Raquel havia chegado cedo ao escritório. Naquele dia, Paula tinha um passeio para o aquário de Madri e precisou chegar antes do horário normal, dando-lhe alguns minutos ócios.
Teve tempo de se sentar em sua mesa e ler o jornal com calma. As notícias diziam que seus companheiros de Barcelona tiveram problemas em capturar uma quadrilha que fazia sequestros infantis. Até então, a quadrilha não havia ganhado destaque porque fazia as coisas sem permitir que a polícia fosse envolvida, mas nesse último caso a família da vítima – uma criança de dez anos - contatou a polícia e os assaltantes não reagiram bem e agrediram a criança.
Raquel leu a notícia e não teve como não ficar mais indignada. Uma forte sensação de impotência tomou conta enquanto ponderava tudo como inspetora, e o sentimento de desnorteio a invadiu quando pensou como mãe.
Aos poucos seus colegas de trabalho foram chegando e só se falava do sequestro em Barcelona. Ela sentia náusea a cada vez que uma nova pessoa passava pela porta expressando seu choque com o ocorrido.
Fechou a porta de sua sala tentando focar em seus próprios casos e por um tempo foi bem sucedida.
Por volta das duas da tarde ligou para a escola de Paula para saber se o ônibus já havia chegado do passeio. Respirou aliviada quando a coordenadora confirmou que as crianças haviam acabado de chegar, que Paula estava bem e indo para o refeitório com as outras crianças para a hora do lanche.
Raquel não era daquelas mães que se intrometia no papel da escola dando palpite em tudo. Era participativa, sim, mas deixava que a escola exercesse seu papel. Porém naquele dia ela precisava saber de sua filha.
Por volta das quatro da tarde, quando ela sabia que Paula e Catarina já estariam em casa, ligou para saber como estavam as coisas – o combinado era que Catarina sempre mandasse mensagem quando chegassem e assim ela já tinha feito, mas Raquel precisava ligar.
- Alô?
- Oi, Catarina! Sou eu – no mesmo instante a menina conferiu o celular se certificando de que realmente já havia mandado a mensagem combinada.
- Oi, Raquel! Algum problema?
- Não. Só chamada de controle. Como está Paula?
- Bem, ainda animada com o passeio de hoje. Já tomou banho e agora está vendo tv.
- Certo! Pode passar o telefone pra ela?
- Claro.
Raquel conseguia ouvir Catarina chamar a criança do outro lado da linha e logo os passos da menina puderam ser ouvidos também.
- Oi, mama!
- Hola, cariño. – Mesmo já sabendo que a filha estava bem, ela respirou aliviada - Como você está?
- Bem, mama!
- Se comportou direitinho no passeio? Ficou do ladinho da professora?
- Sim. Mas do ladinho dela não deu para ficar. Ela precisava ficar perto dos mais bagunceiros pra que eles não saíssem quebrando tudo. – Raquel riu da sinceridade da filha.
- Vale. Logo mama chega, certo?
As duas se despediram, deligaram e Raquel voltou para o resto de seu expediente. Agora mais tranquila.
Assim que o relógio marcou o horário de saída de Raquel, ela organizou alguns papeis sobre a mesa e saiu sem olhar para trás.
Chegou em casa e Paula estava fazendo a atividade escolar na sala. Raquel deixou a bolsa em qualquer canto e foi direto abraçar e beijar a filha.
- Mama, estou fazendo a tarefa! – a menina dizia entre risos em meio aos beijos da mãe que não a soltava.
- Tudo bem. Deixa só eu dar mais um beijinho. – Deu um beijo estalado na bochecha da menina e finalmente se desvencilhou – mama vai subir para tomar um banho e depois você me conta sobre seu passeio, vale?
- Vale
Se despediu de Catarina, a agradecendo por mais um dia com Paula, e subiu. Ao chegar em seu quarto, arremessou o coletinho que vestia sobre a cadeira do computador e saiu deixando as outras peças de roupa pelo caminho até o banheiro.
Quando sentiu a água morna contra a pele, pôde relaxar completamente pela primeira vez naquele dia. Percebeu o quanto aquela notícia do jornal a deixou mexida quando se deu conta que nem havia pensado em Sérgio durante o dia. “Meu padre como diria Alicia”, rindo ao se lembrar das palavras da amiga.
