22 de dezembro de 2016:
Beirute, Líbano:
Pov. Joana Pereira:
A viagem de ontem foi cansativa e hoje eu sinto os reflexos, não só da viagem, da noite mal dormida. A "cabana" dos meus pais era desconfortável, não haviam camas, eram colchões no chão e tapetes.
-Já terminou ai? Nós já estamos atrasados para encontrar o pessoal. - meu pai me apressa.
-Já, podemos ir. - falo pegando o caneco que eu havia tomado café e me levantando.
Saímos de casa e eu passo uma água nele, na pia que se encontrava do lado de fora.
-Você sabe o quanto eu odeio essas marcas. - minha mãe fala avaliando a mochila pendurada em meu braço.
Reviro os olhos.
-Já pegou minha câmera, pai? - pergunto ignorando o comentário da minha mãe.
-Eita, já ia esquecendo. - ele fala.
Meu pai volta para dentro de "casa" para pegar meu equipamento.
Ajeito minha mochila em minhas costas, enquanto sou observada pela minha mãe.
-Você sabe que essas coisas que você está usando são feitas com mão de obra escrava. - ela comenta.
-Mãe, por assiass peço.
Minha mãe era extremista nesse quesito. Ela odiava as grandes marcas porque segundo ela o trabalho da mão de obra era escravo. Ela proibiu a coca-cola em casa, odeia a Nike, tem nojo da Converse e das grandes grifes ela não suporta nem ouvi falar.
-Por favor? Você sabe que para você usar essa coisa, uma pessoa trabalha mais de doze horas para ganhar alguns centavos de diária.
Solto o ar pela boca.
-O que deu em você? Você sabe que quando você compra isso, você apoia a exploração de pessoas, o trabalho infantil, a prolongação do trabalho escravo...
-Você quer que eu vista o que? Que eu me vista desse jeito. - aponto para ela.
Ela usava uma camisa da ONU que um dia foi branca, mas hoje está amarelada, um jeans surrado e botas de trabalhador de construção civil.
-É mais digno me vestir desse jeito, do que vestir isso e compactuar com tantos crimes. - ela rebate.
-Ei meninas. O que é isso? - meu pai aparece intervindo.
Balanço a cabeça negativamente e suspiro.
-A gente tenta ensinar ao mundo o que a gente não conseguiu ensinar para a nossa filha. - minha mãe fala sarcástica e saí andando.
Engulo a seco as palavras dela.
Meu pai me abraça de lado e deixa um beijo em minha testa.
-Você sabe como ela perde o controle as vezes... - ele tenta justificar.
Eu não conseguia falar nada, ainda estava sob efeito do choque das palavras da minha mãe.
-Vamos lá conhecer o pessoal, eles estão ansiosos para te conhecer. - ele fala e começamos a caminhar.
-Espero não decepciona-los também. - digo.
Meu pai suspira e me entrega minha câmera.
-Me fala do seu novo/velho namorado. - meu pai pede para mudar de assunto.
-Nós nos damos bem. - não é uma mentira.
-Só isso? - ele pergunta.
-Ah pai... o que você quer saber? - o questiono.
O que minha mãe me disse não saía da minha cabeça.
-Ele te trata bem? Como foi o reencontro? Como começaram tudo? - ele pergunta.
-Sim, ele me trata muito bem. Nos reencontramos através de amigos em comum e... nos aproximamos e começamos a nos envolver. - digo.
-Você está feliz?
O X da questão. Eu não sei responder isso.
-Tem duvidas? - ele me questiona mais uma vez.
-É que tem muita coisa... não é um namoro comum. - falo.
-O que diferencia?
Meu pai só sabe perguntar.
-Cristiano não está sozinho... ele é uma super estrela, tem milhares de olhos em cima de nós.
Eu não queria mentir descaradamente para o meu pai. Isso faria com que eu me sentisse mal.
-Se vocês se gostam, os olhos dos outros não irão interferir em nada, muito menos na felicidade de vocês.
Droga pai.
-Chegamos. - ele fala e aponta para dentro de uma das barracas daquele imenso acampamento.
Olho para dentro e vejo uma família dentro daquele pequeno espaço. Um casal e três crianças.
-Oi pessoal, essa aqui é minha filha... Joana. - meu pai fala sorrindo.
Eles sorriem, mas os seus olhos não.
-Oi. - falo e sorrio para eles.
-Seja bem vinda. - eles me saúdam em inglês.
-Obrigada.
-Vamos entrar. - o marido convida.
Entramos na pequena casa, que aparentava ser menor que a dos meus pais devido a maior quantidade de pessoas.
Eles começam a se apresentar. Kaled era o pai, Aminah era sua esposa, Khalil era o filho do meio, Hani era o mais novo, mas quem chamou minha atenção foi Anan.
-Me fala mais de você, Anan. - peço.
