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História Soneto Proibido - LVII - Exposto e violentado.


Escrita por: larihexney

Notas do Autor


Olá, queridos! Cá estou eu com mais um capítulo de Soneto Proibido depois de três semanas.
Quero, antes de mais nada, dizer que o motivo da minha ausência se deve a um bloqueio criativo que, graças aos céus, eu consegui contornar. Eu queria muito entregar esse capítulo para vocês, então aqui estou em uma segunda-feira!
Julgo que esse seja o capítulo mais importante de Soneto Proibido. Preparem o coração!
Boa leitura! Nos vemos nas notas finais!

Capítulo 58 - LVII - Exposto e violentado.


A pergunta de tio Martim pairou no ar por um tempo, assim como qualquer palavra que pudesse ser utilizada para definir meu estado. Choque, estranheza, descrença... Nada galgava a proeza de descrever minha feição, porque simplesmente não havia um nome para a sensação que me acertou em cheio enquanto eu testemunhava o mundo parar por breves instantes. 

Por mais claro que ele tivesse sido e por mais rápido que meu raciocínio fosse, havia uma lacuna entre suas palavras e uma possível reação da minha parte que me custou tempo para assimilar o que tinha sido exposto pelo mais velho. Na verdade, dada a minha boca seca e o desconforto no corpo inteiro, não era nada como uma lacuna. Era mais como um abismo, que abriu brecha para uma sensação de golpeio no estômago e uma avalanche de pensamentos e sentimentos que me amorteceram ao mesmo instante em que me puxaram para um lugar de horror.

O medo foi o último sentimento que eu consegui registrar antes de não conseguir registrar mais nada. Mesmo porque, ainda que eu quisesse, suspeitava que não conseguiria explicar a expressão que cruzou meu rosto enquanto entendia, pouco a pouco, que meu tio sabia que Thomas era meu amante. Em um primeiro momento, cogitei até ter escutado mal, mas essa tentativa de ilusão não durou. Só foi preciso fixar meu olhar no sorriso maldoso que ele estava direcionando para mim para que fosse possível compreender que sim, ele sabia.

Ele jamais brincaria com isso se não soubesse. Ele jamais me olharia com tanta repulsa e soberba como me olhava agora se não tivesse certeza de que havia vencido um duelo cujo embate me foi negado. Ele detinha todas as armas, eu só não sabia como nem desde quando. E esse não saber aliado ao pavor que me dominou quando percebi que não conseguia reagir foi o pior que me aconteceu porque, se restasse alguma dúvida ao homem que havia sido responsável por mim após a morte dos meus pais, ela estava se esvaindo no meu silêncio.

Como um homem que precisava defender sua honra, proteger sua imagem máscula e guardar aquele segredo a qualquer custo, minha mudez não ajudou em nada. Pelo contrário, ela só antecipou o sentimento de culpa por uma razão que não consegui identificar, mas que notei que me afetou.

Senti-me de súbito sujo, abraçado novamente pela sensação estranha que senti pela manhã, ainda no Rio de Janeiro. Eu não tinha entendido antes, mas só podia se tratar de um presságio. Decerto, o aviso do meu próprio mundo ruindo bem diante dos meus olhos, de repente tornando tão plausível a melancolia que senti ao chegar e tornando acentuado o toque, o cheiro, o sabor e as imagens embaralhadas daquele que além de amante, era a pessoa que eu precisava defender de qualquer que fosse a sentença que meu tio estivesse disposto a dar.

O único problema, no entanto, era que a minha coragem estava tão escondida quanto a minha capacidade de reação. Paralisado como eu estava, as batidas desvairadas no meu peito só não zuniam mais alto no meu ouvido do que o som do receio de falhar. Se eu já não tivesse como me salvar, eu arrumaria um jeito de lidar com as consequências disso, mas se eu falhasse com Thomas eu não me perdoaria nunca. 

Com ele, não. Não depois de tudo que vivemos, não depois de tudo que enfrentamos e definitivamente não depois de eu estar certo de que ele era a parte mais fidedigna de mim.

Além do mais, eu já tinha lhe trazido muitos problemas com a nossa relação. Ter visto de perto seu sofrimento por minha causa, sua capacidade de abnegação pelo que ele julgava ser melhor para mim e todo o seu conflito interno que resultou na nossa noite de amor no dia anterior apenas me deu mais munição para não me permitir feri-lo mais de nenhuma forma. Só que agora, justo no momento em que eu necessitava agir, eu me sentia perdido. Desejoso, mais do que tudo, que a coragem inflamável de Thomas me encontrasse e que eu pudesse reparar aquela situação antes que fosse ela se tornasse irreversível.

