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História She's Got Me Daydreaming - Heartless


Escrita por: bertoloto

Capítulo 29 - Heartless


Pov-Cosima

Quando pequena, durante o outono, próximo à noite de Halloween, eu costumava acampar com meus vizinhos no bosque, ao final de nossa rua. Naquela época tudo era possível e aceito. Podíamos brincar o dia inteiro, não havia horário para dormir ou hora para tomar banho. Podíamos aproveitar o quanto quiséssemos desde que nossas lições de casa fossem feitas antes de qualquer outra coisa.

Meus vizinhos e eu formávamos uma gangue de crianças destemidamente mafiosas em nome da diversão, e éramos em quatro: Dustin, Tyler, Bran e eu.

Sim, eu era a única menina.

Aos sete anos, já havia casado umas cinco vezes, considerando que os casamentos ilusórios durassem até o final do dia. Eu era sempre a noiva, mas nunca trajava vestido branco, o que me agradava era minha bermuda até o joelho, minha camiseta das “Tartarugas Ninjas” e aquele boné rosa de aba torta.

Ser criança era tão bom que mal víamos o tempo passar, tudo parecia ser eterno, feito estar apaixonado. Mas a realidade é um tanto mais amarga do que acontece em contos de fadas ou em canções de ninar.

Lembro de uma certa vez em que acampei com a minha turma, eu não havia pedido permissão à minha mãe, mas ela sabia onde me encontrar, caso precisasse. Os meninos armaram as tendas perto do pequeno riacho estagnado, e eles dormiam juntos em uma só barraca para deixar a outra somente para mim.

Benefícios de ser a única garota do grupo.

Dustin, o chefe do bando, chamou todo mundo para contarmos contos de terror em volta da fogueira que ele mesmo havia ascendido, e sem ajuda. Meu amigo tinha os cabelos tão vermelhos quando o fogo que estourava, seus dentes eram tortinhos e sua face era coberta de sardas. Dustin não era somente o “Chefe do bando”, ele também era conhecido por ser travesso demais, e por contar muitas mentiras quando necessário.

“Era uma vez...” Levou a lanterna à sua face pintada, “Um rapaz trabalhador. Ele trabalhava pelas manhãs e não descansava até o anoitecer, mas a maior de suas tarefas era amar sua mulher, uma moça de cabelos secos, olhos claros e sorriso escuro. Ela não o amava, mas ele não sabia ou desconfiava seus sentimentos. Todos na cidade admiravam o amor do rapaz, mesmo o achando estúpido por amar sozinho. ” Ouvíamos a narrativa com olhos atentos e ouvidos abertos.

“Em uma noite quase tão negra quanto o manto da morte, o rapaz aguardava o retorno de sua mulher, ele a esperou até a noite virar madrugada, mas enquanto o tempo passava, nenhuma notícia era notada. Então, ele decidiu procura-la pelas ruas; andava apressado, mas olhava em todas direções cautelosamente como quem teme perder algum detalhe.”

“Falta muito? Tô achando chato!” Tyler pronunciou seu tédio honestamente. Ele era o mais novo de nossa turma, e também o mais impaciente, porém naquele tempo, o chamávamos de “estraga prazer”, era o que cabia em nosso vocabulário.

“Cala boca e me deixa terminar!” Dustin jogou mais lenha na fogueira.

“Cuidado! Minha mãe disse que não podemos mexer com fogo.” Bran avisou.

“Por quê?” Questionei confusa.

“Porque fazemos xixi na cama quando mexemos com fogo.” Meu amigo era filho único assim como eu, a diferença é que meu pai foi embora, e no caso de Bran, sua mãe foi quem o deixou pra trás. Ele morava com os avós e o pai, nossas casas encaravam uma à outra, igual nossos pais faziam às sextas-feiras.

“Isso é besteira, eu nunca faço xixi na cama.” Dustin afirmou e limpou a garganta com sua saliva depois, “Continuando...O rapaz encontrou sua mulher em uma velha valeta vazia, e a moça sangrava e se contorcia em agonia. O jovem ficou desesperado, ele gritava por ajuda, mas ninguém o ouvia, ou melhor, ninguém queria o ouvir. Em meio à escuridão da madrugada e ao balançar das árvores...uma bruxa apareceu. Ela tinha o sorriso amarelo e os dentes pontudos feito de tubarão. Seus olhos eram, um branco, e o outro vermelho. Ela ofereceu ajuda ao moço, mas como nada neste mundo é de caridade puramente voluntária, ela deu uma condição: O rapaz venderia sua alma para salvar a amada, porém, se um dia ela viesse a trai-lo, o jovem seria condenado a viver para sempre na solidão. ” O vento do outono era quase tão gelado quanto o sentimento que o conto causava em mim.

