Era uma linda tarde de carnaval ensolarada. O povo reunido, as fantasias esvoaçantes, o trio elétrico cantando "joga a mão pra cima" e um arrastão nos arredores deixava todo o ambiente propício para a diversão. Mas Maurílio estava desenxavido, quiçá mesmo jururu, junto ao seu copinho de corote. Estava um calor digno da Kombi estacionada no sol no bloco e tocavam os hits do verão brazuca para todos os contempladores da cena musical carioca.
O motorista cineasta estava lá para apreciar o icônico carnaval do Rio de Janeiro com sua indefectível fantasia de Garota Dinamarquesa. Contudo, todos com quem tentava interagir pareciam ignorar ou mesmo perder a referência, levando-o a questionar sua escolha de figurino. Maurílio viu que era apenas mais um homem vestido de mulher tal qual um mero qualquer dentre os que sequer haviam se atentado para o uso adequado da arte da maquiagem.
Flashback para quando ele tinha ido até o bloco com a companhia de seu amigo Renan. Estavam animados para a possibilidade de curtição e azaração no cenário carnavalesco, mas de súbito Renan teve que voltar correndo para casa porque o filho dele engoliu uma máscara de carnaval e estava tossindo purpurina sem parar, demandando intervenção médica. Assim, nosso amigo condutor viu-se largado na rua lotada a pé como um maldito pedestre, e todas suas tentativas falhas de retomar o script inicial de seu divertimento eram peripécias em seu screenplay triste com cenografia agitada, deixando-o como um Pierrot ao som de “tô sarrando em você mentalmente” e demais canções afins.
O cenário era lindo a sua volta, porém era desolador por dentro, tal qual um motor afogado. Sentou por ali mesmo no meio fio da calçada, porém o risco de ser pisoteado pelos foliões ou ainda ser atropelado pelo próximo trio elétrico não valia a pena. Queria sair dali, fugir para outro lugar (baby), mas não conseguiria andar tão rápido com o salto alto que usava. Tudo o que Maurílio dos Anjos queria era dar um beijo desses de cinema em uma mulher linda, poderosa e independente na casa dos seus 60 anos. Levá-la para passear de Kombi e quem sabe descobrir os segredos tão habilmente cantados por Sérgio Reis, se de fato é panela velha que faz comida boa.
Maurílio levantou-se abruptamente, e ali, da área um pouco mais afastada da baderna onde estava, decidiu que mesmo um carnaval assim, um pouco pra baixo em sua percepção, tinha algo de poético. Admirou a fotografia da muvuca com a distância crítica exigida de um verdadeiro adepto (por enquanto amador) e admirador da sétima arte, tentando brevemente enquadrar a cena com os indicadores e os polegares e desistindo ao ver que teria que largar ou até mesmo arriscar derrubar algumas gotas preciosas de seu drink Le Coroté Mendigué, possivelmente maturada por alguns dias em um luxuoso tonel de alumínio.
Em outro canto daquela bandalheira toda, alheio ao drama existencial que ocorria não tão longe dali, uma figura trajada de camiseta regata e bermuda de tactel andava pelo meio da multidão, um pouco confuso em relação à velocidade de sua embriaguez. Após tantos anos de treino hepático era realmente atípico que só meio litro de uísque fosse capaz de deixá-lo assim, com a cabeça leve e o os movimentos corporais soltos e leves, tão rapidamente. Devia tá batizada, essa porra; bem que ele havia achado estranho uma garrafa de legítimo Jeca Daniel custar apenas vinte reais. Sua lataria era de primeira (e estava sendo tunada desde sua parceria com a loja de suplementos do bairro) e seu motor só recebia álcool de primeira, Roskoff pra cima, então esse combustível adulterado causou uma série de atividades estranhas em sua rebimboca da parafuseta. Talvez o melhor a se fazer fosse sair dali e procurar um lugar mais ventilado, caso fosse necessário descarregar.
Avistou de longe, ainda dentro mas quase saindo do mar de gente, uma delicada figura com trajes modestos porém que revelavam todo seu esplendor. Ela parecia admirar a multidão com olhos atentos e reflexivos, o que apenas a deixava mais linda. Uma verdadeira tetéia, a dama de primeira ali no meio de todas aquelas roupas de banho de fita isolante. Julinho precisou lembrar de todos seus anos de prática, incluindo o intensivão na época da catequese, para tomar coragem de chegar mais pertinho e perguntar para aquele chuchu, aquele pãozinho de alho, o motivo de sua quietude em um lugar feito para meter o louco e ficar doidão do cu.
Conforme se aproximava, pode notar que no rosto delicado havia a sombra de uma penugem facial, o que indicava que talvez sua fantasia talvez fosse de mulher barbada ou que ela era nativa e residente de Jacarepaguá, onde mulheres com bigodes mais grossos que o seu próprio são uma visão comum.