— Eu lhe fiz uma pergunta, sobrinho. – Tio Martim voltou a falar, rompendo a quietude na sala. — Onde está seu amante? Ele deveria estar aqui, não é verdade? – Insistiu em questionar, levando-me a encará-lo.

Seu tom irônico e o brilho divertido nos seus olhos fez algo dentro de mim despertar. Possivelmente a raiva, mas, ainda que não fosse, o que quer que tenha sido foi útil e forte o suficiente para que me chacoalhasse, uma vez que me induziu a abrir a boca.

— O senhor está enlouquecendo, titio! – Acusei, mal reconhecendo a minha voz transtornada e com menos convicção do que pretendia. — Como tem o despautério de me desonrar desse modo na minha casa? – Disparei, elevando o tom a cada palavra proferida.

Uma longa e estridente gargalhada preencheu a sala. Eu olhei desconcertado para o meu entorno, encontrando Gregório pálido como papel, fitando-me com incredulidade. Ele não precisou dizer nada para que eu soubesse que ele não tinha relação alguma com a descoberta do meu tio. Sua postura derrotada me fez saber e me levou a uma aceitação forçada de aquele problema precisava ser resolvido exclusivamente por mim. Sendo assim, com o intuito de aliviar sua feição assustada, eu meneei discretamente a cabeça em sua direção, sentindo meus lábios fecharem em uma linha quando meus dentes se chocaram uns contra os outros, trêmulos, assim que assumi uma postura rígida e voltei a me virar para enfrentar meu tio.

— Tio Martim, eu não sei de onde veio essa ideia sua, mas independentemente da origem, eu acredito que esse não é o lugar apropri...

— Eu sabia que você tentaria negar, Lucca. – Ele me interrompeu com um humor cortante. — Mas eu nunca diria algo tão sério a seu respeito sem provas, meu querido sobrinho. Eu não sou injusto. Você deveria saber disso.

— Eu não sei do que está falando. – Continuei mentindo, sentindo um nódulo imenso se formar na minha garganta enquanto eu me obrigava a erguer o rosto para o encarar.

— Não seja ridículo, Lucca! Além de ser inútil, negar só te faz parecer bobo e mais patético do que você já é. – Disse, sua voz outrora divertida dando espaço para um tom de profundo desgosto. — Faz com que se assemelhe ao degenerado que você é. – Concluiu, enfim deixando escapar todo o seu desdém.

Eu dei um passo para trás, instável sobre os meus próprios pés. Involuntariamente, minha boca se abriu com o insulto e eu senti meu peito doer como se tivesse acabado de ser atingido ali. E, de fato, tinha. Não que eu nutrisse as melhores impressões do meu tio ou esperasse acolhimento da sua parte, mas ouvir que eu era um degenerado da boca da pessoa que mais se aproximava a uma figura paterna na minha vida simplesmente me dilacerou. Sem nenhum aviso ou rastro de razão. Apenas o fez e me deixou atônito por uns segundos até que eu fosse atingido outra vez.

— Você não vai querer saber como eu descobri? Eu quero muito te contar para que você veja o quão fácil é te desvendar, Lucca. – Disse, apoiando-se na sua bengala. Quando viu que eu nada tinha a dizer, riu cinicamente e suspirou. — Você deveria ter me contado antes que iria fazer negócio com o marquês Caldeira. Se tivesse me dito previamente, eu jamais descobriria seu segredinho sujo, sobrinho. Ainda que eu tivesse ciência de que você era um homem sem virilidade, jamais pensei que se deitasse com outro homem como se fosse mulher. – Completou, rindo para me desestabilizar, mas parando ao parecer lembrar de algo. — Por acaso Gregório sabia disso? Eu acho que falei alto demais... Há problema ou ele também, além de seu assistente, é seu amante? – Indagou, seu tom malicioso provocando a ira no meu âmago.

Que ele se achasse no direito de me repreender eu conseguia entender, mas de colocar Gregório naquela história... Não. Aquilo era demais, mesmo para ele.

Aquilo era demais para mim.

— Titio, eu acho melhor o senhor medir as suas palavras! – Elevei minha voz, fazendo menção de subir os degraus que nos separavam.

— Ei, ei, ei! – Gritou, erguendo a bengala por breves segundos, impondo-nos distância. — Não seja mal educado, Lucca. Se não quer responder, deixe-me pelo menos contar a história da minha descoberta. Eu aposto que você está curioso, não está? 