“Vendo sua doce amada em tamanho sofrimento, o rapaz pensou três vezes antes de aceitar o horroroso acordo. A bruxa selou o trato com um beijo abstrato. E então a moça melhorou, sobreviveu, estava mais vida do que nunca, e antes de uma semana ter passado, a jovem já distribuía seu corpo aos boêmios da noite. Consequentemente, feito bancário ambicioso, a Bruxa retornou para tirar do jovem rapaz traído, tudo aquilo que, ainda, o restava: a esperança de ser amado. Ele perdeu tudo por conta de uma mulher sem coração, e então sem sua alma, sem amor ou benevolência, ele jurou vingança à meia-noite, matou todos os amantes infiéis da pequena cidade em que morava, assassinou as costureiras, os bêbados, policiais e até mesmo o Xerife. Liquidou o dono na mercearia, a dona da barraca de frutas, o padre e, também, as freiras da igreja matriz. O jovem rapaz, virou o jovem assassino, não permitiu que nenhuma vítima sobrevivesse para trair novamente. E ainda não satisfeito, ele continua vagando na escuridão, procurando por mais amantes que não sabem amar.” Dustin desligou a lanterna e sorriu contente.

“É só isso?” Tyler questionou desapontado.

“Sim...” Acenou com a cabeça, “O Fim” disse gesticulando as mãos lentamente.

“E isso aconteceu de verdade?” Perguntei interessada e levemente amedrontada.

“Todas minhas histórias são verdadeiras, vocês já deviam saber.” Clarificou ainda manifestando um sorriso egocêntrico.

Bom, após contarmos mais contos de terror, fomos dormir ao som de corujas caçando. Pela manhã fria que fazia, acordei mais cedo, saí de minha barraca, e, de longe, avistei Dustin carregando seu colchão ensopado em urina, em direção à sua casa.

E é como dizem por aí...

“A mentira só dura quando a verdade chega ”

“Quem ama demais, ama sozinho. ”

“Criança que mexe com fogo, faz xixi na cama.”

**************************************************************************************

Viver com Delphine em seu ápice de tristeza, foi sufocante. Eu não fazia a mínima ideia de como ajudar, mas eu queria estar lá. Queria poder demonstrar o quanto eu a amava, e o quanto ela era importante, mesmo se achando tão insignificante.

Amar sozinha nunca foi tão desgastante.

Ela era tão fria, tão vazia, morta. Não trocávamos palavras, mesmo com minhas falhas tentativas, no final eu era ignorada.

Houve uma noite em particular que jamais entenderei. Delphine acordou sem que eu percebesse, buscou por água sanitária e começou a lavar o chão de madeira de nosso apartamento. Com barulhos desastrosos e gemidos raivosos, ela me acordou. Quando cheguei à sala, observei minha mulher completamente fora de si, ela vestia uma camiseta exageradamente maior que seu corpo, e eu adorava aquela camiseta em seu corpo. Entretanto, Delphine estava agachada em seus joelhos, esfregando, com um pano manchado, o chão , que não aparentava sujo.

“O quê está fazendo? São três horas da manhã!” Indaguei, e obviamente fui desatendida.

Dr. Cormier trajava luvas de plástico verdes, meias encardidas e expressão angustiante.

“Delphine, fala comigo!” Insisti após ser desprezada algumas outras vezes.

“Frutas...” Ela gemeu, “Frutas podres! Não sente o cheiro?”

“Não, não sinto, mas eu posso te ajudar a limpar.” Me neguei a acreditar que, talvez, minha namorada estivesse perdendo a cabeça, então eu contribuía com sua loucura sempre que possível.

