher perto da minha filha.

Claro que ele faria aquilo. Lica devia ter imaginado. E Samantha também, porque respirou fundo e mordeu o lábio como quem realmente não sabia o que fazer. E ante do silêncio que se instalou....

- Você colocou uma pessoa perturbada mentalmente pra conviver com a Luna. Eu não vou permitir isso – Rafael foi cortante – Então pra gente evitar mais problemas, Samantha, você vai desistir dessa ideia maluca de tirar minha filha de mim e mandar parar esse processo de guarda. Ou eu mostro isso aqui pro juiz e te garanto que a coisa não vai ser legal no final pra você.

- Por que isso não me surpreende? – Samantha deu uma risadinha sem humor algum pelo nariz e balançou a cabeça em completo abandono. E se a culpa que Heloísa sentia por toda a situação já era enorme, pareceu triplicar. Queria socar Rafael, mas do jeito que ele proferia coisas contra ela e diante da impassibilidade de Samantha, corria o risco de sair dali direto para um manicômio. E complicar ainda mais as coisas para sua namorada, o que era pior.

Sim, porque se no fim das contas, se ela perdesse a guarda da filha e Luna fosse morar com o pai, seria por causa dela e seus... problemas mal resolvidos. Não carregaria mais aquela culpa. Se culpar por tudo não é tão legal quanto parece.

- Não precisa fazer isso – Lica proferiu depois de uma eternidade calada. Buscou o olhar de Samantha, mas sua namorada (ainda eram isso?) não lhe devolveu o gesto. Uma facada teria doído menos. Heloísa entendeu ali que não, não seriam mesmo mais alguma coisa – Eu me demito.

Samantha engoliu em seco e Rafael riu pelo nariz.

- Independentemente de demissão, continua sendo uma maluca.

Lica negou com a cabeça.

- Eu não sou maluca – se batesse nele como tinha vontade, seria dada como uma mesmo – E eu não matei ninguém.

- Se você diz... – Rafael debochou. E Samantha seguia calada. Talvez Lica repetir tanto aquilo fosse em um pedido silencioso para que sua namorada (ou ex-, vai saber), dissesse que acreditava nela, que sabia que ela falava a verdade. Mas Samantha mesma não se moveu um centímetro. Lica podia culpa-la? Não muito. Não fora honesta com ela.

A Gutierrez respirou fundo e reuniu os últimos resquícios de coragem que ainda tinha. Nem sabia que ainda os guardava,

- Foi um acidente. Só um equipamento de salvaguarda do avião funcionou e o paraquedas só aguentava um de nós. Eu tentei puxar o Deco, mas ele me empurrou e ficou. Eu... – engoliu em seco – Eu tentei. Eu juro que tentei, mas eu não...

Foi suficiente? Não conseguiu? Incapaz, inapta... as palavras no resultado no psicotécnico ali em suas mãos pareciam saltar da página e lhe atingirem com a delicadeza de um soco, de navalhas cortando fundo e lentamente sua pele.

- Não foi culpa minha, eu não matei ninguém. E eu não contei porque eu precisava do emprego e fiquei com medo de não conseguir. E eu já tinha perdido outras oportunidades antes, então... – buscou o olhar de Samantha na esperança de que ela entendesse que havia mais. Um “eu não queria que você me olhasse como um completo fracasso” implícito. Ficou em silêncio – Não foi por mal.

- Empregado mentir pro patrão dá demissão, hein? – Rafael provocou. Ele parecia querer fazer Lica perder o controle, mas ela mesma não que daria aquele gostinho a ele.

- Não precisa fazer isso, já disse que eu mesma me demito – Lica tornou a repetir e enfiou a mão no bolso da calça, tirando de lá um papel dobrado e estendeu para Samantha – Minha carta de demissão – ela havia trabalhado naquilo na noite anterior para agilizar as formalidades, só não esperava que seria tudo daquele jeito. Só que a empresária não o pegou. Deixou sua... deixou Heloísa de mão em riste feito uma idiota. Nem olhar para ela, Samantha conseguia.

Lica, então, depositou o papel sobre o tampo da mesa e sem dizer mais nada, devolveu os documentos da FAB e se retirou.

