Aceno para o que deveria ser o meu vigésimo cliente do dia, um coroa gordinho com um enorme, porém divertido, senso crítico para os filmes de ficção científica lançados até então.
Ele para antes de chegar à faixa de pedestres, atento à mudança da cor do semáforo. Sua estatura é considerável, sugerindo que poderia ter se dado bem em alguma equipe esportiva, tipo as de vôlei ou basquete, mas os óculos de ouro reluzente e o jeito ávido para discussões científicas que apenas um bom nerd pode ter, negam qualquer envolvimento com atividades físicas.
Uma nova figura se inclui ao meu alcance visual, trazendo-me à realidade de que conheço o cara moreno que espera pacientemente pelo sinal fechar, do outro lado da rua.
Pisco várias vezes. Não era muito comum ver pessoas de dreadlocks fora da televisão, então isso só poderia significar uma coisa. O rapaz atravessa a rua e continua vindo na direção da loja em linha reta, com uma mão dentro do bolso frontal da calça jeans. Será que...
- Oi! - Nik acena com a cabeça com um ar simpático assim que pisa no estabelecimento - você é o Cebola, não é?
- É, sou eu mesmo. E você é o novato, certo? - devolvo com obviedade - Acho que se chama Nik?
Ele sorri, me oferecendo uma mão. Aperto-lhe em cumprimento após uma série de nanossegundos decidindo se deveria fazê-lo, ou somente o ignorar.
Felizmente, minha boa educação vence a questão.
- É isso mesmo. Nikolas, na verdade, mas todos me conhecem por Nik.
Assinto com um meio sorriso, tentando desmanchar a carranca que se apoderara do meu semblante sem me dar muita escolha.
- Soube que você é famoso.
Seu sorriso demonstra uma humildade que eu não esperava encontrar.
- Tenho tentado fazer algo útil com a herança que meu avô me deixou.
- No que você tem investido exatamente?
- Nos últimos tempos eu estou tentando trabalhar a interligação entre tecnologia e educação, sendo mais específico sobre os vídeo-games e como eles poderiam interferir positivamente na educação de crianças e adolescentes.
- Uau, é um mercado difícil. - eu reconheço.
- Demais. - ele concorda com pesar - As pessoas costumam ter uma visão muito fechada sobre a tecnologia. Final do século XX e ainda estamos com medo da nova geração, do que esse novo mundo de informações pode nos oferecer...
Cruzo os braços sobre o peito, notando o quão ele parece entendido do assunto, principalmente para alguém na nossa idade.
- Vejo que já sabe a área que quer seguir. - tento soar o mais gentil possível - Isso é importante.
- Sei que é, e mesmo tendo essas dificuldades, não pretendo desistir. - Nik me ergue o olhar - Eu não costumo fugir ou desistir das coisas que eu quero.
Tento a todo custo não segurar o seu olhar, mas é difícil; especialmente quando está dizendo algo tão cheio de significados. Significados que trazem à tona pela décima vez, a antipatia que comecei a cultivar por ele.
Ao ver que nossa conversa não iria muito mais à frente, resolvo ir direto ao ponto que o levara até ali:
- Você veio atrás de algum CD ou DVD específico?
Ele balança a cabeça como se tivesse esquecido daquele detalhe.
- Ah, é, você teria algum CD do Eagles por aí? Tenho ouvido muito o som daqueles caras. - o cara comenta com visível empolgação.
- Só um minuto. - eu peço, caminhando até um pouco mais a dentro do espaço, me dirigindo até a seção de músicas estrangeiras - Por sorte, temos um último sobrevivente aqui. - ergo o CD, mostrando que não havia nenhum outro além dele na fileira.
O Sidão precisaria fazer pedido em breve.
Nik se dirige ao caixa com um sorriso de orelha a orelha, analisando com curiosidade as músicas descritas na contracapa do objeto. Observo-o com o canto do olho. Ele não parece assim tão mal...
