Havia uma piada dentre viajantes que era "Você nunca viajou por toda a Sodephall se nunca se perdeu em Liyprut". Era um fato de que eram o reino com mais florestas e mitos, e agarravam aquilo com unhas e dentes.
Ao sul do reino de Liyprut, existia um pequeno vilarejo chamado Palledum. Todos se conheciam por lá, não haviam muitos rostos novos a menos que fosse uma criança recém-nascida. As pessoas de Palledum acreditavam serem descendentes de seres da Floresta Galhew, jovens deidades que se escondiam em árvores, flores, grama e como animais, e às vezes tinham filhos com humanos - ou era o que as lendas diziam. Nunca houve confirmação sobre isso, muito menos se era verdade que as Tigalhehs protegiam o vilarejo contra o mal.
Essa crença provavelmente era uma mentira, os Palledumens notaram quando o rei Mervol de Tehlis marchou sobre casas e pobres coitados que tentaram o parar, com sua armadura com rosto de demônio.
Por que suas Tigalhehs não tinham os protegido?
— Porque o problema não era delas. A floresta ainda 'tá intacta, o que quebrou foi o vilarejo que só tira delas e mal retribui.
A garotinha respondeu seu irmão enquanto lhe alcançava uma metade da fruta. Ele pegou a fruta e ambos começaram a comer, sentados na grama da floresta abaixo de uma árvore. O sol já se abaixava no horizonte, e logo seria escuro.
— E você acha que elas odeiam a gente também? — Ele perguntou.
— Se odiassem, já teriam nos expulsado de volta pra casa.
O irmão ponderou sobre.
Assim que terminaram de comer a fruta, ela levantou e colocou mais lenha na fogueira à frente. Limpou as mãos.
— Dança comigo? — Ela chamou.
— Você só dança em dias especiais — Ele disse confuso.
— Hoje é especial.
— Mas por que? Você não disse antes que era especial.
— Vem logo dançar!
O irmãozinho foi, hesitante. Deram as mãos e "dançaram" em volta da fogueira, enquanto o céu se pintava de azul escuro. A irmã ria pela falta de coordenação dele.
— Mas por que hoje é especial? — Insistiu na pergunta.
— Porque hoje tudo vai voltar a ser bom — Ela sorriu, ansiosa — Vamos voltar pra casa, abraçar o papai e a mamãe, contar histórias por baixo do lençol tarde da noite…
— Mas a senhora Treilach disse que o papai e a mamãe não…
— Percy — Segurou o rosto dele com ambas as mãos, carinhosa — Vai ficar tudo bem. Você confia em mim, não confia?
Ele confiava.
A última visão que teve da sua irmã foi uma expressão de pânico. Ela tinha notado, tarde demais, que não tinha pensado bem no que estava fazendo e as consequências disso.
A última coisa que ouviu dela foi "Você me enganou!"
A voz tinha respondido: "Devia ter lido as entrelinhas".
E ela tinha se ido.
Ele estava assustado.
A fogueira estava apagada, o ar frio da noite o abraçando como se tentasse levar os estilhaços da sua inocência.
O vento sussurrou no seu ouvido.
"Garotinho, você precisa de ajuda?", elas perguntaram.
Ele chorou.
/×/
A morte chegou ao reino de Galatea com o total silêncio.
Não havia brisa balançando as árvores, um pássaro cantando ou muito menos o uivo de um lobo. As crianças estavam silenciosas nos berços, nem mesmo os grilos se atreviam a emitir som.
E no meio daquele silêncio, o inferno chegou à Terra na forma do temido Rei Demônio, como chamavam o rei Mervol de Tehlis.
Enquanto o castelo era invadido, o príncipe Félix carregava no colo sua irmã menor, de 8 anos, para um das passagens secretas.
Seu pai havia dito com todas as letras: pegue suas irmãs e fuja.
A rainha Mircel estava bem desperta quando invadiram o salão principal. Estava com armadura e espada, sabia que algo ia acontecer, mas mal conseguiu conter o avanço. Estava empalada na frente do castelo de amostra.
O rei Ligius logo teria o mesmo destino, mesmo com suas tropas tentando manter os homens de Mervol longe o bastante para seus filhos conseguirem escapar.
— Aqui! Félix, rápido! — A princesa Octavia, que vinha na sua frente, disse abrindo a passagem do corredor.