Raquel ainda estava enrolada na toalha quando Paula entrou em seu quarto
- Terminei o dever, mama.
Raquel deixou a toalha cair e pegou uma muda de roupa confortável. Uma blusa rosa bebê larguinha e shorts pretos
- Certo. E fez tudinho? – Perguntou enquanto se vestia.
- Pois, sim!
- Até os de matemática?
- Graças a Deus hoje não tinha de matemática! – a menina levanta as mãos para o céu dramaticamente fazendo Raquel sorrir.
- Depois eu vou conferir seus cadernos. Vai que tem algum recado da professora... eu sei que ela adora deixar um recadinho. – Terminou de se vestir e se aninhou na cama com la niña – agora me conta... como foi o passeio?
- Foi muito legal. Era um aquário gigante e ficava embaixo da terra
- No subsolo – Raquel relembrou a palavra que já havia ensinado a filha quando as duas souberam sobre o passeio
- Isso. Dava pra ver o oceano inteiro e parecia que os peixes iam morder nosso nariz quando a gente grudava a testa no vidro. Sabe o que eu fiquei com vontade assistir?
- O que? – Raquel já imaginava todas as possíveis respostas, mas não queria cortar a empolgação da menina.
- Nemo e A pequena sereia. Eu estava louca para ver um peixe igual ao linguado, mas não vi. Ah – ela pareceu se lembrar de repente - mas eu vi a galera do Nemo!
- A galera? – Raquel soltou uma risada gostosa.
- Sim! Vi peixes palhaços e azuizinhos como a Dory! – dessa vez as duas riram juntas.
- Hija, quando você estiver em passeios de escola, ou com o papa ou até mesmo comigo, não fique longe de quem estiver com você. Se alguém que você não conhece se aproximar e te chamar para ir a algum lugar, não vá. Vale? – Não era a primeira vez que Raquel falava aquelas coisas para a filha, mas sentiu a necessidade de repeti-las.
- Vale, mama.
Raquel sorriu a abraçando e pedindo a Deus que nada de ruim, nunca, acontecesse com sua filha.
- Vamos jantar?
- Sí!
As duas desceram e tiveram uma refeição em um clima calmo e leve. Seguiram a rotina noturna – arrumar a cozinha, escovar os dentes, ler uma história e por fim, Raquel poderia ia para seu próprio quarto.
Ao se deitar em sua cama, deixou que os pensamentos sobre Sérgio fluíssem e em como sentia saudades dele. Há poucos dias eles haviam almoçado juntos e o que ela não faria para poder dividir todas as refeições com ele, dividir o dia, a noite, a vida...
Mesmo que ao fim daquele dia ele tivesse jurado que nada entre eles voltaria a acontecer e que aquelas palavras tivessem feito seu coração doer, ela já não se lembrava mais. Era um amor persistente e genuíno. Que perdoa e nem é capaz de lembrar o que o feriu. Como crianças que num instante estão chorando e logo estão rindo e brincando. Era amor! Nada importava, apenas o que ela sentia por ele. Uma vez que ela aceitou seu amor por ele tudo pareceu mais leve.
Seus princípios não haviam mudado. Ela não iria impor seu amor a ele, muito menos obrigá-lo a amar de volta. Estava feliz em apenas tê-lo em sua vida – por enquanto.
Com certeza ele teria algo reconfortante para dizê-la nesse que dia em que ela passou tão angustiada. E mesmo que não tivesse, só a presença dele já causaria um efeito calmante em todos os seus sentidos.
Ah, o abraço dele. O cheiro dele. Era um cheiro simples e único.
Se virou de lado na cama com um sorriso no rosto imaginando como seria a vida com ele. Amanhecer em seus braços certamente tornaria seus dias melhores. Sorrir com ele, passear na rua de mãos dadas. Logo se lembrou do sonho que teve a algumas semanas atrás. Ao fechar os olhos conseguia se sentir novamente naquele sonho. A brisa do mar acariciando sua pele, a paz e o frescor daquele lugar que ela não poderia identificar, mas que com certeza era lindo, as mãos de Sergio a despertando enquanto dançavam por sobre seu corpo e seus lábios trilhando um caminho de seu ombro até os lábios.