É, também não foi nada mal a pegada que ele deu na Mônica após aquele rodopio já no final da música - a outra voz irritante do meu pior lado se contrapõe, fazendo com que eu tenha vontade de gritar.
- Valeuzão - ele sorri à minha frente, fazendo com que eu pisque para voltar a prestar a atenção no mundo real - um bom dia pra você, cara. Vou nessa!
- Pra você também. - eu forço mais um sorriso, me sentindo um pouco mal por não ter aquela reação antes.
Afinal aquela era uma das minhas obrigações como vendedor, não era? Ser simpático para garantir a satisfação do cliente?
Nik mal tem sumido na esquina, e meus olhos estão circulando pelo seu próprio eixo, porque de repente uma vozinha dentro de mim dizia que era imbecil da minha parte continuar vendo-o como um rival, quando na verdade o cara parecia ser boa gente.
Mas que droga.
Mais tarde, quando chego em casa, sinto como se alguém estivesse sentado sobre os meus ombros. Todavia, estou feliz também pela maneira como havia enfrentado, e me dado melhor do que o esperado, em meu primeiro dia de trabalho.
Não era um trabalho pesado, claro, daqueles que faziam as pessoas ficaram carregando pesos durante todo o dia, ou limpando o chão a cada centímetro que andassem, mas ainda assim trazia cansaço. Lidar com o público era cansativo, porque mesmo que eu só tivesse prestado mais atenção no Nik e no coroa nerd, várias outras pessoas tinham frequentado a loja, e mesmo não lembrando exatamente o rosto de cada uma delas, tinha certeza que alguns comentários tinham me deixado bastante irritado.
- Estava no treino? - meu pai pergunta quando me dirijo às escadas.
- Não
Ele vira a cabeça um pouco para o lado, de onde está no sofá, com surpresa, me fitando com o canto do olho.
- Você está trabalhando? Onde?
Guardo um suspiro. E lá vamos nós.
- Na loja de CDs do Sidão.
- Quando começou?
- Oficialmente, hoje.
Meu pai faz uma silenciosa pausa de alguns segundos, e continuo aguardando o seu surto
- E quando pretendia me contar? - pergunta, num tom calmo que me deixa ainda mais assustado.
- Não sei - encolho os ombros, sincero - talvez mais tarde na hora do jantar.
Meu pai volta a cabeça para frente, inclinando-a levemente para baixo enquanto fita o jornal.
- Vai treinar ainda hoje?
Penso em apenas balançar a cabeça, mas aí me ocorre que isso poderia ser interpretado como uma grosseria minha, tendo em vista que ele ainda estava de costas.
Aquele homem poderia já ter feito, e continuar fazendo, muita besteira, mas ele ainda era o meu pai e algo dizia que eu lhe devia o mínimo respeito.
- Não, não vou.
Depois disso, o silêncio entre nós recai, indicando que a conversa chegara ao fim. Subo mais um degrau, ainda sentindo o peso atmosférico que se instaurara pela casa.
Olho para trás outra vez, ainda não acreditando que ele não está ao menos lançando dardos em minha direção com o olhar; não, o Sr. Menezes permanece com a atenção voltada para o jornal em mãos, uma perna cruzada sobre a outra, e os ombros ocultos sobre a costumeira camisa social esmeradamente branca, não apresentando nenhum sinal de tensão visível.
Eu deveria me preocupar?
∆
- Você acha que conseguiremos mesmo promover o evento que eu te disse? - Cascão me pergunta assim que chego à sua casa, e estamos subindo as escadas da recepção.
Ele mora em um condomínio na verdade, a poucas ruas de mim, o que me fez vir andando até a sua residência sem ter muito o que reclamar.
- Claro - eu reafirmo - O Limoeiro nunca teve evento nenhum de games até então, e sabemos que é algo que muitas pessoas, principalmente adolescentes, tem recorrido nos últimos anos. E agora que temos o Nik por aqui, talvez possamos ganhar algum crédito com o prefeito e conseguir a autorização.