Busquei no armário da lavanderia, panos, rodo, balde e alvejante perfumado. Enquanto a Francesa limpava a sala, eu lavei a cozinha, quarto e varanda. Terminei a faxina ao crepúsculo do dia e de meu cansaço. Minhas costas doíam, meus dedos ardiam e Delphine ainda esfregava o chão da sala. Seus joelhos estavam avermelhados, as olheiras em seus olhos pareciam buracos negros fora da galáxia. Quando decidiu levantar, em pisadas fortes, foi até a geladeira, bruscamente lançou toda nossa comida para fora, esvaziou os armários e gavetas, e jogou no lixo tudo o que era alimentício.

Fiquei imóvel, apenas observei a bagunça que sua limpeza exigia.

Delphine se tornou tão insensível e insensata, inacessível com atitudes macabras. Ela não comia ou ria, em sua dieta, ela apenas bebia. Whisky, vinho, gin e rum, foram tantas as garrafas ora vazias ora pela metade, que encontrei. Na boca delas havia a marca do batom vermelho de Dra. Cormier, ou do que sobrou da pessoa que um dia ela foi.

Assistir a mulher que tanto amei se desfazendo em pedaços tão pequenos, foi a coisa mais difícil que já aconteceu comigo. Eu a ouvia reclamar das malditas frutas podres quando tudo em casa estava vazio, não havia mais comida, bebida, nada! Mesmo assim, ela continuava a falar sobre o supostamente cheiro insuportável que nosso apartamento tinha. Enquanto ela se destruía, eu, cada vez mais, me sentia sozinha. Durante o expediente no laboratório, ela não me enxergava, não me notava. À noite em casa, bom, era como morar por conta própria. Delphine não jantava, mas eu comida à mesa, sem companhia e com meu coração ao chão. Na cama, ela virava para um lado, e eu encarava a brancura da parede quase tão solitária quanto eu.

Em minha cabeça, com muita cautela, eu analisava e revisava cada uma de minhas ações, me perguntava onde havia errado para ser excluída, esquecida, para me tornar um empecilho na vida de alguém que, um dia, me jurou amor eterno.

Promessas e juras, não as mencione se não for capaz de cumpri-las até o fim.

Eu ouvia muita música naquele tempo, dançava junto a minha sombra, acariciava minha própria bochecha, me tocava e ao mesmo tempo, lembrava do quão doce era meu relacionamento com Delphine.

Eu odiava ama-la, mas amava tê-la por perto, mesmo sentindo como se houvesse um gigantesco oceano entre nós.

Foram muitas as vezes que Dr. Cormier assumiu sua melhor pose sem coração, ela desaparecia à noite, não avisava ou informava ninguém sobre seu paradeiro. Sorte a minha conhece-la tão bem, pois eu sabia exatamente onde ela convocava seus espíritos malignos. Delphine passava seu tempo enchendo a cara em seu antigo apartamento, o qual tornou-se sua casa novamente.

Juro que tentei traze-la de volta pra mim, de volta para meus braços exaustos de tanto falhar inocentemente.

Certa noite, finalmente, aceitei o convite de meus amigos para irmos ao um bar qualquer no centro da cidade. Durante minha suplica em vão, mal pude notar a aproximação amorosa entre Scott e Mud. O Nerd se apaixonou, e, diferente de mim, estava em um relacionamento saudável e feliz. A estagiaria também apresentou um de seus colegas a Felix, o Colin. Juntos, Fe e o misterioso rapaz formavam o mais novo casal com prazo de validade, já que uma hora, meu ex-colega de quarto teria que voltar para Rhode Island.

The Tavern tinha um ambiente amistoso, as luzes baixas, porém coloridas, escondiam a faces famintas por diversão. Uma banda local tocava músicas estrangeiras, o pessoal conversava, pessoas dançavam, eu dava goles em minha cerveja e minha cabeça projetava Delphine e seu paradeiro previsivelmente imprevisível.

Um garçom se aproximou de nossa mesa lentamente pousando uma bebida em minha frente.

“Desculpa, mas eu não pedi nada.” Expliquei confusa enquanto meus amigos olhavam-me boquiabertos.

“Aquela moça no balcão pagou para você.” Disse o rapaz apontando em direção à uma mulher que sorria maliciosamente, “Ela te deu isso.” Com sua outra mão, me entregou um guardanapo, o qual Felix logo foi roubando de mim.

“Hum...Clara e seu número de telefone.” Fe vocalizou de maneira pervertida.

“Aí sim, Cos!” Scott ergueu sua mão para tocar na minha.