Incapaz de me manter impassível ao seu cinismo, eu pus um pé no degrau da escada, mas Gregório foi mais ligeiro ao me puxar pelo ombro. Como reflexo, eu dei uma cotovelada em sua barriga, fazendo-o me soltar de imediato e contorcer-se em dor. Tomado pela raiva, vergonha e humilhação, eu nem mesmo olhei para trás. Tão logo subi um outro degrau, mas antes mesmo que os meus dois pés o pisassem, a voz de tio Martim voltou a ecoar no espaço.

— Ana Clara, venha aqui! – Chamou ele em voz alta.

No mesmo instante, eu me vi recuando e o fitando completamente descrente. Ele poderia estar decepcionado comigo, poderia me odiar e até mesmo me desmoralizar, como estava fazendo, mas envolver Ana Clara nisso era jogo sujo. Era golpe baixo. Golpe de gente pequena, mesquinha. Articulação de uma pessoa no mínimo egoísta o suficiente para entender que aquilo não atingiria só a mim, mas a mulher que ele evocava também.

Eu não pude, aliás, eu não quis acreditar que ele estava mesmo prestes a fazer o que estava ameaçando fazer. Por isso, eu busquei os seus olhos, numa espécie de suplício e de esperança de que houvesse alguma piedade lá, algum rastro de compaixão. Todavia, quando tudo que enxerguei foi uma íris gélida me olhando como se não suportasse a minha imagem, eu senti verdadeiramente o peso do que estava acontecendo. 

Tio Martim não estava apenas reagindo mal por descobrir meu relacionamento com Thomas. Ele estava utilizando-se disso para expressar todo o menosprezo que sentia por mim há muito tempo. O olhar que me lançava não continha apenas despeito e depreciação, como também esbanjava rancor. Eu não sabia a motivação, mas compreendi que tal sentimento não era novo. 

Afinal, não era de hoje sua constante tentativa de controle da minha vida disfarçada de boas intenções para com as minhas finanças e minha respeitabilidade social. Não era de hoje seus desacatos às minhas ordens, seu desmerecimento às minhas conquistas, seu desrespeito às minhas decisões e sua invasão na minha privacidade. Não era de hoje que ele me apontava como fraco, desprovido de inteligência e não ambicioso. Não era de hoje que ele anulava as minhas individualidades e projetava todos as suas expectativas sobre mim.

O desprezo de tio Martim por mim há muito, talvez desde sempre, foi sutil e frequente. Eu somente não sabia como não tomei nota disso antes. Não sabia como pude acreditar que ele, por debaixo de todas as camadas de orgulho, rigor e ambição, tivesse alguma espécie de apreço – por menor que fosse – por mim. Talvez a minha visão dele, no fundo afetuosa, apesar de todos os pesares, tivesse me cegado. Talvez a minha vontade de acreditar que existia algo além do interesse nos meus bens tivesse sido maior. 

De qualquer maneira, aquilo não importava no fim. Era tarde demais porque foi cedo demais que a silhueta de Ana Clara surgiu no topo da escada e me fez fincar os pés no degrau em que eu estava, totalmente em pânico.

— O senhor não pode fazer isso. – Eu ainda disse em um sussurro, quando Ana Clara desceu as escadas com a cabeça baixa até parar um degrau acima de tio Martim.

A postura da minha esposa, sempre impecável e bela, estava incomodamente desleixada, ainda que não fosse por sua aparência. Com o cabelo preso e usando um dos seus vestidos mais bonitos, ela parecia tão elegante como sempre, à exceção das suas mãos recolhidas atrás de si e da cabeça que não foi erguida sequer uma vez em minha direção. Eu não podia ter certeza, mas ela aparentava ter o rosto inchado, o que só aumentou cerca de dez vezes mais a minha pressão arterial.

— Querida, você está bem? – Eu perguntei, tentando me aproximar dela, mas sendo impedido pela mão de tio Martim, que apertou o meu braço antes que eu pudesse antecipar sua ação.

Minhas narinas rapidamente inflaram e meu cenho vincou com a ousadia do seu ato.

— O que você disse que eu não posso fazer, Lucca? – O mais velho provocou. — Porventura está com medo de algo? – Franziu o cenho, fingindo-se de desentendido.

Sentindo o meu sangue ferver, eu fechei os olhos por um segundo, silenciosamente pedido a Deus para que ele parasse com aquele espetáculo maldoso antes que eu começasse a me portar mal.