- Você tem razão, acho que ele também vai topar essa ideia logo de cara.
- Você "acha"?
- Eu tô ansioso!
- Cara, eu também. - admito, observando-o girar a chave na fechadura e empurrar a porta do apartamento em seguida - Você viu quantos pontos o novo campeão mundial de Final Fantasy fez?
Cascão suspira.
- Se vi! Aquele japonês é um monstro.
- É - eu concordo empolgado, mas a minha atenção se desvia para a garota sentada em meio as almofadas coloridas que estão espalhadas pelo sofá de couro.
Mônica move o seu olhar felino da televisão para mim, e sinto meus ombros retesarem com a possibilidade de ser piamente ignorado por ela; mas então a garota vai lá e me surpreende com um meio sorriso, dizendo:
- Oi, capitão!
Oi, linda - quase respondo, mas um olhar rápido para o lado me faz desistir. Não estávamos sozinhos afinal.
- Oi, Mô.
E então olho ao redor, porque onde estava o caju, estava a...
- A Magali está por aqui também?
- Estou! - ela grita do que deveria ser a cozinha, me fazendo rir.
- Bela audição! - grito de volta para ela com bom humor.
- As garotas vão nos assistir apanhar feio para os nossos oponentes hoje. - Cascão me informa em falso tom de lamúria.
- Perder na frente de uma campeã será um fiasco, ainda mais quando se é amigo dela - Sousa ri, atraindo o meu olhar curioso para o que acabou de dizer - você não sabe? A Magali é a super fighter de todo o Limoeiro.
- A Magali o quê? - eu repito, incrédulo, e me viro para a garota que acaba de entrar na sala com um balde enorme de pipoca.
Fã de filme de terror, nerd dos vídeo games ... Eu não sabia mais quem aquela garota era.
- Outra caixinha de surpresas, eu diria. - Mônica fala, complementando o meu pensamento como se pudesse lê-lo.
Magali entrega o balde para a amiga, de modo que o acesso ficasse facilitado para todos nós. Mônica e eu levamos as mãos ao balde no mesmo instante, fazendo com que nossos dedos roçem uns nos outros.
Nos entreolhamos, porém ligeiramente, uma vez que Cascão logo retoma a conversa.
- Você precisa ver a Magá jogando, cara, é simplesmente...
- Foda. - Mônica acrescenta, dando de ombros. - Não tem como definir de outro jeito.
- Será que temos uma oponente à altura do Xaveco agora? - eu cutuco Cascão com o cotovelo, apontando para a garota com o rosto vermelho ao nosso lado.
- Eu não iria tão longe. - a própria responde.
- O que? - Cascão pula - você é genial, Magá. Genial. - enfatiza - Ganhamos três vezes seguidas o Campeonato Mano a Mano por sua causa, lembra?
Magali parece chateada quando recosta-se ao braço do sofá, apesar de bastante satisfeita pelos elogios do amigo, dobrando uma perna abaixo da outra.
- Ficar em segundo lugar não conta como uma vitória tão legal assim.
- Vocês participaram do Campeonato Mano a Mano? Caraca, que demais! - eu exclamo, surpreso.
Por vir sendo o estado com desenvolvimento tecnológico mais acelerado até então, esse tipo de Campeonato pertencia ao Rio de Janeiro e acontecia apenas uma vez por ano. Um dos grandes desejos dos jogadores amadores como eu, era poder ir até lá um dia e participar, é claro.
- Fomos sim. - Cascão responde animado - A Mô foi com a gente nos dois primeiros anos, mas este ano nao pôde ir. Por que mesmo, Mô?
A garota responde com a boca cheia de pipoca:
- Não consegui folga no trabalho.
- Ah, foi. - o rapaz comenta com infelicidade - Enfim, acabamos ficando em segundo lugar por motivos técnicos, mas eu não acho que seja uma posição tão ruim.
