A viagem de volta foi rápida, porém muito escura. Era como cair num abismo sem ter certeza do que está lá; pode ser algo fácil, como a Alice caindo na toca do coelho, ou algo difícil, como cair no Tártaro. Graças a Zeus, foi como cair na toca do coelho, mas o ar estava completamente vazio, sem objetos para eu esbarrar ou parede para encostar. O frio na barriga e a sensação de enjoo logo passaram quando fui atirada – nem um pouco graciosamente – no carpete pinicante da sala de cinema. Automaticamente senti meus cotovelos queimarem e gemi enquanto me levantava. Adam estava sentado na primeira fileira bem em frente ao telão, seu rosto expressava divertimento e choque. Olhei ao meu redor enquanto esfregava os cotovelos distraidamente. O cinema parecia o mesmo de quando saímos, mas não havia ventania alguma e não passava o filme na tela. Caminhei meio mancando até Adam e sentei-me ao seu lado. Ficamos em silêncio por alguns minutos, encarando a tela/portal apagada e tentando absorver tudo aquilo. Ainda parecia um sonho. O tempo não avançara nem um minuto desde que partimos. Um ar de pura confusão pairava sobre nossas cabeças e ainda havia inúmeras perguntas que precisavam ser respondidas.
– Foi ele, Adam. – Comecei. – O homem da bilheteria. Eu sei que ele teve alguma coisa a ver com isso. – E de certa forma aquelas palavras verbalizadas só me fizeram ter ainda mais certeza.
– Você está sangrando. – Observou ele, virando a cabeça para a direita para me olhar.
– Muito bem observado! – Respondi, olhando para o meu braço e roupa ensanguentados. – A vagabunda da Glimmer atirou uma flecha em mim, mas só pegou de raspão. – Fiz uma pausa e franzi o cenho. – Cara, eu me sinto completamente esquizofrênica por falar isso. Nunca vou me acostumar. – Comecei a rir e encostei a cabeça no ombro de Adam.
– Eu estava falando da sua cabeça, sabe. – Murmurou ele.
Sentei-me ereta e lentamente levei a mão até minha testa, tocando-a com a ponta dos dedos. Senti que havia um corte ali, assim como também havia um caminho de sangue seco do corte até minha bochecha. De repente senti uma dor de cabeça terrível e desejei como um bebezinho uma cama macia, cobertor e travesseiro.
– Eu queria que não tivesse me contado. Agora estou ciente da ferida e está doendo. – Meus dedos ainda pousavam sobre o corte.
– Lori, a gente tem que falar com aquele cara. – Falou ele de repente num tom sério.
Assenti levemente e ele me ajudou a levantar. Só então notei que ele mancava levemente e tinha um corte no joelho esquerdo, onde sua calça estava rasgada, mas até isso ficava bem nele, parecia que era proposital. Sua camisa branca estava marrom de sujeira e sangue, sua jaqueta tinha alguns rasgos nas mangas e nas costas, mas nada muito grave, pois era de couro legítimo. Sorte dele. Minha blusa de lã estava em farrapos e eu me assemelhava a uma mendiga.
– Espera. – Chamei sua atenção. – Como vamos aparecer em público com essas roupas desse jeito e o sangue? – Indaguei lançando lhe um olhar preocupado.
Ele sorriu. Um sorriso que dizia “Você não sabe com quem está falando?”. Um que eu chamava de “O sorriso Adam”. Pegou no meu pulso e foi me arrastando até o corredor do lado de fora da sala de cinema. Ele virou para a esquerda, em direção a saída, e depois para esquerda novamente. Eu sabia exatamente para onde ele estava indo. O corredor era longo e amplo, iluminado por diversos lustres escarlate que mais pareciam abajures, cada um pairava em cima de um telefone público na parede branca. Adam parou na frente de um dos telefones, tirou-o do gancho e começou a discar.
Quinze minutos depois avistei uma silhueta esguia no final do corredor caminhando em nossa direção. Adam, que estava sentado no chão apoiando as costas na parede logo levantou-se e foi de encontro com ela. Coloquei uma mão na cintura e outra na têmpora, soltando um suspiro inaudível. Sua voz anasalada me fez revirar os olhos quando ela começou a conversar com ele. Me recompus e segui em frente até os dois. Ela usava brincos de folha. É, uma folha verde e verdadeira. Seu cabelo cor de mel cacheado estava preso desleixadamente em um coque no topo da cabeça. Ela usava um vestido comprido com estampa de girassóis delicadas e uma blusa de frio branca grossa. A garota tinha olhos verdes da mesma cor que a folha dos seus brincos e calçava sandálias de couro no estilo Jesus.
Luella Flores.
– Flores. – Cumprimentei educadamente.