A jovem era calada, devia ter em torno dos seus dez anos.
-Eu não sei o que dizer... - ela fala tímida.
-Ela é muito calada. - Aminah fala.
Eles juntamente com meu pai começam a contar a história deles. Kaled era dono de uma loja em Aleppo e eles até tentaram se manter na cidade por algum tempo, mas os bombardeios se tornaram frequentes e por pouco eles não morreram.
-E como vocês chegaram até aqui? - pergunto.
-Viemos com um grupo de pessoas que também estavam fugindo... não tínhamos mais nada lá, nossa loja se resumia a pó, nossa casa estava situada numa zona arriscada... não tínhamos mais como ficar. - Kaled fala.
-E aqui, como vocês estão vivendo? - questiono.
-Melhor do que nos últimos tempos e pior do que havíamos planejado. - Kaled responde.
-A gente ainda sente medo, mas aqui estamos mais seguros. - Aminah garante.
-E as crianças? Elas estudam?
-Nós improvisamos uma escola e sua mãe, junto com alguns voluntários vão dando aulas. - meu pai explica.
-E você, Anan, frequenta a escola? - pergunto passando a mão nos longos e pretos fios de cabelo dela que estavam presos num rabo de cavalo.
-Sim, geralmente eu estudo pela manhã. - ela responde.
-E qual profissão você deseja ter? - continuo.
-Eu gostaria de ser médica veterinária... cuidar dos animais, salvar eles. - ela fala e pela primeira vez vejo seus olhos brilharem.
-Você será uma grande veterinária. - digo para ela.
Questiono Kalil também e ele queria ser bombeiro.
Conversamos mais e então eu pedi permissão para fotografar eles. Logo depois das fotos, fomos "passear" pelo campo e conhecer mais gente.
Apesar do campo ser mais seguro para eles, eles viviam com o medo estampado nos olhos e muitos se assustavam com pequenos sons. Algumas crianças chegaram a correr quando ouviram o "click" da câmera e aquilo cortou o meu coração.
-Esse daqui é o lar das crianças que perderam seus pais. - meu pai fala.
Eu conseguia ouvir as vozes infantis.
-As mulheres e poucos parentes que sobreviveram se revezam para tomar conta deles. - meu pai me explica.
Assim que colocamos o pé dentro da pequena casa, eu sou "atacada" por uma pequena garotinha que abraça minhas pernas.
Olho para meu pai surpresa e ele sorri.
Eu pego a pequena em meu colo e ela simplesmente distribui beijos em meu rosto como se eu fosse sua velha conhecida.
-Oi. - falo sorrindo e extasiada pela quantidade de carinho que eu recebi.
Ela continuava me beijando.
-O nome dela é Farah. - escuto meu pai falar.
Ela parou de me beijar e me abraçou forte.
Eu não me lembro quando recebi um abraço assim de um adulto. Só crianças foram capazes de me abraçar com tamanho acolhimento.
Ainda com ela em meu colo, eu fui sendo apresentada as outras crianças. Eu consegui memorizar poucos nomes, porque infelizmente elas eram muitas e tinham nomes pouco comuns.
Eu fui convidada a me sentar com eles para desenhar e brincar um pouco e eu me surpreendi com o quanto aquelas crianças, quando juntas, transmitiam esperança e um pouco de felicidade.
Enquanto as crianças iam terminando seus desenhos, meu pai me chamou num canto.
-Como eles conseguem? - questiono meu pai.
Eu não conseguia entender como eles mantinham um sorriso no rosto e esqueciam de tudo por alguns instantes.
-Ainda bem que eles conseguem. Eles não merecem nada disso. - meu pai fala.
Eles não tinham culpa de nada e nem sequer sabiam o que estava acontecendo.
-A Farah e seus irmão foram retirados da família. - meu pai comenta.
-Por que? - pergunto.
Meu pai engole a saliva.
-Os pais deles estavam jogando gasolina neles para mata-los.
Quando eu escuto isso, imediatamente eu sinto as lágrimas virem.
-Como... - eu nem consegui falar.
Olhei para as crianças e abracei meu pai. Como alguém poderia fazer isso? Matar uma coisinha tão indefesa e inocente.
-Esse é o nosso dia a dia, minha filha. - meu pai fala.
-Por que ela está chorando Doutor feliz? - uma voz infantil carregada de sotaque pergunta.
-Ela está feliz por estar com vocês. - meu pai mente.
me separo do meu pai e forço um sorriso.
-Eu estou muito feliz por conhecer cada um de vocês. - digo com a voz embargada.
Eu estava sufocando meu choro naquele momento.
-Que tal abraçarmos ela? - meu pai sugeri.
Em questão de segundos eu sou engolida por abraços e naquele instante eu não consegui segurar mais. Eles eram capazes de dar tanto amor e mesmo assim viviam naquele lugar, a mercê da guerra, de pessoas ruins.
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