- Tá brincando? É muito maneiro. - eu respondo sinceramente.
O telefone acima da mesinha de madeira toca, localizada na lateral do sofá, e Cascão inclina o tronco para trás com preguiça.
- Atendam pra mim, meninas?
Se esticando como um gatinho faz para se espreguiçar, Mônica alcança o aparelho cor de creme e retira-o do gancho.
É impressionante a sintonia que os três possuem entre si, e fico feliz de estar fazendo parte dessa amizade. Além da diversão perceptível que surgia quando estavam juntos, eles sempre trabalhavam de modo construtivo, de modo que um ajudava o outro, e isso não era nada menos que raro.
- É a sua mãe, Magá. - avisa segundos depois, entregando o aparelho à morena.
A quase namorada de Cascão fala rápido ao telefone, dizendo palavras em sua maioria monossilábicas, e então desliga, abandonando seu lugar ao chão e se pondo de pé.
- O que aconteceu? - Mônica pergunta com as sobrancelhas franzidas para a amiga.
- Minha mãe está pedindo que eu vá comprar os remédios do vovô. Ela só percebeu agora que eles acabaram. - Magá faz com um sutil tom de aflição - Eu volto depois, mas preciso realmente ir lá na farmácia agora.
- Posso te levar de carro pra ser mais rápido, se você quiser. - Cascão se oferece, fazendo Mônica e eu trocarmos um olhar significativo.
- C-claro - Magali concorda, a face voltando ficar bastante rosada - seria ótimo.
Ágil, Cascão também se levanta, indo na direção da amiga que está sentada no sofá. Ele confere as chaves no bolso de trás da bermuda, e então se inclina para falar com a castanha.
- Não façam nada que eu não faria. - ele brinca com uma piscadela, beijando a baixinha na testa e pegando o casaco no assento ao lado dela no sofá.
- Eu te detesto. - Mônica estreita os olhos para o amigo, mas há um sorriso brincalhão em seus lábios.
Ao passar por mim, Cascão toca no meu ombro, piscando o olho de modo semelhante ao que fizera com Mônica há instantes atrás.
- Juízo! - ele grita à porta, saindo junto com Magali, que manda beijinhos no ar para nós apressadamente, e então a porta se fecha atrás de ambos.
Vagueio os olhos pelos retratos de paisagens espalhados pela parede principal da sala; eles detalham, em sua maioria, cachoeiras, bosques e chalés aconchegantes que parecem ter sido retirados de algum conto de fadas, e trazem uma espécie de paz interior, de serenidade, a quem é capaz de parar para contemplá-los.
Desço o olhar para Mônica, que se mantém entretida com um milho de pipoca queimado na palma da mão. O silêncio entre nós dois me incomoda, principalmente porque ele diz uma variância de coisas que não poderíamos pôr com clareza em palavras.
Nenhum de nós fala alguma coisa por um longo e incômodo conjunto de minutos, então decido, pelo menos uma vez na vida, não ficar preso no "e se", soltando um:
- Minha mãe quer te conhecer.
Os olhos da garota crescem enquanto ela para de mastigar, ignorando o balde de pipoca pela metade para um lado, como se este tivesse-a queimado.
- Você contou de mim pra ela?
- Não do jeito que você está pensando. - me apresso em corrigir - Ela perguntou se eu estava namorando, e eu não soube responder com exatidão, mas ainda assim é óbvio que ela acabou percebendo alguma coisa.
- Como?
Levanto os olhos para ela.
- Você nunca percebeu que eu fico diferente toda vez que falo de você?
Mônica continua me encarando com uma expressão descrente.
- Diferente como?
- Olhe nos meus olhos. - incentivo, e me surpreende quando ela o faz sem pestanejar. - O que você vê?
O efeito dos seus olhos nos meus é como uma hipnose, deixando o mundo ao nosso redor num tipo estranho de câmera lenta. Sei que esse efeito é mútuo, porque Mônica parece tão intensa me olhando, quanto eu estou lhe devolvendo o contato.