A garota me olhou e esboçou um sorriso tão doce que até fiquei diabética por alguns segundos.
– Lola! – Sua voz saíra quase como um suspiro. – Por onde andou todo esse tempo? – Ela parecia citar Shakespeare.
Hesitei mordendo o lábio inferior e olhei para Adam, que assistia a cena com divertimento. Que a garota era lunática todos sabíamos, tão lunática a ponto de não notar que parecia que tínhamos acabado de sair da guerra, mas apenas meu estúpido melhor amigo sabia do tamanho da aversão que eu sentia por ela. E um dos motivos era porque ela me chamava de “Lola”. Outro motivo era que suas perguntas eram vagas, na maioria das vezes sem sentido (ou com duplo sentido não-intencional) e outras vezes até incompleta. Mais um motivo era sua inocência sobre a vida; para ela era tudo paz e amor (amor até demais, se me permite dizer). Mas esses não eram nem de longe os principais motivos dela ficar “entalada” na minha garganta.
– Então, é basicamente sobre isso que eu queria falar contigo, Lua. – Interrompeu Adam. Ela virou-se para ele e o encarou com olhos grandes e verdes, assentindo para que ele prosseguisse. – Precisamos que pegue algumas roupas para nós na loja da Malu. Eu te dou meu cartão. Mas você tem que trazer as roupas aqui. – Disse ele.
A menina trabalhava na loja de roupas hippie da mãe da sua melhor amiga, que a propósito me odiava tanto quanto eu a odiava. Malu Chen era chinesa, tinha um metro e meio e se você olhasse para ela nem imaginaria a quantidade de palavrões que ela sabe. Era totalmente o oposto de Luella.
– Tudo bem! – Respondeu rapidamente. – Posso escolher as roupas? – Perguntou com um brilho nos olhos.
– Posso escolher a morte? – Perguntei a ninguém em particular num resmungo baixo.
Adam ergueu o polegar fazendo sinal de positivo e a garota saiu saltitante. Resisti ao impulso de socar Adam quando o mesmo sorriu se desculpando para mim.
– O que você vê nessa garota? – Perguntei fitando o local onde ela estava parada minutos antes. – Ah, não. Não responda. – Disse rapidamente balançando a cabeça.
Ele dormia ela de vez em quando. As vezes matava aula e passava o dia na casa dela ou ela entrava sorrateiramente pela janela do quarto de Adam durante a noite. Era repugnante.
– Isso é por causa do Todd? – Ele estava com uma expressão estranha.
Eu nem me lembrava que, além de dormir com o meu melhor amigo, ela também dormira com o meu ex-namorado. Rangi os dentes e encarei o garoto com uma sobrancelha arqueada.
– Por que seria? – Indaguei.
– Por que tá respondendo minha pergunta com outra pergunta? – Retrucou.
Mas ele sabia da resposta; eu fazia isso quando queria fugir do assunto. Todd, meu pai, a vida sexual da minha irmã e abóboras eram os assuntos proibidos.
Suspirei quando ouvi passos na nossa direção e preparei-me para o segundo round de paz e amor. Porém o que eu vi a seguir não era exatamente o que estava esperando e definitivamente não estava preparada para isso. Seu cabelo quase branco e a correntes de ouro brilhavam com uma intensidade desconfortante sob a luz do corredor. Os passos eram abafados e ele parecia mais sinistro que antes.
– Achei que os encontraria aqui. – Disse ele.
Sua voz era uniforme e tinha um toque de superioridade nela, nada do que sua aparência sugeria que seria. Esperava mais gírias e menos controle.
– Escuta, eu não vou fazer aquele lance de “Quem é você e o que você quer?” porque sei que isso vai acabar em morte como nos filmes de terror. – Fiquei orgulhosa de como eu parecia corajosa, apesar de internamente tremer. – Pode, por favor, nos matar logo ou dizer por que está nos perseguindo? – Eu estava cansada dessa droga.
– Preciso da sua ajuda, filha de Camir.
De todas as respostas que pensei que receberia, essa com certeza não era uma delas. Até pensei que ele poderia dar uma de Hagrid e dizer “Você é uma bruxa, Lorena” ou “Você é uma Caçadora de Sombras”, mas não rolou. O cara era pirado.... E ele parecia o Supla. Adam estava estático ao meu lado.
– Como? – Perguntei.
– Suponho que não tenha frequentado a Academia. – Ele pousou os olhos frios em mim e eu me encolhi. – E suponho que não saiba nada sobre seu pai…. Ou sua origem. – Completou.
Senti a cor do meu rosto sumir. Adam colocou sua mão em meu pulso discretamente e o apertou de leve quando sussurrou meu nome. Não consegui me mexer ou responder que estava bem, estava ocupada demais rebobinando os últimos cinco minutos na minha cabeça de novo e de novo. Estava tão atordoada com a menção do meu pai que nem fiz piada com o que ele havia dito sobre academia.
