OUTUBRO
- Isso não faz o menor sentido.
- Faz total sentido. Eu posso dirigir, vim de carro da minha casa até aqui, que fica muito longe. Se pudermos resolver isso logo e seguir caminho, chegaremos à tempo pra sessão. De ônibus talvez ele até se atrase, com o trânsito, a demora e tudo o mais.
- Nós temos ido de ônibus, todas as semanas, há quase dois meses e nunca nos atrasamos – olhei pra Taehyung, sentado no sofá. Esperava que ele se impusesse pra defender meu ponto de vista, como era de costume quando ele tinha uma opinião, mas permanecia acuado, quase se fundindo ao tecido do sofá, vestindo uma expressão apática no rosto. Ao lado do ruivo, Jimin deitava em um dos braços do móvel, desinteressado pelo assunto. Mexia nos fios loiros, quase ficando vesgo ao tentar enxergar tão de próximo as madeixas curtas, cantarolando alguma música suave.
Do outro lado da sala, em mesma posição que eu, a senhora baixa e gordinha, com os fios em um penteado tosco, não baixava a guarda para as minhas argumentações. Se eu ainda tinha a audácia jovem de contrariar a qualquer um, ela tinha o dobro. Segurava a própria bolsa com firmeza, como se estivesse pronta pra fuga a todo momento. Certamente não era tão dócil e era quase tão petulante quanto a filha aquela Sra. Park.
- É o melhor para ele, rapaz. Deixe que eu o leve essa tarde. Se der certo, me comprometo a levá-lo todas as semanas, sem falta. É o mínimo que posso fazer por alguém que tenho tanto afeto e conheço desde pequenino – ela sorriu, quase sem sinceridade.
- Todas as semanas?! Mas nem—
- Jungkook! – Hyunah interveio, arregalando os olhos e falando mais alto – por favor, fica calmo. A senhora Park só quer ajudar o Taehyung. Claramente eles já se conhecem há bastante tempo e ela tinha contato próximo com os pais dele, não vejo nenhum problema se ela quer levá-lo pra terapia daqui em diante.
- Ele não precisa de ajuda! Estivemos nos virando muito bem sozinhos durante todas essas semanas.
- E você? – a velha se dirigiu a mim, com afronta – como tem saído do orfanato com ele? Claramente deve ser contra as regras. Dois órfãos andando sozinhos pela cidade sem acompanhamento adulto? Eu tenho certeza que a sua supervisora não está sabendo disso, Irmã Hyunah. Pois posso prontamente fazer um telefonema e deixá-la a par do que estão fazendo com Taehyung. Ele é novo demais pra andar com esse moleque.
Hyunah estava assumindo a direção novamente por alguns dias, graças à ausência da Irmã Dulce para uma viagem de retiro. No entanto, ainda era nova e inexperiente com os assuntos interpessoais do orfanato, deixando visível o quanto ela ficou desgostosa com a postura ameaçadora da outra. Ela ainda era muito inconsequente pra deixar aquilo passar despercebido.
- Na verdade, Sra. Park, foi a própria Irmã Dulce quem autorizou o Jungkook a levar o Taehyung para as sessões. Eles são próximos, se sentem seguros andando juntos, já que alguém precisa levá-lo. Se a senhora quiser ligar pra ela de qualquer forma, fique à vontade, posso lhe dar o meu próprio celular para fazer isso – as mãos magras dela puxaram o telefone do canto da mesa e estenderam para a mais velha, que fechou a cara com amargor.
Jimin, por sua vez, saiu do momento de divagação, reagindo à atitude da amiga. Eles já eram próximos, andavam sempre juntos e ele se sentia mais confiante pra se expressar diante dos outros. Era o verdadeiro protegido da Irmã Hyunah e sabia daquilo. Por isso, soltou os fios loiros dos dedos gordos e riu alto, verdadeiramente entretido com o circo que se apresentava naquela sala, totalmente sem inibições.