“Saí daqui vocês, não estou interessada nessa Clara e seu número de telefone.” Tomei um longo gole de cerveja torcendo para o assunto acabar ali.

“Por que você não se joga? Ela é bonita e parece ser bacana.” Colin questionou criando intimidade.

“Eu namoro.” Afirmei em tom duvidoso.

“E sua namorada sabe disso?” Felix, às vezes, não tinha limites. Sua falta de sutileza machucava sem intenção.

“É complicado demais.” Abaixei a cabeça em infeliz entendimento.

Houve um breve silêncio após tamanho embaraço.

“Finalmente!” Todos, em coro alegre, disseram.

“Desculpa a demora, galera.” Levantei meu olhar para analisar a mulher que havia chegado. Alta, magra, de cabelos negros e olhos verdes claros feito alga hidratada. Ela cumprimentou o pessoal um por um, na minha vez, a moça penetrou sua íris em minha retina, que derretia sem o menor intuito.

“Cos, esta é minha amiga, Robyn.” Mud clarificou.

“Hey!” Sorri polidamente.

Robyn sentou na banqueta ao meu lado, roubou a bebida de Colin e observou o guardanapo com o telefone da moça interessada.

“Quem é Clara?” Perguntou.

“Uma sapatão que pagou esse drink pra Cosima.” Fe explicou entregando o copo à ela.

“Nossa, que delícia! Amo Martini de maçã.” Eu não queria, mas foi impossível não assistir seus lábios carnudos e rosados degustando aquele liquido aromático.

Permaneci em transe durante alguns segundos, então decidi que precisava ficar bem, mas bem louca para sobreviver àquela noite estranha. Solicitei mais cerveja, engoli cada uma das quatro garrafas. Os casais dançavam freneticamente na pista de dança enquanto meus glúteos não abandonavam o assento, apenas meus pés seguiam a melodia da música.

Estudei meus arredores, notei como todos ali estavam satisfeitos e sorridentes. Havia um rapaz abraçando sua namorada perto da porta, duas amigas saltitando sincronicamente, um grupo de adolescentes bebendo e requebrando como se não houvesse amanhã, provavelmente usaram identidades falsas para estarem ali. De qualquer forma, aquela atmosfera era feliz, mesmo sendo recreativamente entorpecida, era feliz.

Fazia calor, mas dentro de mim, o frio congelava meus órgãos. Eu não queria estar sentada no meio da multidão, não queria ser notada ou desejada por ninguém além de Delphine. Eu queria estar com ela, dividindo seus segredos, ouvindo seus problemas, acariciando seu cabelo perfeito, beijando seus finos lábios, admirando as profundas e delicadas covinhas de seu rosto. Gostaria de entender os motivos que a fazem vulnerável, brincar com seus dedos, passear em sua perturbada excursão. O único lugar onde eu precisava e queria estar, minha estádia era indesejada e desconvidada.

A vida é, realmente, uma grande bosta.

Nem percebi as lágrimas me invadindo ao final de meu último gole. Corri até o banheiro passando por meus dançantes amigos. Abri a porta em desespero e agradeci silenciosamente por não haver ninguém ali. Apoiei meu peso sobre os braços, olhei para o espelho e enxerguei o quanto ser rejeitada vem decompondo minha alma. Sei que às vezes posso ser um pouco impulsiva, um tanto confusa, porém, sou uma boa pessoa, e ser uma boa pessoa, às vezes, cansa demais.

Cerrei meus olhos, respirei fundo, captei o som dos papeis sendo retirados do suporte.

“Aqui está!” Era Robyn ao meu lado me entregando as folhas.

Aspirei, e aceitei seu auxílio.

“Valeu.” Sequei meu entristecido rosto.

A linda mulher já estava à porta quando virou para me encarar.

“No geral, com qual frequência você chora?” Questionou.

De onde ela tirou tanta intimidade, eu não fazia ideia.

“Oi?” Fingi a boa e velha demência.

“Tipo, você é de chorar muito?” Insistiu.

“Não, é bem raro.” Respondi honestamente.

“E com qual frequência você anda chorando?” Soou interessada e preocupada ao mesmo tempo.

Mentir ou dizer a verdade?

O quê tenho a perder? Nem a conheço direito.

“Hum, todos os dias, quer dizer, alguns dias ai.” Mentir contando a verdade, eu estava ficando boa nisso.