— Saia da minha frente, titio. – Exigi entredentes, tentando manter meu timbre estável. — Ana Clara é minha esposa. Ela não precisa se desgastar dando ouvidos às suas suposições descabidas e absurdas. Nós dois continuaremos nossa conversa em outro lugar.

— Suposições, sim? – Ele sorriu, exibindo sua fileira de dentes amarelados e fazendo pouco caso da minha última frase. — Está certo disso? – Indagou, fazendo-me inalar profundamente.

— Titio, faça o que eu estou te pedindo... Saia da minha frente. – Ordenei, encarando-o vigorosamente com o fito de avisá-lo que aquela seria a minha última solicitação educada. 

Eu esperei por trinta segundos completos e cronometrados mentalmente. Quando ele não se moveu, eu olhei para Ana Clara, ainda naquela posição submissa, claramente à mercê do outro. Eu não sabia o que ele já havia dito para a envenenar contra mim, mas desejava que fosse tudo, menos a verdade.

Não podia ser a verdade porque eu ainda não estava preparado para lidar com a versão feia da minha história com Thomas. Eu não estava preparado para ver a minha esposa, a mulher que eu não tocava há diversos meses, me rejeitar. Não estava pronto para testemunhar sua dor, tampouco para encarar a minha responsabilidade por ser o único motivo do seu sofrimento. Não estava, sobretudo, pronto para confrontar o meu lado covardemente egoísta, que justificou durante todo esse tempo a minha negligência a ela como algo necessário e em prol do meu amor pelo outro.

Sendo honesto, se eu pudesse, a pouparia de tudo e continuaria deixando-a alheia a minha relação com Thomas. Em primeiro lugar, porque sim, eu era covarde demais para me submeter a seu repúdio e ainda mais egoísta para querer abrir mão do respeito e admiração que eu sabia que ela sentia por mim. Em segundo lugar, porque eu não sabia como dizer. E em último, porque eu tinha certeza de que saber que seu marido era um pederasta a destruiria.

E, Deus, eu não queria isso. Eu não queria torná-la infeliz pelo resto da vida.

Apesar de não termos nos casado por amor, eu tinha ciência de que ela tinha aprendido a me amar. E, por um tempo, eu cheguei a pensar que fosse capaz de amá-la também. Todas as noites, ao me deitar com ela, eu tentava me convencer de que envelheceríamos juntos e de que seríamos felizes. Eu tinha esperança de que, cultivando nossa relação, eu fosse conseguir fazer surgir um sentimento que me preenchesse, que me acalentasse e me deixasse satisfeito, evidentemente sem saber que o sentimento que eu buscava não só preenchia, acalentava e satisfazia como também enlouquecia, extrapolava e fazia arder o peito por ser em demasia. 

Então, quando eu experimentei tal sentimento, percebi que ele não só era mais do que eu buscava como também era natural e imprevisível, o que só demonstrava que por mais que eu chegasse a amar Ana Clara como desejava antes, eu jamais a amaria dessa forma genuína e fluida. Não por erro meu ou por falha dela, mas porque ela apenas não era a pessoa que me despertava esse amor.

Essa pessoa era Thomas.

Ana Clara me despertava ternura. Eu era afeiçoado por ela, a estimava em excesso, mas não a desejava como mulher. Ela sabia disso, ainda que eu nunca tivesse precisado vocalizar tais palavras, pois era fácil subentender. Em contrapartida, saber que eu sentia por outra pessoa tudo o que deveria sentir por ela e adivinhar que eu me relacionava com um homem não era prático de compreender, assim como não era prático de fazer parar de doer. E eu temia por isso. Temia que ela ficasse arruinada pelo resto da vida e se tornasse uma mulher amarga como sua mãe, que vivia como uma parasita, ligada unicamente aos valores materiais.

Eu nunca havia sofrido uma grande decepção antes, mas tinha noção dos impactos que uma poderia causar. E naquele preciso instante em que eu estava ali, tentando me aproximar da minha esposa e sendo impedido pelo meu tio, eu percebi que meus temores estavam sendo realizados, um a um. Consegui entender isso porque quando estiquei meu braço um pouco mais para tocar Ana Clara, eu a vi se desviar de mim com a pressa em sua ação, como se meu toque a machucasse. E, pela sua expressão, ainda não totalmente visível para mim, o motivo de seu afastamento envolvia uma profunda dor.

A dor, inegavelmente, de alguém quebrado.

Foi então que eu recuei, arrasado. Emudecido, eu fixei meu olhar em meu tio, que tinha um sorriso insuportável no rosto enquanto se vangloriava.