Do lado de fora, precisou se recostar à parede para conseguir se manter de pé e não vacilar. Respirou uma, duas, cem mil vezes antes de conseguir manter bem segura as lágrimas que ameaçavam cair, o coração batendo feito um louco no peito e o suor deixando suas mãos escorregadias. Mordeu o punho para segurar o grito que ameaçava deixar sua garganta. Fez tanto esforço para se manter firme que o sangue inteiro de seu corpo se concentrou no rosto, a pele corou com a força que fazia para manter a boca em silêncio e não chorar.

Respirando fundo, Lica marchou para o elevador e desceu na recepção.

- Lica? – K1 viu seu estado. O rosto e os olhos vermelhos, a respiração curta – Tudo bem, ex-patricinha? – e correu até ela.

- Umhum, eu... – deu uma olhada nas paredes da recepção, os discos presos nela pareciam girar, o concreto parecia querer lhe engolir. Respirou fundo. Era só o que faltava ter uma crise ali. Agradeceu K1 rapidamente e seguiu gravadora a fora. Na calçada, nem se atreveu a pegar na direção do carro ou causaria um acidente em tentar dirigir daquele jeito. Decidiu pegar um metrô, era mais seguro. Entrou na primeira estação que achou e no primeiro vagão que viu parado. Não sabia nem para onde ele ia, mas também, pouco importava. Nada importava, na verdade.

(...)

- A Lica matou uma pessoa? – Ellen estava em choque, completamente atônita e abobalhada sentada ao lado de uma Tina não tão diferente. As duas ouviam atentamente o que Samantha relatava após a conversa desastrosa que tivera com Rafael e sua namorada. Esperava mesmo que ainda tivesse maquele status. Queria conversar com Lica, ouvi-la, ir além de “eu não matei ninguém, foi um acidente”, entender o lado dela antes de formar qualquer julgamento.

Ficara em silêncio enquanto Rafael falava loucuras a respeito de sua segurança... ex-segurança, porque ainda estava sob o torpor do susto. Não tem como você saber que a pessoa com quem você se relaciona e ama, e que diz que lhe amar de volta, te esconde coisas. Ainda mais detalhes importantíssimos e cruciais como o histórico militar de Lica. Poxa, Samantha a contratara! Como chefe dela, como sua contratante, estava em seu direito de ter que saber de tudo da vida profissional pregressa dela. E como sua namorada, também. Era um livro aberto com ela, mas pelo visto a recíproca não era lá tão verdadeira.

Sentia verdade no Lica lhe dizia? Sim, sentia. Em atos e palavras, ela mostrava o quanto se importava e o quanto a queria. Mas não podia ignorar o fato de que tinha uma parte da vida dela que passara em branco. O que ela queria, afinal, lhe escondendo aquilo? Ninguém é perfeito. Samantha saberia perfeitamente lidar com a situação se ela tivesse sido contada pela boca de Lica, não por terceiros em uma forma de ataque explícito. Sim, porque a forma com que Rafael jogara na cara dela que não conhecia tanto a mulher com quem se relacionava, não fora nem um pouco polida e sutil.

Pelo contrário, ele chegara em sua sala irrompendo sob os protestos de K1 e jogara os papéis sobre sua mesa entoando um “sua namorada é uma assassina maluca e eu não quero essa mulher perto da minha filha”. Tomada pelo susto e pelo impacto do que fora dito e pela forma como fora dito, Samantha não conseguiu ter outra reação que ficar em choque e tentar ouvir da boca de Lica quando teve a oportunidade.

Ela não negara, embora tenha dito que não era bem do jeito que Rafael afirmava. Mas também não tivera a iniciativa de lhe contar primeiro. Era o quê? Falta de confiança? Medo? Nesse momento, Samantha tinha a impressão de que realmente não conhecia a mulher que amava. E era difícil, dada às circunstâncias, não pensar que o que o pai de sua filha falava tinha lá um fundo de verdade

A empresária suspirou e passou a mão pelos cabelos.

- Ela disse que foi um acidente e que tentou salvar o colega, mas não conseguiu – sentia o peso de cem toneladas sobre as costas – Mas o que me chateia não é a situação em si. É fácil saber se foi ou não como ela disse. O que me chateia é a Lica ter tido mil e uma oportunidades de ter me contado, inclusive na entrevista de emprego, e não fez isso. Ficou calada todas as vezes que eu perguntei. Fugia do assunto, desviava... me diz, tem como eu não pensar que o Rafael tem razão? Que ela realmente....