– O que sabe sobre o meu pai? – Perguntei quando consegui reunir forças para falar novamente. – Ele nos abandonou e não voltou mais. Ele simplesmente…
– Sumiu? – Completou o homem.
Os pelos dos meus braços se eriçaram como se quisessem ser notados. Senti gosto de sangue na boca e notei que estava mordendo o lado interno das bochechas com força. Meus olhos queimavam por ficar tempo demais sem piscar encarando a luz do lustre. Pisquei algumas vezes e voltei a encará-lo com relutância.
– Talvez queira se sentar. – Sugeriu. – Acompanhe-me.
A sala era pequena e repleta de quadros, na qual todos pareciam ser cenas de livros, até reconheci algumas. Uma luz baixa dava ao local um tom sombrio. As paredes eram de pedra e o piso de vinil escuro. Sua mesa estava posicionada em frente a uma grande lareira onde um fogo arroxeado crepitava e dançava. Não havia mais móveis, exceto pelo sofá roxo em frente à mesa e a cadeira de veludo da mesma cor onde sentava-se o homem da bilheteria. Adam e eu estávamos sentados no sofá completamente tensos, eretos e evitando tocar nas coisas. Sua mão estava pousada no meu joelho como um encorajamento que dizia “Estou aqui” e me senti feliz por tê-lo como amigo.
– O que sabe sobre seu pai? – Perguntou o homem como se aquilo fosse um interrogatório.
– Nada. – Respondi secamente. – Por que você o chamou de Camir? Seu nome era David.
Na verdade, essa fora a única informação que minha mãe nos deu sobre ele; o nome.
– Isso foi o que lhe contaram. Garanto que nada do que disseram é verdadeiro. – Sua voz cortava o crepitar do fogo como uma faca. – Ou você não estaria aqui e seu pai lá. – Ele encarava as próprias unhas.
– Lá? Onde é lá? – O desespero fez com que eu aumentasse minha voz.
– O portal. – Respondeu ele, sabendo que sabíamos perfeitamente do que ele estava falando. – Ele está preso em alguma das dimensões. – O homem ajeitou-se na cadeira e se inclinou para frente, apoiando os cotovelos em cima da mesa e cruzando os dedos em frente ao rosto, como os adultos normalmente faziam quando a situação era séria.
– Como? Por quê? – Encarei-o implorando por uma resposta.
– Às vezes um grupo de Vírus cresce em uma das dimensões e cria o caos, então um Guardião é convocado para combatê-los antes que tudo fuja do controle. – Explicou o mesmo, esbanjando paciência e escuridão ao mesmo tempo.
– Guardião? – Minha mente dera um nó.
– Guardião do Portal. Como o seu pai era.
Levantei-me com um impulso e dei um tapa na mesa dele. Na mesma hora senti minha mão arder, mas não me importei.
– Não vem com essa de meias respostas. Eu preciso de respostas completas. – Eu estava quase gritando.
– Seu pai era o Guardião do portal da América do Sul. O portal fica na Sala 7. – Disse ele enquanto se levantava. – Estou substituindo ele, mas esse não é meu trabalho. Faço parte do Conselho dos Anciãos e um dos meus trabalhos é cuidar dos Guardiões. – Continuava falando enquanto observava uma das pinturas na parede logo acima da lareira.
– Parece que fez um trabalho de merda. – Observei sarcasticamente.
– Lorena! – Advertiu Adam de olhos arregalados.
– Ela está certa! – O homem falou. Pela primeira vez parecia ter notado a presença dele. – Entretanto, descobri uma maneira de resgatá-lo se ele ainda estiver vivo. E é aí que você entra. – Ele virou-se e olhou para mim com olhos tão brilhantes quanto diamantes.
Meu subconsciente continuava repetindo as palavras “Se ele ainda estiver vivo”. Eu não entendia muito bem o que tudo aquilo significava, não entendia o que eu tinha a ver com isso e por que minha mãe nos disse que ele nos abandonou. Aliás, ela sabia sobre toda essa insanidade? Teria sido legal um aviso ou uma dica, podia ter mandado um Whats dizendo “Ei, não entre naquela sala pq vc vai ser sugada pela tela do cinema que nem um aspirador de pó. Bjs”
— Escuta, cara, tudo o que eu sei é que eu passei a vida toda acreditando que meu pai tivesse me abandonado e eu sobrevivi sem ele, ok? Eu não vou a lugar nenhum sem algumas respostas.
Ele me olhou de um jeito estranho, parecia contrariado e talvez até um pouco orgulhoso. Ele parecia ser jovem, mas com uma alma antiga, ele exalava conhecimento.