— Como vê, sua esposa não quer que você se aproxime, sobrinho. – Ele disse, abrindo a mão livre como se me apontasse algo óbvio. Como era maldito!  — Ela foi a primeira pessoa que viu a encomenda que Xavier mandou.

Paralisei imediatamente.

Ele havia dito o nome de Xavier?

Prontamente meu cenho franziu. A curiosidade e a revolta se alastrou por todo o meu rosto de tal forma que eu não consegui evitar deixar meu queixo cair em espanto e confusão enquanto sentia o esforço que minha mente fazia para tentar encontrar lógica no que Martim estava me dizendo. E ela falhou, pois quanto mais eu pensava, mais minha cabeça doía, visto que não havia sentido naquela história. Tudo que eu conseguia deduzir parecia loucura, afinal, eu tinha conhecido Xavier no Rio de Janeiro por acaso, ele era um hóspede assim como eu e só passamos a conversar porque eu achei sua carteira caída na escada e a devolvi. Em nenhum momento eu comentei sobre minha família, em nenhum momento eu lhe dei abertura da minha vida. Então, não era possível que ele conhecesse meu tio e lhe enviasse...

Que diabos?

— A que encomenda está se referindo? – Eu quis saber, alarmado.

Tio Martim riu, como se eu tivesse perguntado exatamente o que ele queria. Em sequência, moveu seu corpo na direção de Ana Clara e ordenou:

— Querida, mostre-lhe. 

Desconfiado e ansioso, eu lentamente subi meus olhos para assistir a baronesa trazer suas mãos à frente do seu corpo e, enfim, volver o seu olhar para mim. A dor lá me perturbou. Seu olhar estava opaco, pesado e totalmente sem vida. O único brilho ali era o vislumbre de uma lágrima que ela impediu de se formar por completo devido a sua agilidade em virar para o lado e erguer suas mãos para mim, entregando-me o envelope que segurava. 

Eu hesitei, reunindo algum vestígio de coragem e engolindo em seco antes de tomá-lo em minhas mãos. Não demorei a notar que pelo volume se tratava de algo em papel, o que me deixou ainda mais apreensivo. Cheguei a olhar para Ana Clara mais uma vez, mas quando ela fez questão de não cruzar nossos olhares, eu respirei fundo e enfim abri o envelope para encontrar uma sequência de fotografias que me deixaram sem fôlego.

— Xavier deve ter lhe contado que é um artista e tem se arriscado com as fotografias ultimamente, não é, Lucca? – Tio Martim perguntou. — Ele me contou por telefone que não pôde evitar registrar uns momentos íntimos seus. Eu quis que ele compartilhasse comigo e... Veja só, essas fotografias ficaram esplêndidas! Jamais pensei que você fosse um exibicionista, sobrinho. Eu estou certo de que...

Martim continuou a falar, mas eu não lhe dei ouvidos. Em vez disso, chequei as fotografias. A primeira era uma paisagem linda de uma praia do Rio de Janeiro. A segunda era uma foto mais perto do mar. A terceira era uma foto com um homem agachado próximo a água que, segundos depois, eu identifiquei que se tratava de mim mesmo. A quarta foto tinha dois homens, eu e Thomas, conversando próximo ao mar, exalando uma intimidade e alegria perceptível mesmo no registro sem coloração.

As imagens me deixaram instantaneamente aflito. Recordei dos pés sujos de areia de Xavier no dia em que descobri que ele estava mentindo para mim, sua pressa para ir até a cabine do telefone antes de eu tê-lo visto e seu esquecimento do que iria fazer depois da nossa conversa. Pouco a pouco fui finalmente encaixando as peças, permitindo que a constatação de que eu era um tolo me consumisse. Nem por um momento eu pensei que ele me oferecesse alguma ameaça além do seu interesse óbvio por Thomas.

Totalmente tenso, eu inalei o ar com dificuldade, sabendo o que vinha a seguir, uma vez que as memórias começaram a vir à tona. A quinta fotografia, como eu suspeitava, mostrou Thomas deitado em cima de mim na areia, capturando o momento em que o mais novo tinha me derrubado próximo a água, na tentativa de me fazer entrar no mar. A sexta imagem era ainda mais sugestiva, já que tinha flagrado ele sentado no meu colo enquanto tentava se apoiar para levantar. Lembrei que, naquele instante, ele tinha ficado tímido pela posição e eu tinha achado graça da situação, mal sabendo que aquele segundo estava eternizado em um papel.