“Olha...”Aproximou-se minimamente, “E o quê ou quem é a razão pra tanta tristeza, vale a pena?”

Nem precisava ter parado para pensar, entretanto, foi inevitável.

“Sim.” Respondi.

“Mas ultimamente, esse motivo ou essa pessoa ainda vale a pena?” Eu mal a conhecia, não tinha que responder suas perguntas.

“Você está dizendo que devo desistir?” Entretanto, eu queria responder e entender o objetivo daquela conversa de banheiro.

“Não estou falando para você fazer nada, só estou fazendo pra você o que eu gostaria que tivessem feito pra mim.” Explicou.

“E o quê seria isso?” Indaguei mirando em seus olhos incrivelmente verdes.

“Não há o porquê lutar ou insistir quando a guerra acaba.” Buscou pela maçaneta, investigou-me mais uma vez, “Valorize-se moça.”

Robyn A Pensadora ia sumindo ao poucos.

“Espera!!!” Gritei em desespero nítido e completamente desnecessário.

“Diga!” Adentrou o banheiro com metade de seu corpo para fora.

“Obrigada!” Agradeci sorrindo.

“Magina!” Respondeu satisfeita.

“Não sei se você entendeu meu nome, Cosima é um tanto estranho, diferente.” Minhas mãos mexiam mais do que meus lábios.

“Ah! Pode confiar, entendi seu nome e não o esquecerei tão rápido.” Piscou seu olho esquerdo e partiu.

O que havia acabado de acontecer?

Santa merda, santa merda.

Eu mereço o prêmio “Otária do ano”.

Nada naquele bar instigou minha permanência, aliás, meus pés doíam, eu queria fumar um bom e belo baseado, já havia passado minha hora. Então sem me despedir de meus amigos, decidi voltar pra casa.

Estacionei o carro, subi no elevador, caminhei pelo escuro corredor, passei a chave na porta e a abri.

Sabe quando você pressente algo, mas não sabe o quê é, exatamente?

Bom, digamos que eu poderia descolar um freela como cartomante.

O apartamento ainda cheirava à uma mistura de alvejante perfumado e água sanitária, mas havia uma essência a mais...

“Então é isso?” Meus olhos não acreditavam no que viam.

“Só vim buscar o resto de minhas coisas.” Delphine segurava meu porta-retrato preferido.

“Delphine, você não precisa lutar sozinha.” Meus pés caminhavam até ela sem que eu pudesse os impedir.

“Cosima...” Suspirou com dificuldade, “Às vezes, a coisa mais difícil e a certa são as mesmas.” Nossa distância, ali, era insignificante, eu estava prestes a senti-la em meus ossos novamente.

Seu perfume ainda era o mesmo.

E eu ainda a amava da mesma forma incorrigível.

“O quê você quer dizer com isso?” Estava escrito naqueles pequenos olhos, nosso grande final trágico.

Delphine buscou por minha face com suas mãos macias, tateou minha pele, passeou com seus longos polegares por meus lábios. Se me ainda me amava, por que estava me deixando ir?

Beijou-me rapidamente, porém a intensidade do gesto era forte e tradicionalmente arrebatadora. Meus olhos ainda estavam cerrados, eu não queria que aquele momento acabasse, eu não queria assistir o amor de minha vida me abandonar como ela pretendia.

Porém, entretanto, todavia...

O vácuo deixado por sua partida coagulou meu sangue feito morte acidentalmente encomendada.

Franzi a testa, segurei as lágrimas de maneira falha.

Delphine estava à porta, então virei para encara-la uma última vez...

“Eu te amo.” Não tinha o porquê, mas insisti.

Dra. Cormier não disse nada, não manifestou arrependimento ou contentamento, ela apenas evaporou feito chuva de verão ao cair em asfalto quente.

Como pode alguém ser tão cruel? Tão sem coração?

Não era por falta de amor, era por excesso de dor.

Ela me libertou da prisão a qual eu pertencia e adorava. Não me sentia coagida, presa. Em minha cela, eu pagava o preço de meus pecados inexistentes, mas lá eu ainda tinha Delphine pra mim, compartilhávamos do mesmo crime, da mesma culpa, porém, ela foi absolvida enquanto eu fui sentenciada ao corredor da morte de nosso amor.

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Hoje o dia amanheceu dormente, o cheiro de preguiça invadiu o ar, e havia travesseiros demais em minha cama.