A doce lembrança lhe trouxe uma paz tão grande que ela logo se rendeu ao sono.
Despertou com o despertador – não precisou acordar antes do horário de sempre – e deu início a mais um dia.
Depois de deixar Paula na escola, chegou ao trabalho onde precisou liderar a operação contra um assalto a mão armada no centro de Madri. Os bandidos fecharam um comércio – uma loja de grife – e renderam os funcionários, porém as postas foram travadas, trancando trabalhadores e assaltantes dentro da loja.
Raquel, que já era experiente em situações assim demonstrou calma e segurança, o que pareceu irritar Prieto.
- Raquel, como você pode agir assim? Por que não manda as tropas de Suarez invadirem logo? Estamos perdendo tempo!
- Prieto, se quisessem uma chacina as ordens seriam para você liderar.
- Claramente você precisa de terapia. Não era pra você já ter começado as sessões?
- Assim que você começar as suas.
Demorou para que o clima hostil entre eles surgisse.
Como previsto, a operação foi um sucesso e ela só queria dizer um belo “chupa” para o Prieto, mas achou melhor não piorar tudo. Já conhecia a tendência que o homem tinha para se comportar como um verdadeiro cabron de mierda.
O indicado era mesmo que ela fizesse terapia depois de um divórcio tão turbulento. Mas a verdade é que ela se sentia bem. Voltar ao trabalho e recuperar sua essência fazia todo o resto parecer tão pequeno. Sem contar que amar Sérgio lhe dava uma nova perspectiva. Esperança. Não que fosse um sentimento que a tornasse dependente, pelo contrário, ela se sentia cada vez mais livre para ser ela mesma.
Durante o horário de almoço recebeu uma mensagem de Frida
Frida
12:33
Hola, Raquel! Como estás? Estou convocando as mães da paroquia hoje à noite na igreja para uma pequena reunião e preciso muito da sua presença. Você poderia comparecer?
Raquel
12:33
Hola, frida. Estou bem e você? Vale. Marcado! Assim que eu sair do trabalho passo aí.
As duas se despediram devidamente e Raquel voltou para o finalizar seu trabalho.
Ela estacionou o carro em frente à igreja. Conseguiu uma vaga facilmente visto que não costumava haver tantas pessoas na missa daquele horário.
Ao colocar os pés na porta da igreja Raquel sentiu um frio na barriga. Um frio que ela já reconhecia por sentir toda vez que sabia que veria Sergio. Caminhou respirando fundo até finalmente entrar na igreja.
Sérgio estava de costas para a porta dando início a missa e ela só conseguia sorrir por finalmente vê-lo novamente.
Era incrível a conexão que seus corpos tinham e provavelmente eles não tinham ideia do que causavam um ao outro. Era magnético.
Sem entender, Sérgio apenas virou-se para a porta – e ainda não era o momento de se virar -. Como se algo o chamasse, o guiasse.
Era como um raio de sol depois da tempestade. Sérgio sempre se considerou uma pessoa calma e mansa, mas Raquel o fazia sentir uma energia tão grande dentro de si, era como se um cabo de alta tensão o percorresse por inteiro.
Ela se sentou no lugar de costume e ele deu início a missa.
Como era de se esperar, seus olhos tinham vontade própria e ele não podia evitar olhar para ela.
Olhares discretos apenas confirmando que ela realmente estava ali. E como era bom ela para ela.
Ao fim da missa, Frida reuniu todas as mães da paroquia nos bancos da frente, perto do altar, e com a supervisão do padre começou.
- Boa noite a todas. Bem, eu estive conversando com padre Sérgio ontem – Raquel desviou a atenção de Frida para o padre. Ela sabia que não tinha motivos para pensar em nada demais e que Frida era ativa nas questões da igreja, mas o incômodo por saber que a mulher tinha a oportunidade de estar mais tempo ao lado de Sergio a surpreendeu. Não era ciúme, apenas um leve incomodo. Quando Sergio sentiu os olhos de Raquel numa mirada que ele nunca tinha visto só conseguiu desviar os olhos para o chão
Frida continua sua fala
- E bem, imagino que todas nós tenhamos visto as reportagens sobre o sequestro em Barcelona ontem. – Todas acenaram positivamente – O que foi aquele depoimento da mãe?! Tão forte! Particularmente, passei o dia angustiada com meus filhos. A criança mesmo já tendo dez anos foi aliciada a determinado lugar por lhe oferecerem doce. Eu acho que nossas crianças, independentemente da idade, precisam ser instruídas e ensinadas a como se defenderem sobre não falarem com estranhos. Acredito que Deus tenha me feito ter essa ideia. – Ela sorri e concluiu – Podemos fazer um passeio, um acampamento onde eles podem ter uma tarde para brincadeiras e receberem essas lições.