As fotografias seguintes mostravam eu pulando em suas costas, nós dois nos banhando no mar e, em seguida, ambos sentados na pedra, conversando. Felizmente, as imagens ali não revelavam nada, pois aparecíamos de costas em todas elas. Tendo isso posto, eu estava quase me agarrando a esse fato para tentar construir um argumento de defesa, quando me deparei com a última fotografia. 

Meu pulso disparou.

Diferente das demais, esta derradeira tinha nos capturado de rosto, possivelmente depois de Thomas ter se levantado e sentado novamente em um outro lugar na pedra, logo após seu descontrole em função da nossa discussão. De longe, via-se que era a fotografia mais bonita registrada naquela sequência. Tinha sido tirada de um ângulo que abarcava o mar, nossas costas e nossos rostos visíveis de lado, enquanto eu tocava o ombro do mais novo e o encarava. Por mais comum que pudesse parecer pela descrição, aquela imagem nos denunciava na minúcia dos detalhes.

O modo como eu segurava o ombro de Thomas, a inclinação do meu rosto que praticamente nos deixou boca a boca, o jeito como nos encaramos naquele segundo... Tudo cooperou para que não restasse dúvida da nossa intimidade. Tudo ajudou a nos delatar e, enfim, a retirar o véu que nos acobertava e não nos expunha como os amantes tórridos que éramos. Agora, era visível aos olhos de quem tivesse acesso àquelas fotografias o que eu e o mais novo compartilhávamos. Não só apreço, cumplicidade e desejo, como também uma cama. Não era preciso nos fotografar em um quarto para chegar a uma conclusão como aquela. A imagem dizia absolutamente tudo.

E, ironicamente, deixou-me com uma sensação de um enorme nada. 

— Bem, bem, bem, bem... – A voz de Martim irrompeu, séria, sua figura me mirando enquanto meus olhos ardiam, assim como o meu rosto. — Eu mal pude acreditar quando vi. Fantásticas as fotografias, não acha? – Questionou, cínico.

Balancei a cabeça, desolado. Minha pele pinicava e minha visão começou a ficar turva diante da incontrolável vontade de chorar que me acometeu por tamanha frustração que sentia. Uma miríade de sensações me alcançaram ao mesmo tempo, dando-me a certeza de que eu não estava apto para lidar com o que estava acontecendo. Não por ter sido pego de surpresa, mas porque eu suspeitava que ninguém nunca estaria pronto para ser exposto e violentado daquela maneira, tendo sua privacidade invadida, o controle da sua vida perdido e sendo vulnerabilizado e culpado daquele jeito por algo que não era possível de ser controlado.

Naquele minuto, eu me senti suscetível como nunca antes, de forma tal que não consegui mais me conter.

— Por que está fazendo isso? – Eu perguntei, não aguentando mais. — Por que está me expondo desse modo? Por que tanto ódio? Por que tanto desprezo? – Balancei a cabeça, encarando meu tio sem conseguir o reconhecer. 

— Não que eu lhe deva satisfação, mas eu posso dizer que você apenas estava no meu caminho, sobrinho. É simples. – Respondeu, dando de ombros. — Veja só, meu atual sócio queria fechar um negócio com o marquês. O marquês fechou um negócio com você. Meu sócio me pediu para impedir seu negócio com o marquês e eu logo contatei Xavier, filho de um grande amigo meu que se mudou para o Rio de Janeiro há algumas décadas. Inicialmente, o plano era apenas impedir você de firmar contrato com o marquês, mas logo Xavier, que é tão promíscuo quanto você, notou que havia algo de distinto com o fedelho sodomita com quem você se deita. Então, eu pedi para ele ficar de olho em ambos e ele assim o fez até o dia em que capturou essas imagens. Fim da história. – Resumiu, seu tom exultante me causando arrepios.

Como eu pude me enganar por tanto tempo, meu Deus?

Antes que eu tivesse tempo para me torturar, um soluço desviou minha atenção para além de meu tio, onde pude encontrar Ana Clara chorando deliberadamente no degrau acima. Suas mãos tremiam enquanto tentavam limpar seu rosto inconsolável. A tristeza irradiada em sua face e toda a cena me consternou de tal forma que eu não pude evitar deixar as lágrimas rolarem pelo meu rosto também 

Eu tinha errado muito com ela e não tinha como reparar isso. Não havia nenhum jeito de voltar no tempo e agir de outro modo. Não havia solução para a ferida que lhe causei e só Deus podia medir o meu desalento por isso. Se eu pudesse, jamais teria me casado e a submetido àquele sofrimento. Mas eu não podia mudar o que tinha acontecido. O que me restava era apenas tentar obter o seu perdão e foi isso que eu fiz.