- Samantha, cuidado – Tina pediu, fazendo a Lambertini se calar e choramingar, enterrando o rosto nas mãos – Cuidado, não julga sem antes saber direito o que foi que aconteceu. Você mesma acabou de dizer que o problema não foi o que ela fez, foi ela não ter contado. Não se deixa levar pela raiva e se permitir manipular pelo Rafael, porque é isso que ele quer.

- Ele me ameaçou no processo da Luna – ela externou exausta – Disse que se eu não parar o pedido de guarda, que esfrega aquilo tudo na cara do juiz e tira minha filha de mim.

- E ele pode fazer isso? – Ellen quis saber – Isso é chantagem, isso sim!

- Tem três documentos assinados pelo setor médico da FAB atestando que a Lica tem transtornos pós-traumáticos e que ficou impedida de exercer função porque não estava apta mentalmente pra isso – Samantha suspirou – Pro Rafael fazer a cabeça de um juiz e dizer que minha namorada é maluca, é dois tempos. Aliás, ele já fez isso. Chamou mais de uma vez a Lica de doida na minha cara e eu....

E só aí se deu conta da real dimensão da coisa. Ficara calada. Em momento nenhum mandou o pai de sua filha parar e medir as palavras, porque era da mulher que ela amava que ele estava falando. E já dizem os sábios: quem cala, consente. Tinha como ficar pior? Sim, porque a expressão acuada e suplicante de Lica lhe mirando e repetindo feito um mantra que não matara ninguém, que não era maluca e que aquilo fora um acidente, era tudo que Samantha conseguia ver agora.

E a demissão.

- Ela se demitiu – informou.

- Surpresa seria se ela continuasse trabalhando pra você, né, Samantha – Tina expressou – O Rafael ameaçou tirar a Luna de você se ela continuasse por perto. Com esse tanto de... coisa – e remexeu os papéis no colo – Ela seria maluca se insistisse em bater de frente com ele.

Samantha afundou no sofá, suspirando e fechando os olhos. Tateando o colo, pegou o celular. Ligou para K1 perguntando de Lica. A recepcionista fora clara:

- Chefa, ela foi embora. Ainda não voltou. Quer que eu tente achar ela?

Samantha respirou fundo, exalando pesado o ar.

- Não, não. Tudo bem. Me avisa se por acaso ela... ela aparecer por aí – deu as ordens e desligou, sabendo que no fundo, Lica não aparecia de novo. Rafael fora claro quando disse que queria ela longe. E se tinha uma coisa que sua... ex-segurança era boa, essa coisa era seguir ordens.

E nesse momento, Samantha a maldisse por essa eficiência toda.

(...)

- Eu fiz aquela lasanha que você adora – Keyla tentou, mas Lica, pelo visto não estava interessada. Ou só não tinha fome. Ou ânimo mesmo.  A mãe de Tonico fora chamada até ali depois que Benê batera em seu apartamento falando que a Gutierrez havia chegado cedo demais do trabalho e que havia se trancado no quarto.

Conseguiram fazê-la sair da cama onde se enfiara. Neste momento, Lica saía do banho e procurava alguma coisa para vestir, enrolada em uma toalha, os cabelos pingando água pelo caminho.

- Sem fome, valeu, Key – foi tudo que ela respondeu enquanto tirava uma muda de roupa limpa da gaveta do armário. Retornou para o banheiro.

- Você quer me contar o que foi que aconteceu? – a amiga pediu, sentando-se na beirada da cama no momento em que Benê vinha pela porta com uma bandeja de copos de suco – Espera, se a gente for fazer reunião, vai ter que ser com comida. Está quase na hora do almoço e eu não vou desperdiçar minha lasanha. Benê põe a mesa.

- Eu não estou com fome, Keyla – Lica tornou a repetir cansada.

- Mas vai comer. Já deu pra sacar que você não está bem e quando a gente não está bem, o corpo precisa de sustância pra aguentar. E eu estou morrendo de fome – e irrompeu porta a fora gritando um “já volto com nosso almoço”.