- E você, garoto? O que faz aqui? – ela atirou contra o loiro – esse era pra ser um assunto privado entre a Irmã, Taehyung e eu, apenas. Mas convidaram o amigo e você, que nada tem a ver com isso tudo? Será que não tem vergonha de escutar a conversa dos outros e ainda por cima rir? Dá pra ver a falta de profissionalismo nessa instituição, desde a diretora que nem presente está. Se ela autorizou essa bagunça, os supervisores dela é quem vão se entender comigo. Vou contar tudo de errado que têm acontecido nesse prédio e como fui humilhada por um bando de crianças.
Jimin prontamente se pôs de pé, desmanchando o riso em uma cara enraivecida, como uma criança emburrada, mas não era encenação. No entanto, a pequena altura e a delicadeza inerentes a ele não lhe faziam justiça e frustravam qualquer tentativa do mesmo parecer intimidador. Era, no máximo, um crime por ser fofo demais.
- Um bando de crianças? A senhora é quem está ameaçando—
Tentei interromper, com o tom de voz alterado, mas Hyunah levantou-se e impediu antes que a cena ficasse mais feia. Segurando um dos braços da senhora, em uma tentativa de tranquilizá-la contra mim, ela apontou para a porta de madeira.
- Jimin, por favor, vá com o Jungkook lá para o corredor enquanto nós vamos resolver isso aqui – ela disse, quase sofrendo uma brusca interjeição do loiro – por favor!
- Até que enfim! – a velha reclamou – quanto desperdício de tempo, desse jeito o garoto acabará atrasado pra sessão...
Em breves segundos, troquei olhares com Hyunah, que me implorava silenciosamente para obedecê-la daquela vez enquanto a outra ainda resmungava e praguejava em voz alta. Em seguida, com Taehyung, que ainda parecia com o pensamento distante, mas me encarava em concordância, assentindo pra que eu me retirasse. Unicamente por isso, atendi ao puxão delicado de Jimin no meu braço esquerdo e o segui porta afora.
Do lado de fora, era difícil ouvir a conversa tida no interior do cômodo. Como bem lembrava, o ar condicionado antigo era barulhento e fazia tremer as janelas borradas do corredor, piorando a acústica. À minha frente, o baixinho tinha as mãos nos bolsos dos shorts, tentando a todo custo não encontrar meu olhar indignado.
- Eu não acredito nessa mulher. Chega aqui fazendo esse escândalo e querendo mandar no Tae. A essa hora já deveríamos ter saído ou ele pode acabar perdendo a sessão.
- Talvez seja melhor mesmo ele ir de carro, nesse caso... – Jimin disse, hesitante, sabendo que eu protestaria.
- Melhor? E ela sabe o que é melhor pra ele? Eu não confio nessa mulher.
- Eu também não gostei dela, mas de carro ele chegaria lá mais rápido. Também é mais seguro. Vocês conseguiram ir em todas as outras semanas porque o percurso foi tranquilo, mas se tivesse um contratempo, não sei se vocês dois conseguiriam se virar – ele falou, com sinceridade no tom – vocês ainda são dois burros – e, sorrindo, finalmente me olhou.
- Cala a boca, Jimin – ri da provocação – de que lado você está afinal?!
- Do lado do Tae, Jungkook.
Fiquei quieto por alguns segundos, sabendo bem ao que ele se referia. Porém, ainda era verdade que eu, mais do que todos eles juntos, conhecia Taehyung. Sabia das suas manias, medos e crises e como evitá-las, na maioria das vezes. Ainda que pudessem lhe dar um conforto que eu não, ainda seria seu melhor amigo no fim do dia.
- Ele sai das sessões muito abatido, Jimin. Ele não pode ficar sozinho depois de falar sobre tudo isso. Ele precisa do meu apoio.
- Ele precisa de apoio, é verdade, mas não só do seu. Talvez não seja bom você torná-lo dependente do seu suporte. Mesmo que ame ele, não vai poder estar presente o tempo inteiro e ele ainda vai precisar se sentir seguro sem você.
