Aquele barulho ensurdecedor ecoou pela mente de Elis por um tempo imprescindível. Todos os anos, todas as memórias, todos os minutos que se passaram com a menina escondendo os roxos de sua pele voltaram em questão de segundos. Ouviu sua mãe a chamando para almoçar, e desceu as escadas já sentindo o clima pesado que se instaurava na casa. Com toda a família sentada à mesa, o silêncio reinou e só o essencial era comunicado. Seu pai tinha tido um dia ruim no trabalho, e isso significava que todos teriam um dia ruim em casa.
- Elis, você já fez suas provas? - O corpo da menina se arrepiou. Sentiu aquele aperto na garganta característico.
- Já, pai - Evitou seu olhar, focando em tudo menos no homem a sua frente. Ela sabia exatamente o que aconteceria após essa conversa.
Sua mãe e irmã encaravam a cena, assustadas com o que aconteceria. Todos dentro de casa sabiam do comportamento agressivo do pai. Como ele descontava seus problemas na família, os problemas de raiva, as crises que aconteciam a cada erro. Uma louça na pia poderia significar maquiagem em um olho roxo por dias. A única vontade de Elis nesse momento era fugir. Saber do que está prestes a acontecer e não poder fazer nada era desesperador. Percebendo a resposta curta da menina, seu pai a encarou.
- Você não vai me mostrar os resultados? Ou eu tenho que esperar a mesma decepção de antes? - A casa estava absolutamente silenciosa; Era possível ouvir uma pena caindo no chão. Seu coração acelerava a cada segundo.
- Eu… - Sua garganta estava fechando. Seus olhos estavam molhados. O corpo inteiro tremia de medo, raiva ódio, vergonha. Se a última surra tinha sido ruim, essa seria pior.
- Já dá pra ver pela sua cara os resultados. Você tem algum problema, Elis? Eu pago escola pra você só me dar desgosto? Só te peço uma coisa, e nem nisso você é competente. Não adianta chorar. Levanta agora.
A garota olhava ao redor, em total desespero, esperando que alguém fizesse algo. O único barulho era o de seu coração martelando no peito. Ela estava sozinha. Muitas emoções são ruins, mas nenhuma se compara à solidão. Saber que não importa o que aconteça, sua única rede de suporte vai ser você mesma. Ela já estava de certa forma acostumada com os tapas, socos, e o desconforto depois de uma surra; Mas a sensação de passar por isso tudo sozinha, isso sim era algo que ela nunca conseguia se acostumar. A dor de não poder contar com ninguém nem em seus piores momentos.
Os minutos pareciam durar horas, e o dia parecia interminável. Quando o pai achou que a lição já estava dada para Elis, ela se sentia horrível. Envergonhada. Humilhada. Fraca. Por quê? Por que ela não conseguia se defender? Por que ninguém defendia ela? Ela era um ser humano tão horrível ao ponto de merecer isso tudo? Enquanto seu pai se levantava e ia em direção a sala, ela se arrastou até seu quarto e trancou a porta. Mas o estrago já estava feito. Os hematomas começaram a florescer, e havia um corte em seu lábio. “Vai ser difícil de explicar isso para a direção”, ela pensou. O dia foi mesmo uma grande merda.
Deitou-se na sua cama, em total silêncio. Seu único desejo no momento era morrer. Não entendia o por quê isso acontecia com ela. Por que todas as desgraças do mundo recaiam em sua vida. A adolescência não deveria ser um período incrível? Uma época em que se cria memórias, amizades para a vida inteira, momentos que irão gerar nostalgia no futuro? Por que ela não teve direito a essa felicidade? Seria essa vida um karma por pecados passados? Nada fazia sentido. Elis estava desolada. Sem amigos, uma família desestruturada, e sem motivos para se manter viva.
“Eu preciso realmente ficar viva?” Um questionamento aparentemente inocente aparece em sua mente, e lá permaneceu.
Em um surto de coragem, ela se levantou e foi em direção a segunda gaveta da cômoda mãe. Sabia dos pesadelos que ela tinha, e como eles só eram resolvidos com medicações fortes. Três cartelas seriam o suficiente. Tudo o que ela queria no momento era paz, uma escapatória para o inferno que sua vida se tornou. Após um tempo encarando as diversas pílulas na palma de sua mão, ela vira tudo. Esperava acabar com as manhãs ruins, notas baixas, e decepções. Que não precisasse acordar no seu corpo e viver sua vida. Que o sono eterno evitasse todos os problemas.
A sonolência vinha como fortes ondas do mar, levando junto com elas todos seus pensamentos. Fechou os olhos, sentindo uma paz que nunca antes havia experienciado. Porém, isso não durou muito. Sua cabeça ficava cada vez mais pesada, e havia luz de diversas cores lhe incomodando. Não teve outra escolha a não ser abrir os olhos. A sua frente, algo como um buraco era a fonte das cores. O buraco era grande o suficiente para ela pular, porém não era possível ver seu fundo. Raios roxos, brancos e pretos saiam de lá, indo até escuridão que se estendia ao redor dela. Não entendia o que era aquilo. A porta do inferno? Do céu? Nenhuma opção fazia sentido. Foi quando ouviu uma voz profunda chamar seu nome. “Fudeu”
- Eu sei que você pode me ouvir, Elis. Nem adianta se fingir de surda - A voz anunciou considerando o silêncio dela.
- EU NÃO SEI COMO EU VIM PARAR AQUI! NÃO ME MATA POR FAVOR - Gritou. Que droga. Será que aquela taróloga do TikTok estava certa? Na próxima vida ela vai garantir nunca questionar os jovens místicos.