Meu plano era não levantar, fumar baseados até o novo dia acabar. Quem sabe até assistir algum filme, comer pipoca doce, beber um energético. A vida passa devagar debaixo das cobertas.

“Piranha?” Merda!

Talvez, se eu não responder, Felix vá embora.

“Cosima, sua cretina, eu sei que está aqui!” Ouvi sua voz se aproximando, “Tô entrando, por favor, não esteja se masturbando.

Eu odeio o Felix.

“Ufa!” Declarou ao adentrar meu quarto.

“O quê você quer?” Questionei cobrindo meu rosto com uma almofada cheirando a perfume Francês.

“Vim te tirar da bad, miga.” Explicou deitando em minha cama, “Vai tomar um banho, temos planos pra hoje.”

“Não tô afim.” Informei de maneira convincente.

“Cosima.” Chamou por mim.

“Hum?” Resmunguei.

“Cosima?” Insistiu, “Cosima, tira essa merda da cara.” Lançou minha almofada para fora da janela.

“Porra, Felix!” Senti meu sangue ferver, “Pra quê isso?”

“Olha, eu entendo você estar assim, mas cara, já deu de ficar escondendo seus sentimentos, bota pra fora!” Eram dez horas da manhã e seus olhos já estavam fortemente maquiados.

“Ela terminou comigo, tá? Quer saber mais alguma coisa?” Questionei irritada.

“Quando foi isso?” Senti sua preocupação, mas ela de nada me servia.

“Quando voltei do bar na quinta.” Respondi apática.

“E como foi?” Eu estava sendo entrevistada pelo repórter mais persistente do mundo.

“Ah! Foi maravilhoso!” Rolei meus olhos, “Foi péssimo, né?” Quando furiosa, meu sarcasmo aflorava.

Houve um leve embaraço no ar, mas ele foi diluído pelas condolências de meu amigo.

“Eu sinto muito por tudo o quê você passou, mas eu quero que você entenda as razões de Delphine, ela está com depressão, não quer você agora, porém é nítido que ela ainda te ama.” Nada fazia sentido, e eu já estava cansada de dar socos em ponta de faca.

“Quem ama não abandona.” Afirmei.

“Às vezes, deixar alguém ir pode ser a maior prova de amor.” Felix nunca foi romântico, e eu estava odiando essa nova versão 2.0.

“Tá assistindo muito filme, já pode parar.” Provoquei.

“Não, é sério! Delphine quer se destruir sozinha, ela está perdida, então deixa ela se encontrar. Você sabe que uma hora ou outra, vocês duas vão voltar.” Informou confiante.

“Tá com uma bola de cristal escondida no cu?” Socorro, meus demônios estavam à solta.

“Olha só...grosseria em forma de piada.” Sorriu, “Não tenho bola de cristal, mas sei que vocês vão voltar, pois isso é inevitável. Um amor desses acontece uma vez na vida, e ele nunca vai embora, mesmo quando ambas as partes não o querem mais, esse tipo de amor é uma bela maldição.” Pegou em minha mão, mirou em meus olhos aguardando por alguma resposta.

“Cê tá apaixonado, né?” Assumi o óbvio.

“Miga, eu tô é derretido pelo Colin. Você já reparou naquele furinho que ele tem no queixo? E aqueles olhinhos pequenos? Sem contar que sempre senti tesão por caras com estilinho meio nerd.” Seus dentes brancos enalteciam a felicidade que estampava em sua face.

“Então você sente tesão pelo Scott?” Provoquei novamente.

“Scott é um baby, é a mesma coisa que pegar um irmão.” Clarificou.

“Hey, se os Lannisters podem, por que não vocês?” Irritar Felix era uma de minhas coisas preferidas.

“Credo, Cosima!” Levou a mão à boca, “Enfim, você ainda não me falou como foi quando a Alison te contou sobre a gravidez.”

“Ah! Foi normal, sei lá, ela estava mais apreensiva do que eu, pareceu que estava com medo de me deixar brava porque eu perdi um bebê e ela ganhou um.” Só de lembrar daquele momento, me consumo de inveja involuntária.

“Mas o quê você sentiu na hora?” Eu já não aguentava mais responder tantas perguntas.