Não poderia contestar, porque as palavras de Jimin me atingiram como um banho de água fria. Será que era aquilo que eu estava fazendo? Cercando-o tanto a ponto de prendê-lo a mim, pra ter certeza que ele precisasse me ter por perto? Certamente não era intencional, mas não parecia uma loucura aos meus ouvidos. Vai ver eu gostava mesmo da ideia de tê-lo pra sempre sobre a minha supervisão, mas nunca quis aceitar que a vida não seria tão piedosa com nós dois.
Durante aquela enxurrada de pensamentos desagradáveis sobre mim mesmo, o barulho estrondoso da porta pesada se fez presente e de dentro da sala saiu um Taehyung, tão calmo quanto poderia. Eu já conhecia bem aquele olhar. Ele precisaria que eu o desculpasse, mas não gostaria de pedir perdão.
- Nós vamos agora e voltaremos logo após o jantar, como de costume, tudo bem? – e ele sabia que não estava, quando selou meus lábios duas vezes e não retribuí – por favor, não me espere pra comer. Fique no dormitório com o Jimin e, assim que voltar, vou te encontrar pra conversarmos.
E assim ele seguiu corredor afora, poucos minutos depois acompanhado pela Sra. Park e uma Hyunah exausta pela confusão. Não sabia como haviam-no convencido daquilo, mas quanto mais digeria a ideia, menos horrível me parecia. Ela era amiga dos pais dele, afinal. Se estava tornando-o dependente de mim, que ele pudesse contar com outras pessoas. Era uma dor de não estar por perto que eu precisaria sentir pelo bem dele.
[...]
- Você é um romântico incorrigível, sabia disso?
O loiro me espiava da cama de cima, com a cabeça pendurada para o lado e um sorriso divertido nos lábios. Quebrou o silêncio depois de muito tempo que permanecemos daquele jeito, eu encarando o padrão de desenho da colcha de cama e ele fazendo a leitura de um livro de bolso, que agora era interrompida para dar espaço à conversa.
- Por que você tá falando isso?
- Olhe só pra você – ele estendeu um dos braços curtos em direção ao meu rosto, passando o polegar na minha bochecha e fazendo-me notar que havia uma lágrima ali – ele saiu por algumas horas e você fica desse jeito. Mas não é uma crítica, eu acho fofo, só não esperava isso de você.
- E o que esperava de mim?
- Ah, não sei, Jungkook – ele desceu da cama, posicionando-se ao meu lado e indicando pra que eu lhe desse espaço, permitindo que eu deitasse o rosto sobre a sua barriga, sem encará-lo – quando a gente era mais novo você era tão ativo, parecia que seria um namorado desapegado, cafajeste, sabe? – ri em resposta – e hétero também.
- É, eu realmente não me tornei nada disso – brinquei e ele também gargalhou.
- É lindo ver como você cuida do Tae. Como sabe cada coisinha sobre ele e tá sempre disposto ao que ele quiser. Me lembra de como o Yoongi me trata... – ele riu alto, sabendo que o comentário não era bem-vindo.
- Ah! Eu sabia que a conversa iria evoluir pra esse lado – revirei os olhos.
- É sério, Jungkook. Você brinca sempre dizendo que o Tae é o inteligente da relação e você o que só teve sorte de conhecê-lo, mas você tem uma inteligência emocional que eu nunca vi em outra pessoa. Você realmente sente o que os outros sentem e sempre sabe o que dizer. Acho que ninguém nunca te disse isso. E também que você é um namorado grudento pra caralho e tão emotivo que é quase enjoativo – ele brincou.
- Eu não sei se isso ainda é um elogio – ri em resposta.
- Às vezes eu sinto falta de te ver sorrindo assim. Sei que ver o Tae nessa situação te machuca e, sinceramente, também me dói, mas ele está doente e precisa de uma ajuda diferente que você não podia ter dado. Não foi culpa sua e nem de ninguém. Quando ele tiver momentos de conforto, vai olhar ao redor e eu te garanto que a primeira pessoa que ele vai procurar é você. Então esteja sorrindo pra ele. Ele precisa de alguém que o lembre o quanto ele é feliz quando ele conseguir se permitir enxergar isso.