As mães ali presentes receberam muito bem a ideia e entre vozes misturadas podia se ouvir muitos “adorei”, “ótima ideia”, “...realmente importante”. Feliz com as reações, Frida continuou.
- E não há ninguém mais capacitada a fazer isso do que nossa querida inspetora Murillo. Se ela aceitar, claro! Seria uma honra. O que você acha, Raquel?
Raquel realmente não esperava pelo convite. Achou a ideia maravilhosa, tanto que ela mesma já havia tido uma conversa superficial com Paula.
- Seria um prazer ajudar, – todos pareceram satisfeitas – mas ainda não posso dar certeza por conta do meu horário de trabalho.
- Sim, não se preocupe. Eu e o padre conversamos – mais uma vez o olhar de Raquel encontra o de Sergio que volta a encarar o chão - e o melhor dia seria em um sábado. As crianças não tem aula e creio que você esteja disponível. Poderíamos fazer a tarde mesmo, assim elas podem dormir até mais tarde e vão mais animadas.
- Pois, sim.
- O seu Geronimo e a dona Judith têm uma chácara que já colocaram à disposição da igreja inúmeras vezes – Sergio falou, chamando a atenção das mulheres – acho que seria o ambiente apropriado.
Tudo ficou pré acordado e Frida se comprometeu e passar as informações seguintes por mensagem para cada das mães. Aos poucos as outras mulheres foram saindo e só restaram no templo Sérgio, Raquel e Frida.
- Raquel, me diga todo o material que você vai precisar e eu providencio. Já é quarta, então não podemos perder tempo.
- Bom, para as aulas de defesa pessoal não vamos precisar de nem um material especifico, mas para as brincadeiras, serão necessários pneus, cordas, sacos e entres outras coisas que eu posso te mandar em forma de lista por mensagem.
- Certo! - Respondeu Frida - vou ver com a dona Judith sobre as comidas.
Sergio arregalou os olhos na mesma hora e seu pavor não passou despercebido por Raquel, que segurou o riso.
- Frida, por que não fazemos assim: você já teve a ideia e está cuidando de toda a organização. Deixe que eu e Raquel cuidados dos alimentos? - O padre se adiantou.
- Certo. Realmente ia ficar muita coisa para eu providenciar... – Sérgio acenou com a cabeça como quem diz que aquele era o único motivo.
- Agora preciso ir porque deixei as crianças com o pai e sabe-se Deus o que estão aprontando. Sua benção, padre.
- Deus te abençoe, filha.
- Até logo, Raquel!
Frida se retirou deixando apenas Sérgio e Raquel juntos.
Ela se virou para o padre com um largo sorriso no rosto, mas ainda segurando a gargalhada.
- Tem certeza que não quer a paella ou a tortilla da dona Judith? – ele abaixou a cabeça rindo timidamente e ela só queria abraça-lo e beijá-lo quando o viu corar.
- Raquel – falou como quem chama atenção de uma criança ainda de cabeça baixa.
- Certo. O que você tem em mente?
- Eu ia te perguntar a mesma coisa. Tenho certeza que você entende mais de crianças do que eu.
- Eu não diria isso. Paula amou aprender a fazer origami, seu pudim e brincar no seu quintal.
- Me alegro em saber. E não é bem um quintal.
- É o jardim da sua casa. – Ele sorri balançando a cabeça negativamente – acho que eles vão gostar de cachorros-quentes, suco de laranja – ela levantava um dedo a cada sugestão e ele sorria ao observar a animação, admirando o biquinho que ela fazia enquanto pensava. Ele só queria abraça-la e beijá-la - posso conseguir um bolo na Alícia. Você não é alérgico a nada, é?
