Quem me olha deve se perguntar porque mantenho guarda-chuva fechado. Olho em volta: ninguém me olha. A precipitação deixa tudo enevoado, era por aqui que a gente passava, não era? A camisa molhada está marcando alguma coisa? Bem capaz. Passa o meu ônibus - espirrando água, como de costume. Devo abrir o guarda-chuva? O ponto ainda está tão longe... mas eu já me molhei... se aparecer, será que vai trazer um guarda-chuva? Ah, não carecia, eu abriria por nós. Ela já não passa por aqui... E se eu oferecesse carona a um estranho? A um estranho? Você? Não vai. Vou sim! Espera para ver. A consciência silencia, com o sorriso zombeteiro de costume que fazia meu peito se apertar. Ela sabia, sabia sempre.
Dedilho as pedras amarelas do muro como quem saúda a pele quente de um amante antigo. Quando a gente era criança, descia o morro correndo sem medo de cair. Você sabe do que eu estou falando, não sabe? Certo, certo, eu tinha um pouco de medo, sim. Mas ela descia correndo sempre e nunca esperava, nem nos dias de chuva. Se eu não corresse, ficava para trás. Mas daí eu tinha vantagem: o guarda-chuva era eu quem carregava e ela não podia chegar toda ensopada em casa: então parava no pé do morro, sob uma sacada cheia de flores vermelhas e pendentes. Ela ainda deve estar correndo por aí, mas não tem problema, não mesmo. Houve até mesmo um dia fatídico. Porque sempre há, não é?
“Abre o seu guarda-chuva para nós?”
“Você não tinha trago a sua sombrinha?”
“Guarda-chuvas protegem mais que sombrinhas. Pra que molhar duas? Vai logo.”
Meus olhares de raiva ou despeito nunca funcionavam nela. Uma pena. Eu não me lembro bem o porquê - as razões se perdem -, mas naquele dia ela me irritou. Desci o morro: olhos raivosos e passadas calculadas: não me importei em tentar esconder o que pretendia: acertar-lhe a cabeça com o objeto portátil para proteção da chuva, mas a garota desviou rindo, e de novo e mais uma vez. Fiz então uma estocada contra sua barriga, que ela habilmente aparou, para depois virar-se e correr. Inicia-se a perseguição. Acho que os adultos nos olhavam. Já não éramos crianças, mas também não éramos velhos o suficiente para ligar. Eu varria o ar atrás dela, sem poder alcança-la. Meu ar se esvaia a cada passo e a cada passo ela ficava mais distante. Quando chegou na segurança do ponto, sacou a própria arma com ferocidade no olhar. Mas no fim perdemos ambos: existem esses tais motoristas que sempre sabem a hora exata de passar: naquele momento, quando eu estava quase a alcançando, passou o nosso, lavando com agua de enxurrada a calçada e tudo o que estava sobre ela: nós. Não foi assim que começou, mas foi a partir desse momento em que a nossa rivalidade com o motorista das seis chegou a um novo nível. Sorrio ao lembrar, porque essas eram outras histórias, de menor importância. Olho em volta: as árvores haviam sido impedidas de crescer, mas pareciam mais maduras do que antes. Já o asfalto tinha os mesmos buracos de sempre. Depois do banho, a gente acabou sentando no banco molhado mesmo. Não fazia diferença. Eu, também, me sento no banco molhado, como havia feito há tanto tempo, só que sem conversar: não havia mais ninguém por perto - não viria mais ninguém. Como a gente falou nesse dia... Por que ela não podia vir? Por que ela não pode se sentar comigo e...
Suspiro inutilidades
Houve aquele momento em que a gente parou de rir e se olhou, ela sorriu e piscou os olhos demoradamente. Se eu me lembro de seus olhos? Claro que lembro, mas com toda certeza você também tem esses olhos vivazes dentro de si, então por que me prolongar no assunto? O que aconteceu depois? Calma, eu explico. Ou tento, porque não é fácil falar dessas coisas. Mas é que às vezes, na curta eminência do momento que precede um grande acontecimento, quando o coração desritmado quase para e o estômago se aperta sem dó, a gente consegue até sentir o peso do tempo contra nossa garganta - fazendo ouvir o pulso, fechando o ar, então lhe perguntamos: "Será? Será? S...?" mas daí a gente pisca, o instante passa, o ar entra, o coração desfibrila e nada acontece. Não há resposta.
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