Ela fechou a passagem atrás dele, e o escuro os englobou. Isso os deu um momento para a ficha cair.
Aster tremia nos braços do irmão maior, confusa e assustada com a agitação. Ele a colocou no chão.
Octavia olhou desolada.
— Por que?
Seus pais estavam mortos. As empregadas que os criaram. Os funcionários que viam todos os dias no castelo. Os guardas que Octavia cortejava quando mais ninguém estava olhando. O jardineiro que deixava Félix ajudar a cuidar do jardim e explicava sobre as plantas. Até as crianças da corte com quem Aster brincava.
— Eu não sei.
Octavia sempre buscava nele as respostas. Ele nasceu quase 30 minutos antes. Félix sempre sabia das coisas, seu pai dizia.
E ele não sabia.
— Como você não sabe?!
— Eu não sei!
— Você sempre sabe!
— Eu também tenho dezesseis, Via! — Félix se permitiu começar a chorar. Escorregou até o chão, tremendo — Eu não sei! Eu- Eu só queria acordar agora!
E Octavia também deixou as lágrimas caírem.
— Isso não é justo! — Ela abraçou o irmão no chão.
Aster apenas os olhava sem entender, alheia à gravidade da situação.
— O que 'tá acontecendo? — Ela perguntou.
Mas nenhum dos irmãos mais velhos respondeu.
Os sons de batalha se aproximaram, Félix pegou a mão da gêmea e se levantou. Pegou Aster no colo de novo.
Voltaram a correr pela passagem. Poderiam chorar mais tarde, lamentar, gritar. Agora precisavam sobreviver.
A passagem dava para os estábulos.
Félix preparou rápido dois cavalos. O malhado de castanho e branco era dele, Sebastian, enquanto o de pelagem preta era de Octavia, Maximus. Sua mãe foi quem os presenteou com estes apenas 3 anos antes.
Ele entregou as rédeas de Maximus para Octavia.
— Você e Aster vão juntas na frente, eu vou ficar atrás de vocês pra ter certeza que não estamos sendo seguidos — Disse, já montando em Sebastian.
— … Não tente bancar o herói — Ela pediu, mal exibindo a preocupação que sentia no fundo — Por favor. Já tivemos o bastante de sacrifícios.
— Não vou — Garantiu.
Octavia ajudou a irmã a subir na frente do cavalo. Fez carinho no rosto de Maximus.
— Ei, Max. Por favor, dê o seu melhor nessa corrida. Por favor. Você lembra da Aster? Que você sempre tenta comer o cabelo? É ela aí, e eu preciso levar pra longe — Disse para ele, como se contasse um segredo enquanto encostava a testa na do cavalo — Não pare de correr até estarmos longe, certo?
Ela abriu as portas e rapidamente pulou para cima de Maximus.
Eles começaram a galopar.
E galopar.
Conseguiram sair da zona do castelo antes das tropas notaram o movimento e sua guarda de cavalaria ir atrás.
Maximus realmente corria como o vento, como Octavia pediu a ele. Ela mantinha as mãos nas rédeas, mas perto o bastante de Aster para evitar qualquer queda. A menor estava também agarrada ao cavalo.
Félix mantinha um olho na cavalaria, gritando para a irmã aumentar a velocidade quando necessário.
— Vamos para a floresta Coewis! — Ele gritou ao ficar momentaneamente ao lado dela na corrida.
— Você tem certeza?! Lá-
— É onde eles vão parar de seguir! Todos têm medo de lá!
Octavia cedeu e assentiu com a cabeça.
Voltando para trás, Félix foi pego de surpresa por uma saraivada de flechas. Conseguiu escapar da primeira onda, mas na segunda Sebastian foi atingido. O cavalo continuou galopando, embora mais lento. Ele colocou a mão na lateral do pescoço do companheiro.
— Aguenta firme, logo podemos descansar — Sussurrou contra o vento. Estava apavorado.
Octavia virou para olhá-lo preocupada. Confirmando que ele estava bem, voltou a olhar para frente.
A terceira saraivada deixou uma flecha no seu ombro, e ele gritou.
Eles entraram em uma parte mais densa do bosque.
— Te encontro no cruzamento do riacho! — Félix gritou para a irmã.
— O que?!
— Eu juro!
Com isso, ele desviou de caminho, indo para a direção oposta.
"Aquele idiota!", ela gritou em pensamento.