- A frutos do mar. – ele respondeu rápido e sério.
Raquel franziu a testa em um misto de preocupação e confusão. O risoto que ela havia levado era de frutos do mar.
- Ah meu Deus, Sérgio – ela começava se desesperar e ele não aguentou sustentar a brincadeira.
- É brincadeira. Não sou alérgico.
Ela entreabriu os lábios incrédula e deu um “leve” tapa em seus ombros o fazendo soltar um gemido enquanto ria da expressão dela. Logo Raquel se juntou a ele na risada e só então eles perceberam que ela não o havia chamado de padre. Durante aqueles segundos de risada. Eram apenas Sergio e Raquel.
- Acho que já temos um cardápio. – Ele diz retomando o assunto e ela sorri com um brilho no olhar – Você poderia me passar seu número de celular? Assim, se tivermos alguma mudança posso te avisar a tempo – ela ficou um segundo processando a pergunta.
- C-claro.
Sérgio pegou seu celular no bolso da calça e anotou os números que ela calmamente dizia.
-E como você está? – ele perguntou devolvendo o objeto para o bolso.
- Estou bem! Um pouco cansada, mas um cansaço bom.
- Então, as coisas no trabalho estão indo bem.
- Sim... – ela soou um pouco vaga na resposta.
- Não me convenceu.
- Meu chefe vive me cercando para que eu faça terapia porque meu divórcio foi traumático e isso pode afetar meu desempenho no trabalho.
- Você sente isso?
- Não! Eu sei que é bom e que é importante, afinal é minha área de formação mas se fosse pra falar com alguém, eu preferia que fosse com um amigo, com quem pudesse me distrair e não me lembrar tudo que passei com Alberto. Não ainda.
- Pois eu estou bem aqui - traído pela própria boca. “O que está acontecendo comigo? O plano é deixar de amá-la e certamente passar mais tempo com ela não ajuda.” Sua razão gritava.
- Com assim?
- Eu sempre te disse que estou aqui, Raquel. Eu não menti. Eu não sou psicólogo e sou seu amigo, certo? – contrariando a razão, se ofereceu de todo coração.
- Sim, você é. – ela admitiu em um fio de voz sem saber se ficava feliz por tê-lo dessa forma ou triste por tê-lo apenas dessa forma.
- Então acho que me encaixo nos requisitos.
Ele sorri e ela espelha a ação.
- Vale. Mas você pode contar comigo também. Se só eu falar vai ser como ir ao psicólogo e eu quero te ouvir.
- Feito.
Ela estica a mão e ele a segura. Sem se darem conta, mantêm o contato por mais tempo que o normal. Raquel inconscientemente acariciava o dorso de Sérgio com o polegar. Toda e qualquer simples manifestação de carinho que recebesse dela o deixava com o coração aquecido.
- Eu preciso ir, padre.
- Vale.
As mãos ainda se tocavam. Como era difícil deixar aquele pequeno contato. Ela começou a caminhar e só quando a distância foi demais as mãos se desvencilharam.
Depois do jantar, quando Paula já estava na cama, Raquel perguntou o que a menina achava sobre o passeio da igreja e a resposta não poderia ser outra se não a animação dela.
Chegando em seu quarto, desbloqueou o celular e mandou mensagem para Alicia
Raquel
21:10
Hola, mi chica!
Alicia
21:11
Hola, mi guapa!
Raquel
21:11
Tenho mais uma encomenda pra você. Acho que já posso ganhar o título de cliente do mês!
Alicia
21:11
Não sei se fico feliz ou preocupada com sua taxa de açúcar
Raquel
21:12
Olha quem fala, quem sempre anda com um pirulito no bolso para casos de emergência
Alicia
21:12
Você não deveria usar a minha fala contra mim
Raquel
21:12
Jajajaja
Preciso de um bolo de chocolate com morango
Alicia
21:13
Hum, variando do bolo de chocolate tradicional?
Raquel
21:13
Quero dar uma chance ao resto do seu cardápio
Alicia
21:13
Certo. Qual o tamanho?
Raquel
21:14
O maior que você tiver. É para um monte de crianças da paroquia
Alicia
21:14
Pensei que seria um presente exclusivo para o seu padre. Quer dizer que vocês vão estar em outra festa juntos... será que agora passamos dos beijos?