— Permita que eu me explique, querida. Perdoe-me, por favor... – Eu pedi em um murmúrio, buscando seus olhos.

— NUNCA! – Ela gritou, em prantos. — Como pôde me humilhar dessa maneira, Lucca? Como? Eu sempre fiz tudo para te agradar, sempre te respeitei, sempre te apoiei...

— Eu sei, querida! Eu sei! – Eu disse, empurrando com força o braço que Martim insistia em colocar na minha frente e indo em direção a ela na escada.

— Não se aproxime de mim! – Ela vociferou, subindo mais um degrau. — Eu nunca exigi nada de você, Lucca. Nada além de respeito. Quando nos casamos, ficou selado perante a Deus e toda a sociedade que isso era o mínimo, mas nem mesmo o mínimo você conseguiu cumprir. – Disparou, seu tom exalando ressentimento ácido. — Eu odeio você com todas as minhas forças. Odeio dividir o mesmo nome que o seu. Odeio ter tido o infortúnio de me casar com um invertido. Odeio o fato de um dia ter me deitado ao seu lado em uma cama... – Ela tomou fôlego, limpando uma lágrima antes de concluir. — E odeio, ainda mais do que tudo, um dia ter conseguido amar você, porque, hoje... Hoje eu só consigo te abominar. 

Tendo finalizado, ela subiu as escadas correndo e eu tentei ir atrás, mas as mãos de Gregório agarraram o meu braço rapidamente, detendo-me.

— Por favor, barão. – Ele pediu, fitando-me com cautela. — Agora não. Vocês dois precisam estar calmos antes de conversar. Dê um tempo a ela. – Aconselhou enquanto me puxava para baixo. 

Sem forças para relutar, eu desci degrau por degrau completamente zonzo, sendo sustentado pelas mãos do meu amigo. A dor que atravessava o meu peito estava tão intensa que eu só queria um lugar para sentar antes que meus joelhos cedessem e eu apagasse. Todavia, antes que eu conseguisse percorrer o caminho até o assento mais próximo na sala, a voz asquerosa de tio Martim voltou a se fazer ouvida.

— Nós ainda não concluímos, sobrinho. – Ele disse assim que eu virei para encará-lo, tendo Gregório ainda do meu lado. — Nós ainda não negociamos. 

— Martim, por favor, agora não! Lucca precisa se recompor. – Meu amigo interviu, firme.

— Eu quero que você demita Gregório, Lucca. – O mais velho disse, ignorando por completo o homem ao meu lado.

— Como é que é? – Eu perguntei, franzindo o cenho em confusão. Ele só podia estar ficando louco. — Muito me admira que você pense que eu vou fazer alguma vontade sua depois de tudo o que fez.

— Oh, você vai, sobrinho. – Ele riu, descendo as escadas para se aproximar. — A menos, é claro, que você queira que essas fotografias cheguem à diocese e sejam colocadas nos jornais. – Deu de ombros com sua expressão descarada totalmente segura. — Imagine só o escândalo nessa cidade! Todos comentando que o barão Vasconcellos é, na verdade, uma baronesa! – Divertiu-se, abrindo um largo sorriso. — Imagine só como não ficaria com a reputação manchada. Ouso dizer que chegaria a perder seu título, Lucca. Agora... Já pensou como ficaria o fedelho sodomita? Destruído, coitado, teria que ser preso. Isso, é claro, se ele não for condenado à forca. Ou será que ele já está morto à essa altura? O pai dele parecia bem zangado depois de ver essas fotografias, sabia? Acredito que não gostou muito de saber que o filho é um libertino invertido. – Refletiu, sarcástico.

Toda a ira contida em mim subiu à superfície no mesmo instante. Se eu tinha ouvido bem, ele estava me dizendo que havia mostrado aquelas fotografias a Eliseu, o pai de Thomas... Era isso mesmo?

— Você não fez isso... – Eu disse, dando um passo em sua direção. — Diga-me que não fez. Diga que isso é mentira. – Ordenei, parando em sua frente.

— Se quiser, pode ver com seus próprios olhos. – Falou, inabalável zombeteiro.

Eu não pude me controlar mais.

— Seu velho maldito! – Bradei, avançando sobre o seu colarinho ao mesmo tempo em que derrubei sua bengala, deixando-o totalmente em desfavor. Descontrolado, sacudi seu pescoço, apertando o tecido das suas vestes com eloquência. — Ouça-me, desgraçado, se alguma coisa acontecer com Thomas, se um fio de cabelo dele estiver fora de lugar, se ele estiver com um arranhão que seja...