Seus perseguidores se dividiram, grande parte indo atrás de Félix que se destacava com suas vestes mais claras e cabelos loiros, enquanto Octavia conseguia se mesclar mais ao cenário na sua paleta escura.
— Vamos, só mais um pouquinho — Octavia disse em um sussurro. Aster a observou com seus grandes olhos castanhos.
Logo à frente se podia ver o riacho que separava o bosque do castelo da Floresta Coewis, que era conhecida pelas histórias de monstros e criaturas malignas que rondavam por lá. Ironicamente a única salvação deles.
— Não fica com medo, Estrelinha — Ela sussurrou para a irmã — Você vai ficar bem, nós vamos…
Um dos cavaleiros armou uma flecha certeira. A forma da princesa Octavia se revelando enquanto se aproximavam de uma área aberta.
Ele atirou.
Os olhos avelãs se arregalaram. A ponta da flecha se projetou do meio do seu peito, atravessando as costas. Suas mãos afrouxaram. Octavia caiu do cavalo. O corpo sem vida bateu no chão com uma expressão final de susto.
Maximus não parou. Aster, com seus míseros 8 anos, continuava abraçada no pescoço do garanhão, em choque, respingada de sangue.
Eles cruzaram o riacho. Não havia sinal de Félix.
Um dos soldados desceu do cavalo para verificar o cadáver da princesa. Olhou para os companheiros.
— Seguimos a menor? — Indagou.
— Não, ela já está morta — Disse o líder da tropa com zombaria na voz — Os idiotas condenaram a própria irmã.
Alguns acompanharam rindo. Outros mantiveram o silêncio em respeito à família.
Maximus eventualmente parou, cansado demais para manter o ritmo. Deitou no chão, bufando.
Aster desceu do cavalo, cambaleante. Olhou ao redor, sem saber o que fazer.
— Oi? Oi? Tem alguém aí? — Ela gritou para a floresta — … Alguém pode me ajudar? — Pediu.
O horizonte manchado em laranja, rosa e azul marcou o fim da noite em que Mervol de Tehlis tomou o que uma vez foi chamado de Galatea.
O fim da noite em que a família real foi exterminada e seus governantes expostos em mastros na frente do castelo.
— Por favor, alguém — Aster começou a chorar — Eu tô assustada…
O barulho de folhas secas sendo esmagadas fez a princesa virar. A princípio não parecia haver nada, mas notou que, entre duas árvores, alguém estava escondido.
O rosto não era visível por culpa de uma máscara branca com ondas vermelhas, mas era alguém. Ao notar que foi visto, lentamente deixou seu esconderijo. Era pouco maior que a própria Aster, e estava coberto por uma capa preta.
— … Oi — Ela disse em um sussurro.
Ele se aproximou com cuidado, agachado, sem querer assustá-la. Ela deu apenas alguns passos para trás.
A criatura parou de andar. Olhou para ela e depois para o chão. Desenhou na terra.
Aster deu alguns passos para o lado para conseguir ver o desenho.
Era uma casa, como num desenho de criança. Ao lado, ele desenhou pessoas de palitinho raivosas, e marcou um grande X neles. Apontou para as pessoas, para a casa e fez sinal de não com o dedo.
Aster precisou de alguns segundos para tentar processar.
— Você não gosta daquelas pessoas na sua casa? Você mora aqui? — Ela chutou.
O ser negou rapidamente. Ela voltou a pensar
— …. Você sabe um lugar onde as pessoas ruins não vão estar? — Tentou de novo.
Assentiu. Estendeu uma mão para Aster.
Aster olhou ao redor. Aceitou a mão dele.
A criatura se levantou e lentamente começou a andar, esperando ela acompanhá-lo.
Ele a colocou em cima de Maximus novamente. Tocou o rosto do cavalo, que bufou, mas não foi agressivo. Pegou as rédeas do cavalo e começou a andar, o animal o seguindo.
— Qual o seu nome? O meu é Aster! Aster Odessa Aristides! Minha mãe diz que Odessa era o nome da minha avó — Se apresentou, parecendo começar a se recuperar dos acontecimentos, mas ainda sem entender o peso.
O ser apenas olhou para ela e não deu uma resposta.
A menina continuou falando durante o caminho.
Enquanto o sol se erguia, o vento captava as conversas unilaterais entre uma criatura encapuzada e a pequena suja de sangue e terra que vinha no cavalo que ele puxava para algum lugar seguro, longe do horror da guerra.
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