- Melhor não discutir. Você sabe como a Keyla é insistente – Benê pontuou e se retirou com a bandeja de sucos para a pequena cozinha, onde se pôs a ajeitar a mesa. Lica se recostou no balcão de braços cruzados.

- Vocês são as melhores coisas da minha vida – externou, analisando os movimentos preciso de Benedita.

- Então seria bom se você colaborasse e fizesse o que estamos fazendo: comer e contar o que aconteceu. Se nós somos as melhores coisas da sua vida, é porque te fazemos bem. E se te fazemos bem, é porque gostamos e nos preocupamos com você.

Mais analítica que isso, impossível. Lica riu fraquinho e se pôs a ajudá-la também. Foram interrompidas por Keyla retornando com uma travessa enorme de lasanha e colocando-a ao centro da mesa. O cheiro delicioso do queijo derretido com a carne e o molho ao fundo invadiram os sentidos de Heloísa, fazendo-a salivar. Acabou que a fome bateu quando viu o quão bonito estava aquele prato. E Keyla percebeu.

- Às vezes tudo que a gente precisa é um estímulo – a mãe de Tonico brincou e tomou seu lugar, batendo na mesa para Lica fazer o mesmo. Benê já começava a se servir – Agora pode começar a falar porque a senhorita chegou antes do fim do expediente e se socou no quarto.

Lica suspirou sem ter muita certeza se realmente gostaria de falar sobre aquilo, mas era aquela coisa: suas amigas não desistiriam e quem sabe se colocasse para fora, melhorasse o peso que sentia sobre os ombros.

- Eu pedi demissão – anunciou sem nem preparar o terreno. Benê se engasgou, e Keyla abaixou o garfo que levava à boca com um pedaço generoso da lasanha.

- Oi? – a mãe de Tonico repetiu.

- Você não vai mais trabalhar com a Samantha, Lica? – Benê só queria as coisas mais claras – Mas como você vai se sustentar agora? – e as coisas práticas também.

- Do mesmo jeito que eu me sustentava antes? – Lica deu de ombros, se servindo da lasanha – Fazendo meus bicos como investigadora.

- Seus bicos como investigadora não te sustentavam – Benê e esse dom horrível de meter o dedo na ferida e cutucar sem dó nem piedade.

- Calma, vamos por parte – Keyla pediu – O que foi que aconteceu?

Lica suspirou e se pôs a falar a série de desastres que vinham sendo seus últimos dias até culminar na situação horrível naquela manhã na sala de Samantha. Resumiu tudo em uma frase só.

- Eu e a Samantha não nos entendíamos sobre eu ser namorada e segurança ao mesmo tempo, vivíamos discutindo, então eu achei melhor pedir demissão. E hoje, ela descobriu meu histórico na FAB e os motivos que me levaram a ser chutada da corporação.

- Você não foi chutada, Lica – Keyla pontuou grave – Você teve que se retirar pra poder cuidar de si.

- Resumindo, fui expulsa por inaptidão e incapacidade – Lica arrulhou. Já não lhe pareciam tão duras aquelas palavras.

- Você ainda não havia contado para a Samantha? Sobre seus problemas? – Benê quis saber – Quer dizer, vocês são namoradas. Namorados costumam contas coisas um para o outro. Ou estou errada?

- Não está não, Benê – Keyla falou, olhando feio para Lica – A Heloísa que, pelo visto, meteu os pés pelas mãos.

- Como sempre – Lica riu sem humor e tomou um gole de suco – E não, eu não tinha contado pra Samantha, porque achei que... não era necessário. Se eu falasse de cara que não tinha um psicotécnico, ela provavelmente não me daria o emprego, e como você mesma acabou de dizer, Benê: meus bicos como investigadora não me sustentam. Fim.

- E como ela descobriu? – Keyla quis saber.

E aí estava a parte espinhosa.

- O pai da Luna que descobriu e contou pra ela. Na verdade, contou não: expôs tudo sem nenhuma delicadeza e caiu em mim de maluca, assassina, perturbada... e ameaçou tirar a filha da Samantha de vez dela se ela seguir com esse processo de guarda.

- Que cara escroto! – Keyla exclamou visivelmente chateada – Ele não tinha o direito de fazer isso, até porque você nem tem nada a ver com essa história.