- Brilho. - sua voz é lenta - Seus olhos estão brilhando como dois vagalumes.
- Exato. - concordo, não quebrando em momento algum o nosso contato visual - Só há uma pessoa no mundo que os deixa assim. E essa pessoa é você.
Sua expressão pasma é substituída por um sorriso doce que me faz sentir o bater das asas de mil borboletas na barriga. Era impressionante como os traços de seu rosto haviam mudado tão rápido, se apresentando leves e um tanto delicados agora.
- Acho que nunca estarei pronta para esse Cebola cheio de confissões que você se tornou.
- As palavras só...fluem. - eu tento explicar, mas não é como se fosse fácil assim.
Mônica me olha de esguelha, com um meio sorriso.
- Tenho percebido.
- Por que? Você não gosta?
Minha pergunta sai com uma nota estrangulada de decepção, o que não consigo deixar de sentir ao pensar que ela
- Arrisco dizer que ele é um desafio para mim.
Franzo as sobrancelhas, fazendo-lhe uma pergunta silenciosa.
- Ah, vai me dizer que você não sabe? - ela indaga com descrença, me olhando de lado, e ao notar que não faço a mínima reação de respondê-la, prossegue: - Eu adoro desafios.
Em questão de segundos, suas costas repousam contra o assento do sofá, e seus olhos enormes me encaram com susto enquanto a mantenho presa pelos pulsos, uma das pernas pendendo na lateral do móvel.
- Por que você está fazendo isso? - ela não parece tão irritada quanto a pergunta sugere, mas com certeza está bastante surpresa. Outra vez.
- Por que você ficou tão irritada comigo naquele dia? - volto a perguntar, assumindo uma seriedade necessária para o momento.
Eu estava gostando dos nossos instantes de distração, mas precisava resolver isso de uma vez pra tirar aquele maldito peso da minha consciência.
- Cebola, não é necessário…
- É sim. - eu discordo enfaticamente - Você não é de bancar a idiota e se esconder dos problemas como eu, mas não é exatamente a pessoa mais clara do mundo, e eu juro por Deus que não vou passar outro dia com as mãos na cabeça, pensando em sobre o que você está pensando, porque…
Bufando, Mônica me segura pela parte posterior do pescoço e pressiona os lábios contra os meus, na tentativa de silenciar-me e virar a situação a seu favor.
Confesso que quase ignorei as questões anteriores e fixei a atenção somente naquela garota linda, irreverente e extremamente sensual que me beijava em um toque sutil agora. Novamente, bem quase.
- Por que você fala tanto, quando poderia estar com a boca ocupada de um jeito muito mais interessante para nós dois? - sugere no segundo em que nos afastamos, observando os meus labios entreabertos de um jeito que faz os meus pensamentos sãos quase irem parar no ralo.
- Só quando você responder à minha pergunta. - me vejo falando automaticamente, sem chance de hesitar.
- Mas eu já te desculpei. - ela revira os olhos, deitando a cabeça no sofá com impaciência.
- É, e você sabe muito bem do que estou falando. - eu insisto, voltando a sentar em meu lugar.
A irmã de DC faz uma careta enquanto também retorna à sua posição inicial, puxando para baixo a camiseta que ficara amassada há pouco tempo atrás.
- Pensei em você ter dito que gostava do meu lado misterioso. - comenta com um tom de desconfiança quase infantil.
- E eu gosto. Mas não acho que seja saudável pra o que temos continuar nesse impasse. - pontuo.
Uma irreverente sobrancelha se destaca abaixo da testa.
- E o que temos?
A pergunta paira no ar como uma foice invisível, prestes a cortar quem se arriscasse primeiro a abrir a boca.
Não estou olhando para ela quando paro para pensar em algo para lhe responder, algo sincero, mas não há nada mais sincero do que os meus sentimentos, e isso eu já venho demonstrando há um tempo razoável.