Não sabia bem como responder, então apenas assenti. Não havia notado que estava entristecido, apesar de perceber o quanto as mudanças de Taehyung também me afetavam. Não queria que, quando ele finalmente estivesse disposto a se reerguer, encontrasse um namorado triste e exausto, mas sim alguém com força o suficiente pra caminhar ao seu lado e ainda ajudá-lo, se preciso fosse. E eu queria ser essa pessoa.
Com a conversa fluindo, logo era hora do jantar e Jimin seguiu para o refeitório. Havia silenciosamente prometido que não esperaria Taehyung para jantar, mas também não me via descansando ou digerindo antes de tê-lo de volta, são e salvo. Ainda não tinha uma impressão boa da Sra Park, por mais que quisesse a figura materna dela presente na vida de Taehyung, se isso o ajudasse.
Optei por me esgueirar na região da portaria e, sem ser visto, aguardar a sua chegada. Sempre que voltávamos, de ônibus, chegávamos logo após o horário do jantar e Minho guardava algum lanche pra nós dois. Dessa vez, se estava vindo de carro, provavelmente estava próximo, se já não havia chegado sem que eu visse.
Antes mesmo que pudesse pensar sobre horários, ouvi o barulho de um motor de carro próximo ao portão. Como aquela área era sempre muito escura, me agachei diante da porta de ferro e avistei a rua, iluminada por postes, por entre as frestas da grade. Através do vidro totalmente transparente do carro, era possível ver o ruivo e a senhora, se arrumando para sair do veículo após ter estacionado.
Taehyung tinha a face abatida, como sempre que saía de uma sessão de terapia com a psiquiatra. Era uma boa médica, jovem, ex-colega de turma de Minjae, que aceitou fazer sessões por um preço abaixo do comum e o próprio vinha pagando. A princípio, não era possível ouvir a conversa dos dois, mesmo estando fora do carro. O tom de voz de Taehyung era muito baixo e a outra acompanhava-o, falando igualmente serena.
- ... bem? Se tivéssemos parado... – era o que ouvia vindo dela – ...minha casa, posso falar com a Chaeyoung...
E o ruivo negava em resposta.
- ... tão calado, Taetae... se você me falar... me diga sobre o que conversaram... – ela insistia.
Se o que tentava era conseguir que Taehyung se abrisse sobre todos seus problemas pessoais, era um esforço inútil. Taehyung não se abria facilmente. Eram necessários minutos e talvez até horas de incansáveis lágrimas e soluços sem palavras até que ele finalmente conseguisse soltar a primeira frase sobre seus sentimentos, ou mesmo contar o que havia dito durante a terapia. Era dolorido demais e ele não tinha o costume de reabrir aquela ferida. Eu sabia bem daquilo.
- ... ela me recomendou e eu queria a sua ajuda... talvez... só uma vez... – ele finalmente falava.
- ... ela lhe falou isso? Taetae, não. Não é uma boa ideia... achar outro médico... homem, que te entenda melhor...
- Não, eu não quero outro – ele gradativamente elevava o tom de voz para algo mais audível e a mais velha o acompanhava, com um olhar enrugado no rosto.
- ... acredite, é melhor. Isso é um absurdo. Uma médica não pode recomendar isso.
- Mas eu quero muito. Quero tentar.
- Taehyung! Eu sei o que é melhor pra você, acredite—
- Eu quero! Não me importa, eu talvez precise disso pra melhorar, é uma tentativa.
- Não! Taehyung, visitar seus pais no cemitério é um absurdo, você não está pronto—
- Eu estou!
- É melhor pra você—
- É o que eu quero! – ele quase gritou, me assustando com a forma que a conversa evoluíra entre eles – se não pode me ajudar, esqueça. É o que vou fazer. Obrigada por me acompanhar hoje e boa noite.
- Taehyung, isso é inútil!