- Eu sou namorada da mãe da Luna, Keyla – Lica explicou o óbvio e se pegou pensando naquilo – Ou pelo menos acho que ainda sou. O fato é que eu e a Samantha temos um relacionamento e isso me torna próxima da menina. Quem é o pai que quer uma maluca perto dos filhos? No fundo, o Rafael tem razão.

- Opa, opa, opa! Espera lá! – Keyla quase gritou, descansando os talheres com um tilintar no prato – Razão nenhuma! Aquele cara é um escroto, isso sim! E você não é maluca, Lica, para com isso! Foi um acidente, todo mundo sabe. Tanto que o responsável foi preso. Aquele cara que deturpou a história.

- Deturpou porque a Lica não foi honesta com a Samantha – Benê de novo foi sem dó nenhum. Heloísa se encolheu – Se ela tivesse dito de primeira que tinha problemas e limitações, essa situação não estaria acontecendo, porque o pai da Luna não teria argumentos. Seria a palavra dele, que claramente a Samantha não confia, contra a da namorada dela.

O silêncio que se instalou ali foi meio incômodo. Lica se remexeu sem jeito na cadeira e de repente a lasanha de Keyla já não lhe parecia tão apetitosa assim.

- Eu disse que sempre estrago tudo – Lica riu sem humor nenhum e deu de ombros – A Samantha deve estar me odiando. Aliás... – engoliu em seco – Ela deve me achar uma tremenda duma covarde mentirosa.

- Conversa com ela – Keyla sugeriu – No lugar de ficar supondo as coisas, é melhor você tirar logo a limpo e falar com ela. A Samantha precisa te ouvir e você precisar abrir a boca.

Seria o certo a se fazer, certo? Certo. Só que Lica vira a expressão vazia nos olhos de sua namorada mais cedo e, sendo sincera, não tinha lá tanta certeza se Samantha estava realmente disposta a ouvi-la. Ficara em completo silêncio diante das sandices que Rafael proferia. Heloísa não mentiria. Lhe doeu ver que a mulher que amava claramente hesitava em acreditar nela. Lhe doeu não só por ter tido suas fraquezas expostas sem dó nem piedade, mas acima de tudo, pela inércia de Samantha.

Sua namorada tinha sido transparente: não havia espaços para conversa. Pelo menos não por enquanto. E Lica mesma não tinha nem cara para olhar para Samantha.

- Eu não sei se ela quer me ouvir, Key – Lica externou mortificada – Você não estava lá, você não viu. O Rafael me escorraçou e a Samantha ficou calada. Eu sei que errei em não ter contado antes, mas é que... no fundo parecia que ela estava na dúvida sobre... – engoliu em seco – Sobre mim.

- Ela acha que você matou seu colega de avião? – Benê resumiu – Sua namorada acha que você é uma assassina?

- Benê! – Keyla ralhou e Lica deu uma risadinha pelo nariz.

- Eu espero realmente que não. Ou eu não sei o que vou fazer – remexeu no pedaço de lasanha com o garfo, sem ânimo – Aliás, eu não sei mesmo o que vou fazer.

(...)

- É sério isso? – Rafael proferiu embasbacado. Sabia que Samantha era tinhosa, só não tinha ideia de que era tanto.

- Responde, Rafael! Onde diabos foi que você conseguiu esses documentos?

O empresário suspirou e se acomodou em sua cadeira. Tinha sido interrompido em uma ligação importante quando Samantha irrompeu pela porta de seu escritório a exemplo do que ele fizera mais cedo na gravadora. Ignorando completamente os pedidos de calma e os protestos dos seguranças.

- Samantha, eu tenho meus contatos. Basta você saber isso – e analisou o rosto dela – O que? Você acha que isso aí é mentira? Alguma invenção? Sua namorad... sua funcionária não negou. Pelo contrário, disse que era verdade. Ainda tem dúvidas?

Não, Samantha não tinha dúvidas da veracidade dos documentos. Só não gostara nada foi da forma como o pai de sua filha colocara as coisas. E de como Lica lhe parecera completamente indefesa em abandono diante das maluquices que ele dizia. E sim, dizer que Heloísa era assassina, era maluquice.

- Onde foi que você arrumou isso?