— Lucca, pelo amor de Deus, contenha-se! – Gregório clamou, tocando o meu braço.

Ignorei-o.

— ... eu juro por Deus que eu...

— O que você vai fazer? – Martim riu, sua voz soando impassível. — Vai me matar? Não, não. Você é covarde demais para isso, sobrinho. – Apontou, convicto. —  E está sem saída. O que te resta é fazer o que eu mandar. E a primeira coisa... – Ele começou, olhando de soslaio para a minha mão próxima ao seu pescoço. — ... será me soltar. A segunda será demi... Oh, não! Tive uma ideia ainda melhor. Você pode ficar com seu assistente imbecil se quiser, contanto que você esqueça o outro.

Esquecer o outro?

— Eu quero que você rompa o que quer que tenha com o fedelho pobretão. – Explicou, fazendo com que minhas mãos o soltassem imediatamente tamanha era a minha incredulidade. — Depois, eu quero que você o mande para bem longe, isto é, se o pai dele já não tiver dado um trato nele. – Soltou um riso anasalado, incitando um ódio que eu nunca tinha sentido antes. — E em troco do meu silêncio, você me dará autonomia total sobre as finanças e me deverá plena obediência daqui por diante. Isso inclui, aviso desde já, o desmanche do seu contrato com o marquês.

Inacreditável... Eu não sabia como eu ainda não tinha acabado com a sua vida diante do ódio que estava sentindo. Provavelmente havia alguma razão dentro de mim que me impediu e eu não abusei da interferência divina. Controlando-me, passei as mãos no cabelo, no rosto, enxuguei uma lágrima que ainda estava úmida sobre a minha pele e então me dirigi a ele:

— Esse é seu preço? – Eu indaguei com dessabor.

— Sim. Simples, não? 

Sim, era simples. Era simples porque se era dinheiro que ele queria, eu poderia lhe dar. Quanto a Thomas, nós já havíamos rompido. Mandá-lo para longe não seria um problema se eu quisesse. Inclusive, tal medida nos pouparia de maiores transtornos. Se eu fizesse tudo como meu tio desejava, eu conseguiria reverter minha situação com Ana Clara, conseguiria manter meu cargo, meu título e ainda salvaria Thomas de julgamentos alheios. Tudo isso por um preço razoável.

— Muito simples. – Eu respondi, encarando-o. — Considere-o feito. 

— Excelente! – O mais velho comemorou. — Eu sabia que você cairia em si! Você não se arrependerá, sobrinho. – Disse, ainda com sua face ardilosa me encarando. — Isso merece um brinde, sim?

— Sem sombra de dúvidas. – Eu disse, inexpressivo. — Mas antes me conceda um minuto.

— Sem problemas. Eu tenho mesmo que despejar Antônio dessa casa o quanto antes. – Ele disse, claramente me desafiando.

Eu não disse nada para o contrariar.

Satisfeito, ele subiu as escadas, indo em direção ao corredor que dava acesso ao quarto em que Antônio estava alojado. No segundo em que ele desapareceu, Gregório se voltou para mim:

— Você vai mesmo ceder às ameaças do seu tio? – Questionou, estarrecido.

— Isso não é assunto para agora. – Respondi, sentindo-me louco. — Preciso que me ajude.

— Claro que sim, mas como?

— Vá checar Thomas. Agora. Pelo amor de Deus. – Praticamente supliquei e ele assentiu sem nem mesmo esperar que eu concluísse.

Assim que ele saiu, eu fui até o escritório, apanhei um papel e uma caneta e me pus a escrever uma carta. Eu ainda não sabia o que faria para solucionar todos os problemas que tinham acabado de cair no meu colo, mas sabia que se meu tio queria negociar comigo, ele precisava estar pronto para as cláusulas do nosso contrato.

Eu não deixaria para trás nenhuma ressalva. Afinal, quanto antes ele soubesse o tamanho da briga que estava comprando, mais cedo a guerra que eu estava prestes a travar se findaria.

E eu não estava disposto a perder nem que isso me custasse a vida.


Notas Finais


Gente, que dor que eu tô sentindo por Lucca :(
Tanta coisa aconteceu! Martim se revelando, Ana Clara revoltada (e com razão), Thomas sob ameaça...
Eu vou ficar doida se vocês não souber a opinião de vocês!
E, ó, fiquem firmes, meus queridos! Thomas e Lucca vão precisar da torcida de vocês!
Se cuidem, cuidem dos seus e até a próxima! Beijo grande! 😘


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