Maurílio refletia sobre o uso de figurantes em Lawrence da Arábia, um clássico de belíssima fotografia e efeitos práticos infelizmente esquecido pelo grande público e sua relação com o momento atual da crise do oriente médio, quando ouviu uma voz familiar chamá-lo de forma grave e aveludada, um tom que nunca antes havia ouvido direcionado a si.
"E aí, morena? Tudo bom contigo, algum otário fez alguma merda pra te chatear?" Julinho perguntou, soando atento e preocupado, e Maurílio apenas balançou a cabeça em negação. "Qual é a sua graça, gatinha?"
Maurílio virou-se para Julinho, franzindo, tentando vislumbrar algum traço jocoso típico no rosto do piloto urbano, mas tudo o que via era Julinho dentro de seu espaço pessoal, breaco de bêbado e com um sorrisinho debaixo do bigodinho de bicheiro de quem achava que estava arrasando com o mulherio, humildade acima de todos.
"Não tá me reconhecendo mesmo, Julinho?" Maurílio levantou uma sobrancelha, as mãos na cintura.
Julinho deu um passo pra trás, acuado, o coração acelerando como sua van fez semana passada quando perdeu os freios em plena Dutra. Aliás, Renan tem razão, dá pra dirigir com três rodas tranquilaço.
Onde é que a gente tava?
Opa.
Maurílio encarava de volta enquanto Julinho ficou bem uns cinco segundos em ponto morto olhando pra ele, antes de tornar a falar, aquela expressão que ele via em artistas de boteco lembrando da fala.
"Ô, morena," Ele deu uma ronronada que acreditou ser bem de um Mustang" eu acho que lembro do seu rostinho de algum lugar, mas você me desculpa, é vinte passageiros por vez na minha sprinter todo dia..."
Agora Maurílio tinha certeza que Julinho estava tentando lhe mandar um migué. Só vinte passageiros por vez em van é só na Noruega e papo de homem cuidadoso pai de família é pra pegar mulher. Então abriu um sorriso que acreditou, diga-se de passagem, estar monalísico. Veio à sua mente inspirações de clássicos como Mulan, Se eu fosse você e mesmo adaptações de grandes clássicos como Grande Sertão: Veredas, no papel inverso de Diadorim. Vislumbrou a possibilidade de efetivamente atuar em seu próprio live action, junto com a possibilidade de tirar uma onda da fuça do Julinho pro resto da vida dele.
"Não, acho que você nunca me viu, mesmo. Só estava em casa quando você parava com a van na frente de casa quinta pra você e meu irmãozinho querido irem pra algum lugar." Ele ofereceu a mão a Julinho para ser beijada. "Meu nome é Amanda dos Anjos."
Julinho mal podia acreditar que aquela era a irmã de Maurílio!! Aliás, como assim Maurílio tinha uma irmã e nunca apresentou?? Eram questões atrás de questões e ele estava meio aéreo devido à bebida que ali ele nem lembrava mais qual era, então ele estava sem condições de explanar pra si mesmo essas dúvidas. Segurou a mão que lhe era oferecida sem demora e roçou seu bigode digno de encanador pelos dedos com unhas roídas da mulher que lhe sorria até um pouco estranho, um sorriso que lhe parecia sensual e de chacota ao mesmo tempo).
“Ôh, preciosa, desculpa não ter lhe dado a devida atenção. Julinho da Van, ao seu dispor” disse antes de beijar a mão de Maurílio. Amanda. Maurílanda. “Para compensar a minha indelicadeza em não ter me anunciado antes, culpa do seu irmão obviamente, gostaria de levar sua pessoa a um passeio exclusivo na melhor Van desse país. Eu normalmente faço Taquara-Castelo, mas se você me permitir eu te levo até as estrelas”.
Maurílio se controlou para não rir exatamente como se estivesse em um quadro do "Não pode rir", e, por isso, mordeu o lábio, o que Julinho interpretou como um flerte, e se sentiu a última sessão de Velozes e Furiosos do cinema. Deu um passo pra frente, mas Maurílio colocou a mão em seu peito para impedi-lo.
"Muito bem, roteirista da paixão nas ruas carnavalescas, o argumento é convincente e seu carisma é inegável, mas detrás do diálogo as intenções claras do personagem é me levar pra sua van pra eu fazer uma chupeta. Não estou aqui pra trocar seu óleo, fique sabendo."
Julinho mais uma vez se viu em ponto morto. Ele não iria negar que se imaginou em algumas cenas tórridas, como ao imaginar que com aqueles braços delicados ela usaria teria que usar as duas mãos pra trocar a marcha, ou mesmo que aquela mão macia de moleque de prédio leite com pêra dela pressionada contra o vidro do carro no melhor estilo Titanic.