- Qual o problema, Samantha? – Rafael provocou – Ficou chateada porque eu que te contei as coisas que a sua... namorada não te contou? Aliás, estranho ela esconder a vida pregressa dela da pessoa com quem se relaciona, não? Mas também, quem deve, teme. E com certeza sua segurança devia – e riu debochado.

Mas o riso, ele cessou na velocidade da luz quando Samantha jogou a pasta contendo os papéis com tudo sobre a mesa dele, fazendo o copo com água que havia por ali respingar. Rafael correu para tirar algumas folhas de perto entoando um “ficou maluca?”.

- É a última vez que eu vou perguntar – Samantha proferiu ameaçadora – Onde foi que você conseguiu esses papéis?

Rafael suspirou e se deixou cair sobre a cadeira.

- Foi só jogar o sobrenome da Heloísa no Google, Samantha – ele respondeu simplesmente – Foi só isso. Eu descobri que ela tinha um posto na Aeronáutica, entrei em contato com a Base Aérea e fiz uma pequena pesquisa de campo. Coisa que você deveria ter se interessado em fazer. Foi bem fácil, na verdade.

E ali, Samantha se sentiu uma completa idiota. E não podia negar: lhe incomodou o fato de aquilo ser tão simples de ela descobrir e mesmo assim Lica não ter aberto a boca e lhe dito nada. Engoliu em seco. Sem dizer nada, acenou brevemente com a cabeça e se retirou a passos firmes.

Deus do céu! Lica achava o quê? Que ela era alguma bocó? Tapada? Burra a ponto de conseguir enganá-la tão bem. Sim, porque se sentiu enganada. Dera a verdade a sua namorada e em troca recebera omissão. Ela lhe omitira as coisas, fora, no fundo, desonesta tanto do ponto de vista profissional quanto do ponto de vista.... E mais uma vez se pegou pensando em por que diabos ela se recusara a lhe contar aquilo. Era como Rafael dissera: em sendo só um acidente, não haveria problemas. A não ser que realmente houvesse algo ali que a fizesse temer. E já diz o ditado: quem teme é porque deve.

Socou a direção do carro e enfiou o pé no acelerador. Havia deixado Luna com Das Dores, avó de Ellen, naquela tarde. Precisava resolver as coisas e colocar tudo em pratos limpos ou não conseguiria dar mais um passo adiante em nada de sua vida. Estacionou na porta do prédio de Lica, cumprimentou o porteiro e, na sorte, conseguiu subir sem ser anunciada. Já virara frequentadora assídua.

Na porta do apartamento da namorada, hesitou ao erguer a mão. Quase desistiu, chegou a ponderar se realmente estava preparada para um confronto, porque claramente haveria um, mas respirou fundo e encostou a mão em punho na madeira. Precisou bater umas três vezes antes de ser atendida por Benê. A musicista se assustou quando a viu lá, mas ela precisava ir atrás, porque Lica mesmo havia sumido. Não atendia suas ligações e desaparecera do mapa. Aliás, esperava mesmo que ela estivesse ali.

- Oi, Benê. Tudo bom? – cumprimentou com um sorriso – A Lica está aí?

- Olá, Samantha. Tudo bem, obrigada. A Lica está sim, mas pediu para avisar que não está.

- O-oi? – Samantha realmente não entendeu.

- Ela está, mas pediu para eu dizer que não para quem aparecesse aqui. Acho que ela não quer ver ninguém.

Samantha riu pelo nariz e suspirou.

- Olha, você me desculpa, mas agora que eu sei que ela está, não vou sair daqui até falar com ela – e se plantou na porta – É realmente importante.

- Eu sei. Ela falou que o pai de sua filha contou sobre o acidente.

Ah, não!

- Espera... você sabia? – claro que Benê sabia. Era a melhor amiga de Lica. Pelo visto a idiota ali havia sido só ela e essa constatação fez uma pontinha de raiva aparecer lá no fundo. E dessa vez, Samantha não conseguiu muito bem controlar – Pelo visto, só eu não fui avisada de que a Lica tinha a ver com uma morte.