Raquel
21:14
Para com isso Alicia. Ele deixou claro que não vai se repetir. Além do mais é um passeio com as crianças da igreja. Imagina a bagunça que vai ser...
Alicia
21:15
Sei... vou querer saber todos os detalhes desse passeio
As duas confirmaram a encomenda e depois de trocarem algumas palavras Raquel voltou a bloquear o aparelho.
A verdade é que aquelas palavras de Sergio, por mais que não tivessem mais nem um significado verdadeiro para ela, soavam como a voz da razão. Algo em que se apegar para não criar expectativas.
Se lembrou que agora o padre tinha seu número de telefone e mais uma vez desbloqueou o celular conferindo se não havia nem uma nova mensagem. Uma mensagem dele.
O sábado chegou e tudo o que foi planejado foi conseguido. Sérgio não precisou mandar nem uma mensagem para Raquel. Nem por isso ela deixou de esperar e ele de pensar no que poderia dizer.
Todos se acomodaram no ônibus alugado que os levaria até a chácara. Raquel se sentou com Paula, e Sérgio na fileira ao lado, com uma das crianças.
De soslaio, ele olhava para ela e a pegava admirando a vista ou sorrindo com a filha.
Quando ele não estava vendo, ela o observava distraído olhando pela janela.
Já na chácara, Sérgio observa Raquel em meio às crianças de variados tamanhos e idades, ensinando sobre como se portarem. Todas as crianças estavam sentadas no chão a escutando atenciosamente. Era incrível. Não tinha como não parar e prestar atenção em absolutamente qualquer coisa que ela fizesse. Sérgio, simplesmente não piscava e se todos os olhos não estivessem voltados para ela, certamente qualquer um poderia notar como ele acompanhava cada movimento dela com um leve sorriso bobo nos lábios.
Nos últimos dias, Sérgio estava bem conformado com sua condição: um padre apaixonado. Ele aceitava o fato de amá-la. Como não amaria? O que ele não pretendia fazer era largar a batina. E desde o almoço que tiveram juntos, ele percebeu que Raquel não era uma ameaça. Ela não tentaria persuadi-lo ou seduzi-lo. Não propositalmente. Ela o respeitava e havia mostrando que dava espaço a ele. Ele só precisa saber lidar com ele mesmo.
Depois que Raquel falou sobre como se comportarem diante de uma pessoa desconhecida e todas as suas ofertas, ela chamou Joaquim para ser seu voluntário na próxima etapa: defesa pessoal.
Como o menino era maior, ela conseguiria mostrar formas de se defender de um ataque. Depois chamou Luna para repetir os mesmos movimentos, porém em uma criança menor.
As crianças foram liberadas para brincarem livremente pelo ambiente logo em seguida. Os adultos ali, se dispersaram e Raquel olhava de forma distraída com a correria dos pequenos.
- Foi uma aula muito boa. - Sérgio disse a tirando de seus pensamentos.
- Ah... obrigada. A verdade é que eu acho que eu precisava disso tanto quanto essas crianças. Depois que li sobre a notícia do sequestro passei o dia preocupada com Paula.
Antes que pudessem se dar conta, estavam andando juntos e conversando ao redor daquela imensidão verde. Era um lugar amplo e era possível avistar um pequeno lago no fim do horizonte. A grama verdinha e o cheiro de terra molhada por conta da garoa que havia caído naquela manhã.
As crianças foram instruídas a não irem para o lado lago para evitar possíveis acidentes. Não era um lago confiável para banhistas.
- Imagino que os pais devem passar o dia preocupados. É o que dizem. – Sorriu simpático.
- Não deixa de ser verdade, mas com o tempo essa preocupação passa a ser parte da gente.
- Bem, Paula é uma criança esperta, inteligente. Tenho certeza que nada de ruim vai acontecer tendo você como mãe. - Ele disse sinceramente e logo se sentiu corar. Ela o olhou profundamente e se sentiu lisonjeada.
- Muito obrigada, padre. - Ele assentiu olhando para o chão e ajeitou os óculos-E como estão as coisas?