- É meu direito tentar! Me negaram uma despedida, me negaram luto, eu mereço uma chance de vê-los. Eu já me decidi e vou ao cemitério—
- Eles não estão lá, Taehyung! – a velha gritou, bem mais alto do que o ruivo havia antes, deixando-o completamente calado e imóvel – por que não me ouve?! Ninguém sabe onde eles estão, ninguém achou seus pais. Nos caixões só tem pedras! Deus... olhe o que você me fez falar, Taehyung. Se permitisse que eu te ajudasse, as coisas não seriam desse jeito.
Corri para a cabine da portaria, pedindo que o porteiro permitisse a entrada do morador que havia voltado e ele o fez, liberando o portão. Sem pensar duas vezes, fui interromper a conversa antes que mais coisas absurdas fossem ditas entre eles. Naquele momento, só o que importava era tirar Taehyung dali o mais rápido possível e garantir que ele tivesse privacidade pra surtar ou chorar como desejasse. Eu sabia que era isso que ele necessitava nessas horas.
Saindo com discrição pelo portão, tentando não alarmar o porteiro, cheguei quando a senhora o segurava pelo rosto e o mesmo mal conseguia esboçar alguma reação. Apenas lágrimas e mais lágrimas escorriam e encharcavam seu pescoço, sem que algum músculo da face fosse movido. Ele estava em choque. Segurei-o pela cintura, tentando movê-lo em direção à entrada, mas seu corpo estava mole e indisposto e a mulher ainda falava algo, me desprezando com o olhar.
- Obrigado por levá-lo hoje, mas, com todo o respeito, vá se foder, Sra. Park.
E assim o carreguei até o dormitório, pois ele mal se moveria dali. Por sorte, quase todos estavam no refeitório e ninguém notou nossa passagem pelo caminho. Com cuidado e discrição, consegui colocá-lo na minha cama, ainda de sapatos calçados e com a mesma roupa que saiu. Eu sentado ao seu lado e ele me olhando nos olhos, com a expressão mais sem vida que eu já havia visto em alguém. Era desesperador. Queria que em um beijo só ele sugasse minha alma e voltasse à vida. Taehyung não parecia vivo.
Sem perceber, eu mesmo já derramava algumas lágrimas silenciosas. Era exaustivo passar por situações desgastantes constantemente e eu mal imaginava o quão mais cansativo era pra ele. Mas sua médica havia me antecipado disso. Ela me pedira paciência e compreensão, se eu, de fato, sentia amor por ele, pois o processo seria doloroso e parasitário, se alimentando de nós dois até nossos limites. Nem sempre a comunicação entre nós seria possível, mas eu precisaria estar ali da mesma forma. E naquela hora, vendo-o diante de mim com uma expressão assustadoramente plácida, sem proferir uma palavra, eu entendia o que ela quis dizer.
Sabia que ele se recusaria a comer naquelas circunstâncias, por isso não insisti em irmos ao refeitório. Muito menos passou pela minha cabeça deixá-lo ali pra buscar comida. Portanto, tudo o que fiz foi despi-lo. Com a calma que me restava, tirei seus sapatos, meias. Desabotoei sua camisa e tirei suas calças. Peguei da cômoda seu pijama mais confortável, todo branco, com botões na frente e o vesti. Parte por parte, membro por membro, contra o peso do seu próprio corpo, que não se esforçava pra tornar aquilo mais fácil. E ele, em momento algum, retirou os olhos de mim.
Quando já estava pronto e agasalhado o suficiente, cobri-nos com um dos lençóis e o abracei, frente a frente. Permiti que sua cabeça encontrasse algum conforto entre meu peito e meus braços e ali ele desabou. Por horas. Nada era preciso ser dito, pois eu havia ouvido o mesmo que ele e também não sabia como reagir. Tudo o que eu podia ser para ele era um corpo, um abrigo físico e um conforto. Se na sua mente ele precisava lutar consigo mesmo e era uma batalha na qual eu não tinha como interferir, estaria ali quando ele dormisse e acordasse. Cuidando do seu corpo enquanto a mente estava fora.