Desgostosa, Samantha soltou do nada só para estacar quando encontrou com Lica parada feito um dois de paus no meio da sala, atrás de Benê. Engoliu em seco. Sua namorada parecia estar destruída, a expressão cansada, vazia. E de fato Lica o estava. Saíra da cama para pegar uma água quando ouviu vozes na sala. Sua intenção era pegar uma garrafa na geladeira sem ser notada e sumir das vistas de quem quer fosse que Benê estivesse recebendo, mas foi atraída quando ouviu a voz de Samantha.

A voz de Samantha se referindo a ela, nas entrelinhas, como a responsável pelo que acontecera. Não, ela não tinha a ver com uma morte. Ela não fora a responsável pelo que aconteceu. Qual a parte do “foi um acidente” sua namorada não entendia? Estava ali um dos motivos que a levavam a ficar em silêncio. Não queria o olhar acusador nem de pena das pessoas. Já tivera muito isso nos meses em que passou na Aeronáutica depois do acidente, tentando se manter firme e continuar onde estava. Já tivera isso quando ouvira de Bóris o convite para que ela desse um tempo em suas funções para cuidar de si. Tivera isso no dia em que quase causara um acidente com um bimotor na decolagem da Base Aérea. Seu comandante esfregou a testa e soltou um “Lica, você não está bem”. Ela sabia que não estava. Não precisava das pessoas lhe lembrando aquilo o tempo.

Muito menos sua namorada e em um tom que a ela soou tudo, menos ameno.

- Lica? – Samantha chamou em riste quando a encontrou ali atrás. Benê se virou e ficou ali entre elas. E diante do silêncio da namorada, a empresária continuou – A gente pode conversar?

Heloísa demorou uns dez segundos para responder alguma coisa. E quando o fez....

- Eu não tenho a ver com a morte de ninguém, eu não matei ninguém. Foi um acidente. Se você não acredita em mim, é melhor ir embora.

Mas Samantha. Bom, ela sabia ser bem insistente quando queria. Ao invés de responder a Lica, virou-se foi para Benê.

- Benê, você pode nos dar licença? É realmente importante.

A musicista queria responder que não, mas até ela sabia que a situação ali não permitiria público. Acenando, ela retornou para o teclado de onde pegou suas partituras e seguiu para o apartamento da frente deixando Lica e Samantha sozinhas.

A empresária entrou e fechou a porta atrás de si e se virou para Heloísa com um olhar duro.

- Se é pra gente falar sobre acreditar uma na outra, vamos começar por você me escondendo coisas da sua vida e me fazendo de idiota – disparou – A Benê sabia, a Keyla deve saber também, o Rafael descobriu antes de mim. O Rafael, Lica! Quem é você pra vir falar de confiança quando omitiu uma parte da sua vida e mentiu na minha cara? Se você me responder isso, eu respondo se acredito em você. Pode ser ou você vai fugir como sempre faz?


Notas Finais


Bom, é isto. A Lica ficou calada, mas alguém chegou e fez o que ela não teve a coragem de fazer rs. É aquilo, meus amigos: se você tem a chance de fazer algo e não faz, alguém vem e aproveita a chance no teu lugar rsrs. E olha... complicado pra Samantha, viu? Essa situação pode lascar no processo de guarda da Luna. Agora vejam a Lica: a Samantha está puta com ela; ela claramente magoou a namorada, ficou sem o emprego, teve que lidar com as maluquices do Rafael falando dela, reviver essa história é só pra foder ainda mais com o juízo dela e em meio a uma possibilidade de refazer o psicotécnico e tentar reingresso. Gente, com que cabeça a Lica vai conseguir fazer psicotécnico? kkkkkkk. Eu fiquei com dó na menina Heloísa, viu? De verdade. Aliás, ela está mal e quando ela está assim, tende a fazer coisinhas erradas. Espero que ela não se precipite e procure o Bóris pra tomar a decisão errada rs.
Mas e aí? E a Samantha? Ficou claro que ela acredita na Lica, mas que é de lascar tua namorada te esconder as coisas, ah é sim. Ainda mais que no caso, a Lica não era só namorada, mas funcionária dela. Mentiu pra patroa kkkkk.
Bom, no meio do circo armado, eu queria saber as impressões de vocês rsrs. Lica errou? Lica estava certa? Samantha está certa? Ou está agindo movida pela raiva?

No mais, agradeço pela leitura e nos vemos no próximo capítulo!


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