- Tudo bem. Não tenho nada que lamentar. – Sergio finalmente respondeu se referindo a si próprio sem que ela tivesse que especificar
- Como vão as hortas? Quando nos encontramos na floricultura não fazia ideia de que o senhor também cuidava de plantação.
- Bem, não sou nenhum jardineiro, mas mexer com a terra me acalma bastante.
- A mim também. - ela disse observando seus os passos iguais sobre a grama. - Antes de voltar ao trabalho eu passava bastante tempo no jardim que temos no fundo do quintal. Era quase uma terapia. - Ambos sorriram - hoje em dia, só consigo fazer isso aos fins de semana e o resultado é triste de ver... folhas secas outras mortas.
- Ah que pena... - ele disse sinceramente.
- Pois é... preciso me organizar para fazer isso nos fins semana, mas acabo procrastinando com Paula.
- Não me diga que os lírios morreram...
- Não! Ficaram por um triz, mas resistiram!
Ambos riem.
Uma criança passa correndo por eles os desviando sua atenção, mas seguem caminhando rumo a algum lugar e Raquel se lembra do que ele havia dito sobre sua infância.
- Não deve ter sido fácil ser uma criança presa em um hospital, né? – ele é pego de surpresa com o novo assunto.
- Não, não foi. – diz em sorriso triste e volta mirar o chão. Raquel sente o coração se comprimir – acho que foi quando aprendi o que era ter fé. Com as visitas da igreja e com tudo que eu aprendia sobre Deus com eles.
- Hum...
- Quê?
- Nada
- Quê? - ele pergunta rindo sabendo que aquele “hum” significava algo.
- Bem... desculpa, mas eu não entendo como funciona isso de fé.
- Certo. – Ele fala interrompendo a caminhada e parando de frente para ela. - Você não precisa me pedir desculpas por absolutamente nada. – Ela sorri tímida e ele continua – a fé é um sentimento forte sobre aquilo que não podemos ver, mas esperamos e é um presente de Deus para nós. Ele nos faz crer no impossível.
- Em qualquer impossível?
- Sí. – Ele diz no mesmo segundo.
- Entendi. E foi isso que passou com você quando criança?
- Pois, sim. – Sorri sinceramente olhando para ela.
- Eu fico feliz que em meio a uma infância difícil você tenha tido em que se apegar.
- Eu acredito que tudo acontece por um proposito. Se não tivesse ficado doente não teria recebido a visita da igreja e encontrado minha vocação, além de ter tido momentos muito especiais com meu pai. Ficamos muito próximos porque minha mãe já tinha morrido e só tinha ele para cuidar de mim. Andres ajudava, mas era um ajuda mais prática. Como ele é mais velho e podia conseguir uns trocados e era o que ele fazia. Mas depois que meu pai morreu ficamos mais próximos.
- Você ainda era criança quando seu pai morreu?
- Eu tinha treze anos. Já não estava mais no hospital.
- Então ele te viu saudável. – Ele assentiu.
- Treze anos não é velho demais para brincar na rua.
- Eu sofria dos pulmões então todos éramos temerosos quanto as brincadeiras e eu estava feliz com meus livros e origamis.
Eles respiram fundo inalando o ar puro
- E seus pais? – ele quebra o pequeno instante silêncio
- Meu pai morreu em combate quando eu tinha dezesseis anos.
- Então ele também era policial.
- Sim, é quem me insira sempre!
Trocaram um sorriso triste e sincero de quem compartilha a mesma dor
- E minha mãe morreu há dois anos de Alzheimer
- Eu sinto muito, Raquel – ela assente em um sorriso triste
- Era minha melhor amiga. Me ensinou aquele risoto que te fizemos.
- Uau... que honra dupla então. Experimentar uma receita da sua mãe feita pelas suas mãos.
Ela riu e ele sorriu de volta. Era realmente terapêutico conversar com ele. Era tão leve
Da mesma forma que começaram aquele passeio, sem que percebessem, já estava no meio da multidão novamente.
Os sacos estavam organizados e crianças eram chamadas para que as gincanas começassem.
Cada um puxou um saco até a cintura e assim que o padre soou o apto, eles começaram a corrida.
Raquel ao lado de Sérgio vibrava torcendo por Paula ele não conseguia não rir com a animação dela. O lado criança havia sido ativado. Era uma mulher com espirito jovem. Menina e moça.