- Por que eu te mataria Elis? Eu te trouxe aqui exatamente para evitar isso - A voz proclamou. Isso não ajudou os nervos da menina, que continuava desesperada. - Peço desculpas por não ter intervido antes. Mas espero que essa oportunidade compense.
- Calma. Que oportunidade?
- Você deseja ser outra pessoa, certo? Viver outra vida, ter experiências diferentes. É exatamente isso que eu te ofereço.
- Como assim? Quem é você? Eu tô morta? Eu posso escolher quem ser? Porque eu ia adorar ser filha da Kylie Jenner. Só comentando.
- Já está decidido, Elis. Aproveite.
- Calma, eu precis-
Alguém (ou algo) a empurrou para dentro do buraco. Escuridão. Silêncio.
E então ela acorda. Sua pele brilhava de suor, sua cabeça parecia pesar uma tonelada e a garganta seca. Que sonho foi esse? Já não bastasse sua vida, mas agora até seus sonhos eram bizarros. Enquanto se acomodava na cama, ela percebe o quanto os lençois estão macios. Estranho. E mais claros também…
Espera. Não é sua cama. Nem seu quarto. Será que no seu coma seus pais se mudaram? Levantou-se para olhar a janela. Vizinhança muito bonita, pelo visto. E uma menina muito bonita também. Mas no reflexo da minha janela?
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COMO ASSIM?
Essa não era ela. Não teria como ser, nem com mil plásticas. Mas então quem é? E como diabos foi parar no corpo dela? Meu. Deus. Isso deveria ser um surto. Definitivamente. No caminho até a escrivaninha cor-de-rosa, para procurar seu celular, ela deixa o relógio da cabeceira cair. Merda
- Summer? Tá tudo bem? - Uma voz feminina chama.
Summer? Droga. Aquela voz me paga mesmo.
- Tenta manter a calma mesmo com o coração acelerado. Relaxa, Elis. Isso tudo deve ser um sonho. Um surto, talvez. Será que o remédio estava na validade?. Enquanto a menina hiperventilava em frente ao espelho, passos podiam ser ouvidos subindo a escada. Alguém bate na porta.
- Hum, oi? Quem é? - Ela perguntou, insegura e com uma voz nada convincente. De repente a porta abre, e ela vê uma mulher alta, de cabelos escuros e olhos gentis. Muito bonita, e parecia não ter percebido o nervosismo da garota.
- Sua mãe, Summer. Quem mais seria? Chega de graça e sai do quarto, se não você vai acabar se atrasando pra aula. O café já tá na mesa. - A mulher disse, encostada no batente da porta. Olhava de forma curiosa para a menina, mas deu de ombros e desceu as escadas.
Droga. Ok, tentativa de suícidio que levou ela pro corpo de uma tal de Summer. Summer? Esse nome lhe lembra algo… Summer, Summer, Summer?
Ah. A fanfic. O pensamento fez ela entrar em uma crise de riso histérica. Não podia ser. Era impossível. Mas ir parar no corpo de outra pessoa também é impossível, né? Nada disso faz sentido. Seria melhor voltar pra cama para se acalmar?
- Elis, não desperdiça essa chance. Eu tô confiando em você - Aquela Voz de novo. Que estranho isso tudo era. Uma voz conversando com Elis que na verdade não era ela mas Elis no corpo de Summer. Parece o roteiro de uma fanfic escrita por uma idiota fracassada.
- O que você espera que eu faça? Não entre em surto? Eu tô no corpo da protagonista estúpida de uma fanfic que eu nem terminei de escrever, cara. Me dá um desconto! - Quando anunciou isso em voz alta, percebeu o absurdo que estava acontecendo. Muito bom, Elis. Esplêndido!
- Olha aqui, mocinha. Eu já fiz muito te dando essa oportunidade. Nem era obrigação minha. A única coisa que você tem que fazer é aproveitar e consertar alguns problemas por aqui. Nada demais
- Opa. Calma aí. Você não me avisou nada de problemas - Disse, com uma expressão desconfiada para o nada. Ela certamente estava louca.
- Ah, nada demais. Lembra do roteiro que você escreveu? Seu único trabalho vai ser resolver os conflitos. Muito simples - Elis se sentiu tentada a dar um tapa no próprio rosto para tentar acordar desse pesadelo.
- Talvez você não saiba, mas eu consigo ser a pessoa mais vergonhosa em qualquer lugar que eu vou. Os incidentes no refeitório e no pátio da escola provam isso - Se arrepiou lembrando daqueles momentos do 6° ano. Péssimas memórias.
- Elis, você tem minha benção. Só resolve o relacionamento dos riquinhos, e eu te mando de volta, com uma nova chance para ter um futuro diferente. Você tem um potencial enorme, só precisa fazer uso dele.
Bem, Elis percebeu que realmente não tinha muito escolha. E a vida de Summer com certeza era mais interessante que a dela (e menos dolorosa, também). Não faria um mal tão grande tentar, certo? Ela quem escreveu essa história, não seria difícil acompanhar o roteiro. Com as sobrancelhas franzidas, ela decidiu dar uma chance para essa loucura.
- Mas eu não terminei a história. Vai afetar em algo? - Perguntou, preocupada com possíveis imprevistos.
- Não se preocupe com isso! Só faça exatamente o que a Summer faria. Não vai ser uma tarefa complicada, considerando que você idealizou ela. Só se mantém no personagem e não conta para ninguém sobre suas… circustâncias. Ninguém vai acreditar mesmo.
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