“Cara, honestamente, eu não quero falar sobre isso, só saiba que estamos bem, eu e a Alison. Tá tudo bem, tudo tranquilo, tá tudo lindo.” E eu achando que estava ficando boa em mentir.

“Você tá tão grossa, tá parecendo a piroca do meu ex.” Cerrei os olhos, respirei fundo, balancei a cabeça em negação, Felix não podia ser tão sem escrúpulo assim.

“Você não existe, cara.” Desabafei.

“E você não existe sem mim.” Pulou de minha cama, rebolou os quadris até o closet, separou minhas roupas, “Pronto, agora só falta você tomar banho.”

“Pra quê?” Indaguei confusa e exausta.

“O Colin vai dar um brunch no apê dele.” Explicou.

“E eu com isso?” Busquei pela ponta de meu baseado no cinzeiro ao meu lado.

“E você vai junto! Se for tomar banho nesse exato momento, prometo bolar outro para fumarmos no caminho, fechado?” Concluiu analisando-me tragar a densa fumaça.

“Só vou pela maconha e pela larica.” Declarei por fim.

Chapada e menos sonolenta, deixei que a morna água levasse toda minha preguiça embora. Passei shampoo em meus dreads, caprichei no sabonete líquido pelo meu corpo, bati a Gillette no box após me depilar, e então assumi minha pose de recém-solteira. Se era para ser assim, eu deixaria a vida me levar.

Aprontei-me rapidamente, passei aquele perfuminho de lei, maquiagem tradicional e coloquei o peito pra jogo.

“Caralho, fazia tempo que eu não te via assim.” Felix, com a boca aberta, vocalizou.

“Pois é, fazia tempo que eu não me sentia assim.” Sorri evidenciando a brisa do cannabis.

“A Robyn vai dar match.” Anunciou levantando as grossas sobrancelhas.

“Eu sabia que tinha dedo seu nessa história!” Senti-me super inteligente pela óbvia revelação.

“Dedo meu? Eu nem a conhecia quando ela pediu seu número pro Scott, a única coisa que fiz foi te chamar pro bar.” Defendeu sua falsa inocência.

“Pera!” Tudo passou a fazer sentido, “Eu vou matar o Scott.”

De repente, alguém abriu a porta da frente, Fe e eu fomos checar.

“Vão me matar por quê?” Falando no diabo.

“Como vocês entram na minha casa sem chave?” Perguntei indignada.

“Só abrimos a porta, você nunca tranca.” O Nerd tinha razão, eu nunca trancava a porta, “E por que você quer me matar?”

“Bom, primeiro porque você passou meu número pra amiga da Mud, segundo porque você não me falou que essa amiga era a Robyn, e terceiro, porém não menos importante, por que caralhos você não me disse que estava namorando?” Admito que de todos os motivos, o terceiro era o qual mais me fazia querer matar aquele Nerd.

“Tenho argumentos para me defender, mas estamos atrasados, tá todo mundo no Colin já.” Da mesma forma com a qual Scott era bom em criar problemas, ele era bom em fugir deles, eu deveria pedir umas aulinhas.

Durante os vinte minutos que passamos no carro, fumamos o baseado até a ponta, ao chegarmos ao nosso destino final, já estávamos muito, muito chapados.

“Não acredito que vocês não guardaram nada pra mim?” Mud soou realmente decepcionada.

“Calma, amor, certeza que a Cos tem mais.” Ouvir meu vizinho chamando alguém além de Denise, sua gata, de amor, foi extremamente estranho.

“Se ela não tiver, eu tenho aqui.” O timbre daquela voz arrepiou os cabelos em minha nuca.

“Robyn, hey!” Cosima, não fode!

“Olá!” Sorriu fatalmente, pegou em minha cintura e beijou minha bochecha, “Tudo certinho?” Nunca haviam penetrado meus olhos de maneira tão próxima como ela fez.

Senti minha pele esquentando, as minhas bochechas estavam ganhando cor.

Boa, Cosima, tá fazendo certinho, tá de parabéns!

LIXO HUMANO.

“Tudo tranquilinho e você?” Desisto de mim mesma.

“Vai soar cliché, mas estou melhor agora.” Soou tudo, menos cliché.

Colin serviu a comida e Mud a bebida, Felix cuidou da música, Scott tentava bolar outro baseado para a namorada, Robyn não parava de me provocar discretamente e eu não evitava tremendo charme. Após comermos, brincamos de mimica. Nos separamos em três duplas, nem preciso falar quem era minha parceira, certo? Então pouparemos nosso tempo...