- O que você quer que tenhamos? - devolvo no final, porém antes que a resposta chegue, o som de uma buzina estridente nos distrai.
Mônica saltita até a janela ao lado esquerdo da porta, sendo tirada de seu tempo, e fica na ponta dos pés para enxergar melhor o exterior do condomínio.
- Casgali chegou. - anuncia.
- "Casgali"?
- É - ela concorda, sentando ao meu lado e cruzando as pernas como uma mocinha comportada - juntando o nome dos dois, surge Casgali. Eu achei que daria um bom apelido de casal.
- Dá mesmo. - Assinto, e mesmo que nossa questão anterior não tenha sido resolvida, algo me ocorre - Isso me faz pensar se Cebônica seria um bom nome para nós dois também?
Mônica arfa baixo, mas audivelmente, parecendo ter engolido uma bola de espinhos que surgira do nada, pela expressão atônita em seu rosto.
- Você não gostou? - eu junto as sobrancelhas - sei que você não é muito fã dessas coisas de apelidos, e...
- Não. - ela me interrompe, os olhos brilhando semelhantemente aos meus.
- Não o quê? - pergunto sem entender exatamente.
Ela sacode a cabeça para os lados.
- Cebônica é…
- É…? - incentivo, estendendo um braço no encosto do seu lado no sofá.
Sousa respira fundo, movendo a cabeça para o lado
- Cebônica é perfeito. E eu espero que possamos acabar, bem em breve, com essa confusão sem nome que temos feito com nós dois. - diz em um respiração, as palavras súbitas atingindo-me de uma só vez. - Sei que querer não é poder e que certamente devo muitas explicações à você, mas se tiver um pouco mais de paciência, prometo que farei o possível para te corresponder do jeito que você espera, algum dia.
Me inclino para frente com perplexidade. Por mais rápido que ela tivesse se desvencilhado do meu olhar, eu vira o que tinha acontecido com as maçãs do seu rosto.
- Você está vermelha?
- Não. - sua resposta rápida levanta ainda mais desconfianças.
- Me deixa ver?
- Não! - protesta pondo as mãos no rosto, escondendo-se do meu alcance visual.
Estou rindo da sua reação tímida, porque é com certeza uma das coisas que mais me deixara surpreso no dia inteiro.
Quando enfim consigo uma brecha para os meus dedos entre os seus, faço uma pressão insistente para que eles venham juntos abaixo, me dando visão de seu semblante pra lá de ruborizado.
Mônica me direciona um olhar assassino enquanto olho para a dupla de bochechas coradas, percebendo pela primeira vez a existência de uma garotinha dentro dos olhos ferozes e marcantes que envolvem toda aquela personalidade que sempre faz meu coração acelerar. Não falo nada porque sei que ela tem consciência do que estou vendo, e sei também que isso está a incomodando. Mônica não deixa suas defesas ruírem assim a qualquer momento, mas não foge do campo de batalha; ela não esconde o olhar do meu, porque isso estaria indo contra os seus próprios princípios, e caramba, talvez eu devesse aprender um pouco com ela como é ser assim. Decidido.
Engolindo com dificuldade o comentário para um outro momento, eu abro um sorriso esperto.
- A cor vermelha te cai bem até assim, sabia?
- Seu bobo! - ela dá risada, e não consigo desviar os meus olhos para outro lugar que não sejam as bochechas cor de tomate outra vez.
Quando ouvimos Cascão girar a chave na fechadura da porta principal, sequer nos importamos em tomar distância, porque meu abraço ao redor de seus ombros não é nada malicioso, e sinceramente seria muito pior se nos afastássemos de última hora; a cara de desconfiança e o rubor épico de Mônica com certeza nos entregaria.
Porque mesmo que tentássemos transparecer um abraço inocente, Magali e Cascão trocaram olhares carregados de significado assim que pisaram na sala e nos encontraram, afinal eles eram nossos amigos.
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