"Me vejo obrigado a discordar da irmã do palestrinha. Eu posso ser um romântico digno dos filmes bunda que seu irmão assiste chorando."
"Eu não- Ele não chora com porra nenhuma!" Maurílio engrossou a voz, depois arregalou os olhos e limpou a garganta. Olhou de um lado para o outro. "Só com Transformers. Mas quem não chora com Transformers?"
Em choque (de cultura) e estarrecido como se seu coração tivesse tomado mais um shot de Jeca Daniel no copo de plástico, Julinho sentiu-se derrapar por dentro. Suspirou e segurou a mão de Maurílio, Amanda, chamando-a para dançar.
Maurílio sentiu uma comichão percorrer seu corpo quando Julinho segurou sua mão. Era uma sensação diferente. Tipo quando você termina de mexer nos fusíveis da sua Kombi branca, ano 94. Sua mão fica quente e pegajosa e você só deseja limpá-la com uma flanela limpa. Exceto que ele não queria limpar a mão naquele momento.
Julinho o conduziu para o meio do bloco. No trio elétrico Acelerou, do Calypso, estourando nas caixas de som e foi ali então que bateu.
O abismo da droga, Rogerinho?
Não.
A identificação.
“Quando você se aproximou e me parou na rua,
Meu coração quase deu piripaque.”
Era a música daquele momento lindo, momento mágico de conexão entre Maurílio e o piloto a sua frente. Tudo o que ele pode fazer era perceber as nuances da letra cantada e daquele encontro inesperado e se entregar ao ritmo, seguindo as batidas do seu coração, acelerado a 100km/h. Renan diria que não existia isso de nuances, mas, ali, mais do que nunca, ele sentia que existia.
"Será que foi de vera, ou foi de brincadeira?"
Entre um passo e uma sarrada de leve ou outra ele sentia a atração mútua aumentar mais que o preço da gasolina. O rosto de Julinho carregava a já habitual malícia, mas não dá forma cruel a que Maurílio havia se adaptado. Pelo contrário: era um tipo de malícia que muito lhe lembrava o emoticom composto por dois pontos e um sinal de maior, que ele havia visto estampado na cara do colega apenas quando o mesmo tentava arrastar asa para alguém no Bar Music. Mesmo com essa expressão, seu semblante ainda carregava uma inocência bêbada que revelava que ele realmente não havia assistido A Garota Dinamarquesa, o que não era uma grande surpresa, e que ele acreditava mesmo estar dançando com Amanda dos Anjos.
"To nem aí já to na chuva quero me molhar..."
Os versos o atingiram como sua Kombi havia feito tantas vezes em pedestres irresponsáveis e desatentos enquanto ele tirava uma merecida soneca para repousar os olhos cansados da onda incessante de fumaça liberada pelo ofício de transportar atores e profissionais liberais do audiovisual. Já era tarde demais para desfazer o mal entendido sem arriscar levar um sacode, então que se danasse esse seu último resquício de medo.
Por sua vez, Julinho pensava que Amanda falava pra cacete, mas que o pouquinho disso que dava pra salvar já o estava deixando com a sensação de ligar um carro novo. Estava todo trouxa por aquela morena e a música estava tendo a oportunidade de estar embalando esse sentimento. Quer dizer, em um momento Amanda tropeçou no vestido e no salto e ele a segurou, desde quando quase não tinham mais espaço pessoal, feito um engarrafamento na Linha Verde. Ali, então, já estavam com seus corpos um contra o outro, quentes por dentro e por fora como a Kombi que não tem ar.
Como a música adequada acabou, Julinho recitava freestyle umas canções ao pé do ouvido de Maurílio, perto o suficiente para ser ouvido além de toda a música, confusão, safadagem e girabenga (isso aí é spin off) que era a rua do bloco de Carnaval.
“Vou te levar de van, chuchu... já andou de sprinter, gata?”
A edição de som ali fora, como Maurílio já sabia, essencial. Trocaram os dois um olhar 43 e o coração de ambos era um carburador furado. Julinho se encontrava em um estado que não se via mais em condição de hesitar. Suas bocas se tocaram e choque elétrico correu seus corpos como se fosse uma chupeta de bateria malfeita, e perderam-se um no outro feito um motorista uber tonto quando o Waze não funciona. Suas línguas brigavam por dominância como duas vans brigando por passageiros, uma combinação perfeita, eram carro e velocidade. As mãos de Maurílio traziam Julinho mais perto como se desejassem uma colisão fatal de quando o Rogerinho entrou com a van no quartel.
Eram figurantes protagonistas de uma imensa cena de carnaval, e acontecia enfim o beijo de cinema que Maurílio esperava, em um final que ele jamais achou que aconteceria. E achou errado (otário).
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