Cada jogador tinha que fazer a mimica de um certo filme, quem adivinhasse o nome ganhava um ponto. Meus amigos tinham péssimo gosto para filmes, Felix só sabia os LGBT da Netflix, Scott fez toda saga do “Star Wars” em cada uma de suas jogadas, Mud pareceu não conhecer nenhum filme que não fosse da Disney, Colin adorou imitar os sucessos de Tarantino, mas Robyn e eu? Cara, nós tínhamos exatamente o mesmo gosto. Fizemos “Madrugada dos Mortos”, “Clube da Luta”, “As Branquelas”, e até mesmo “Mamma Mia.” E sem o menor esforço, ganhamos a brincadeira.

Após o jogo, os casais decidiram ocupar seu tempo em sessões privadas. Minha dupla e eu acabamos ficando sozinhas na sala.

“Bom, foi legal, mas eu tenho que ir.” Robyn levantou apressadamente.

Merda!

“Ah, você já vai?” Tentei não soar desapontada, mas a falta de vergonha na cara foi maior.

“Sim, tenho uma coisa muito importante pra fazer.” Declarou.

“Um encontro?” Não há como descrever o quão escrota minha risada foi, eu era a personificação do nervosismo.

“Ainda não, mas logo logo será.” Ela sorriu e eu quis dar na cara dela.

“Boa sorte, então.” Estendi minha mão.

“Obrigada.” Mas Robyn queria um abraço.

Ela era um pouco mais alta que eu, porém sua cabeça encaixou perfeitamente entre meu ombro e pescoço.

E que abraço delicioso.

Fazia tanto tempo que não me seguravam daquela forma, eu até havia me esquecido do quão bom era aquilo.

“Até já, Cosima.” Piscou, novamente, seu olho esquerdo e seguiu rumo à sua “coisa importante”.

“Talvez, seja melhor assim.” Pensei sozinha.

Era cedo demais para beber de sua água, quer dizer, para beber de qualquer água. Mesmo sendo solteira e rejeitada, eu não deveria sair distribuindo meu corpo por aí.

“Vou me segurar.” Prometi em voz alta, “Dessa vez, é sério.”

Hum, doce ilusão.

Entediada e sem nada de melhor para fazer, busquei por meu casaco e fui embora daquele apartamento cheirando a látex .

Ao descer do elevador, caminhei até a porta, saí do prédio e segui meus instintos.

“Finalmente, estava demorando.” Reconheci a voz, então virei para encarar a dona dela.

“Pensei que você tivesse que ir embora, tivesse uma coisa importante pra fazer.” Robyn e seu pé estavam apoiados na parede, ela fumava um cigarro sabor cereja.

“Pois bem.” Lançou a bituca ao chão, “Preciso te mostrar o que tem de melhor em Toronto.”

Quanto mais perto ela chegava, mais meu corpo tentava me avisar que aquilo era uma puta de uma cilada.

“Cara, você nunca sai do seu apartamento, desde que chegou não saiu para fazer nada” Como ela sabia disto?

“Calúnia!” Menti não somente para ela, como para mim mesma também.

“Faremos assim...” Ofereceu seu braço, “Vem comigo hoje, não quero nada além do que mostrar o que Toronto tem de melhor.”

Se eu aceitei conhecer a cidade com ela? Ah, eu aceitei sim.

Quando você passa por um trauma é difícil voltar a fazer as coisas que antes eram normais, cotidianas. Entretanto, uma hora ou outra, temos que criar força para seguir em frente.

Desconheço o que irá acontecer, e honestamente, eu não quero nem saber.

Quando você é tratado cruelmente é difícil se permitir a ser amado ou querido novamente. Feito o rapaz trabalhador do conto de terror de Dustin, vendi minha alma para tentar salvar minha amada, mas ela feito a moça da mesma estória, agiu sem coração e me abandonou. Não serei como o protagonista do conto de terror, não vagarei sozinha, não jurarei vingança à meia noite, ao invés disto, me permitirei ser feliz, tentar de novo, mesmo que no final eu acabe assassinando uma ou duas pessoas.

A arte imita a vida ou a vida imita a arte?

 

Não sei, mas descobri que tenho talento para mimicas. 



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