Depois da corrida de sacos foi a vez do ovo na colher. Raquel se colocou na frente de Sérgio com um ovo em uma mão e uma colher na outra lhe oferendo.
Ele sacodiu a cabeça e franziu a testa em interrogação.
- Todo mundo precisar ser criança. Pelo menos um dia. E hoje é o dia de você ser criança também.
Uma risada cortada expressando a surpresa saiu dos lábios dele e quando ela manteve a mesma expressão de certeza e reforçou a oferta dos objetos em suas mãos ele soube que ela está falando muito sério.
- Raquel... eu não sei se é uma boa ide...
- Vamos! Vai ser divertido. – Ela lhe ofereceu um olhar terno e apoiador e ele não tem como dizer não.
- Vale.
Ele chega timidamente ao lado das crianças que quando notam que ele também iria participar, se animam de uma forma que enche seu coração. Ele havia ficado emocionado.
Raquel, que agora tinha o apto, deu o sinal e todos caminharam até a linha de chegada concentrados em não deixar que o ovo caísse.
Ela vê uma por uma das crianças sendo desclassificadas inclusive Paula, que pareceu não se abalar e corre para o lado da mãe para assistir quem seria o ganhador.
Só sobraram padre Sérgio e Joaquim, até que o menino se desequilibrou a um passo da linha de chegada e ao som dos gritos e aplausos de todos – inclusive de Joaquim – Sergio é o grande vencedor.
Havia sido apenas uma brincadeira, mas para ele era mais que isso. Ele se sentia tão orgulhoso de si mesmo. Raquel estava certa. Havia algo em sem criança que ele não se lembrava ou apenas nunca tenha conhecido. Uma alegria genuína com algo tão simples.
Todos se reuniram ao redor da grande mesa de madeira para a hora do lanche. Como estava ajudando a preparar a mesa, Raquel foi a última a se sentar, depois que o padre já havia dado as graças, e o único lugar restante era ao lado dele. Até mesmo Paula havia ficado do outro lado da mesa com sua amiga Luna.
Ao comerem o bolo de chocolate com morango da confeitaria de alicia, os vários “hmmmmmm´s” foram inevitáveis na mesa.
- Sua amiga realmente sabe fazer bolos.
- Pois é... eu que lute com Paula em casa o tempo todo intercalando os pedidos. Além dos bolos de Alícia, ela não para de falar sobre o pudim que comeu na sua casa e agora eu estou ferrada... perdão! - ela logo se atentou para o linguajar e ele sorriu “acho que por palavras chulas vou ter que pedir desculpas” ela pensa.
- Não precisa pedir desculpas, lembra? – ele diz calmamente achando graça – Pois isso é algo simples de resolver. Posso fazer mais para vocês.
- Ah, não... eu não falei com a intensão de te pedir.
- Tudo bem, mas eu ficaria muito feliz em fazer um pudim pra vocês. – ela sorri feliz com a predisposição dele.
Dona Judith que acompanhou todo o dia das crianças encantada por ver sua chácara cheia de gente e risos, se colocou em uma das pontas da mesa e agradeceu a presença de todos
- Bom, eu e Gerônimo ficamos muito felizes em receber vocês hoje e por nós, vocês podem vir sempre. – As crianças corresponderam animadamente ao convite
- Nós é quem agradecemos por ter nos cedido o espaço. Foi uma tarde incrível. -disse o padre
- Eu só lamente não ter contribuído com nada do lanche – diz dona Judith com pesar
Raquel e Sergio trocaram um olhar de soslaio que só eles entediam enquanto um leve sorriso brotava em seus lábios
Dona Judith terminou seus agradecimentos e todos voltaram a lanchar.
Ao fim do dia, todos entram novamente no ônibus. Depois de tantas brincadeiras, o percurso de volta foi sem dúvida mais silencioso que o da ida. Algumas crianças dormindo, outras apenas observando a vista da estrada.
Raquel também havia cochilado e Sérgio sentiu uma pontada no coração. Como seria tê-la dormindo em meus braços?” pensou e logo tratou de espantar tal questionamento. Sorriu satisfeito e grato a Deus pela oportunidade de ter partilhado aqueles momentos com ela.
Realmente foi um dia especial.
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