— Muito bem. — Respondeu, encostando-se na mesa com os braços cruzados sobre o peito. — Resumindo, as dimensões são todas as histórias que já foram criadas por todos os seres humanos que já pisaram na Terra. Se ela foi escrita e imaginada, desenhada, filmada ou modelada, não importa. Cada história é única e tem sua própria dimensão, de certa forma é como entrar no cérebro do criador e ver exatamente do jeito que ele viu. — Ele parecia maravilhado ao explicar, e eu não o culpava.
Na verdade, isso explicava um bocado. Por isso que o filme Jogos Vorazes parecia tão real e os atores não sabiam que eram atores, porque naquela dimensão eles eram os próprios personagens. Eu me sentia extasiada, era como um sonho virando realidade. Parecia até bom demais para ser verdade.
— Então quer dizer que se eu escrevi uma história.... tem uma dimensão onde minha história acontece? — Perguntei.
— Depende. A história está completa?
— Não exatamente...
— Bom, então isso é um assunto para outra hora. O que importa são as completas, aquelas que alcaçaram um público maior e estão vivas nas mentes de todas as pessoas que leram, essas são as dimensões mais fortes e vívidas. Há menos de um por cento de chances de alguém ir parar na dimensão de uma história qualquer, que não tocou corações e incitou mentes. — Ele pigarregou, percebendo que falara demais. — Não é tão complicado assim, filha de Camir.
Fiquei em silêncio por um minuto, absorvendo tudo aquilo. Adam estava muito quieto e parado, ele encarava os próprios pés. No que estava pensando? Queria saber se ele estava achando tudo aquilo tão absurdo e maravilhoso quanto eu, queria saber se estava com medo, mas não falei nada.
— O que são esses Vírus? O que eles fazem? Eles são tipo demônios ou zumbis?
— Eles não tem forma, se manifestam abrindo buracos nas dimensões e as misturando, só ganham forma quando estão fortes o suficiente. — Sua expressão agora era sombria, não havia nada de maravilhado ali.
Achei que fosse rir da minha pergunta, mas o assunto era mais sério do que eu pensava.
— Preciso saber se vai ajudar ou não. — As sobrancelhas se arquearam, deixando a pergunta no ar. — Não acho que ele vá durar mais dezesseis anos, então, tic tac...
— O que eu tenho que fazer?
Senti Adam ficar tenso ao meu lado, ele me encarava com incredulidade.
Um sorriso bizarro brotou em seus lábios finos, deixando amostra os dentes de ouro, e ele abriu os braços como se fosse me abraçar, mas não se moveu.
– Use seu anel. – Respondeu ele como se fosse a coisa mais óbvia do mundo. – Ele fornece uma conexão com seu pai que só funciona de Guardião para Guardião. Você vai poder sentir quando ele estiver por perto e vice-versa. – Esclareceu.
– Que anel?
Eu não possuía nenhum anel. Não que eu me lembre.
– Se você não o possui, então sugiro que comece a procurar. – Ele não sorria mais. – Estarei bem aqui quando voltar. Só não demore.
– Espere. Qual é seu nome? – Gritei por cima dos ombros quando já estava quase de volta ao corredor.
– Elias. – Sua voz saiu suave detrás da porta do escritório.
Após o ocorrido, tudo passou muito rapidamente. Não tive forças para odiar Luella quando ela chegou e nos entregou roupas hippies ridículas, por sorte eram roupas de inverno e cobriram os machucados. Apenas nos trocamos, lavamos o rosto na pia do banheiro e jogamos as roupas destruídas no lixo. A mãe de Adam já estava nos esperando lá fora quando saímos e parecia impaciente. Que horas eram? O caminho de volta foi silencioso. Minha mãe escondera de mim todo esse tempo a verdade sobre meu pai e isso eu não perdoaria. Não sabia por que havia confiado naquele em Elias, mas senti que era verdade o que ele dizia, apesar de ser insanidade. Mas afinal de contas eu tinha um pai e ele não me abandonara. Eu estava feliz, triste, confusa e extasiada ao mesmo tempo.
Quando cheguei em casa mamãe me esperava na sala. Ela parecia estar em um dos seus momentos de surto de raiva — não era exatamente incomum, era só por um dedo fora da linha. Ela quase me atacou quando abri a porta. Ficou gritando sobre como eu a deixara preocupada, não havia ligado para dizer onde estava e que estava de castigo até a volta de Jesus. Não ouvi nem metade das baboseiras.
– Eu sei sobre o papai. – Foi tudo o que eu disse.
Ela congelou.
Muitos usuários deixam de postar por falta de comentários, estimule o trabalho deles, deixando um comentário.
Para comentar e incentivar o autor, Cadastre-se ou Acesse sua Conta.