[...]
Fora uma decisão difícil, apesar de parecer tão clara a resposta.
Eram árvores e mais árvores, dentre folhas verdes ou mortas. Frutos e muita água. A umidade pairava no ar, pesada, tornando nossa própria respiração mais cansativa e trabalhosa. Era composto por pequenas colinas, declives, estradas longas e largas cercadas de verde. Grupos de pessoas aqui ou ali, fazendo as orações que lhe cabiam.
Era um cemitério de classe alta, certamente. As lápides, apesar de quase padronizadas, eram maciças e majestosas, também úmidas pela chuva da madrugada. Eram 9 e alguma coisa da manhã e o sol batia com discrição em alguns pontos daquela área. Era um local muito vasto, quase como um condomínio de casas.
Caminhamos, de mãos dadas e sem conversa, pelo trajeto que nos fora indicado. Não sabia o que esperar daquele encontro, mas algo no clima me dizia que aquela manhã seria longa e provavelmente perderíamos o almoço. Era uma tentativa, afinal.
Depois de mais longos metros, encontramos o local procurado. E daí se fez o silêncio. Estava bem ali, diante de nós dois. E ele não reagiu como eu imaginava, quando se sentou de pernas cruzadas de frente para a pedra acinzentada e a estudou por incontáveis minutos.
Havia algo ali que eu não tinha a sensibilidade de perceber. Eu não tinha pais. Tinha dois organismos que me geraram e, por sorte do destino, meu organismo estava ali, naquela manhã. Talvez nunca soubesse o que ele sentia. Era algo que limitava minha empatia, se é que eu a tinha, como Jimin havia declarado no outro dia. Eu só podia senti-lo até certo ponto porque, em determinadas áreas, eu não tinha sentimentos. Mas os tinha pelo garoto sentado ali, e ele sofria.
- Eu posso ir dar uma volta pra você ficar a sós – sugeri, em voz baixa.
- Não! – ele me segurou pelo tornozelo – fique aqui, por favor. Eu não tenho nada pra esconder de você. Se tem uma hora pra você me ouvir, essa hora é agora.
Assenti em resposta, ainda incerto, mas sentando logo atrás dele, ainda podendo ver seu rosto. Ele sorria de orelha a orelha, tão tranquilo quanto a brisa que visitava aquele parque imenso. Não sabia se já o havia visto tão em paz quanto naquele momento. Ele, estranhamente, estava em casa. E era verdade que seus pais não estavam ali fisicamente, e que seus corpos nunca foram encontrados e nem voltaram da viagem, agora ele sabia, mas talvez, só talvez, tendo o filho deles ali, de coração tão aberto e sorriso sincero, eles estivessem presentes espiritualmente. Nós nunca saberíamos, mas era mais confortável aceitar como uma possibilidade.
- Oi – ele sorriu – já faz algum tempo, certo? Devem estar assustados com o quanto eu mudei, o cabelo vermelho e tudo o mais. Talvez, bem no fundo, eu me sinta um estúpido por estar conversando diante de um pedaço de pedra, mas não é com ele que eu estou falando. Eu só estou botando isso pra fora e, onde vocês estiverem, vão saber que sou eu – ele ficou em silêncio por vários minutos, talvez fazendo as próprias preces em segredo, antes de continuar – Eunjin está enorme. Vocês se assustariam. Mais agressiva do que nunca, mas tão independente... e ela tem uma nova família agora.
Olhei para trás, fitando as árvores gigantes ao nosso redor, tentando me distrair das lágrimas que tentavam se formar e eu nem sabia o porquê. No entanto, a manhã era tão calma e leve que me garantia que boas coisas fluíam naqueles ares. Eram sentimentos bons, de conforto e de família, que estranhamente me remeteram às pessoas do orfanato, a Eunjin, a Chaeyoung e a Taehyung. Principalmente a Taehyung.
- Eu passei tantas horas me perguntando por que a doutora me recomendou isso. Eu achava que meu único problema era não aceitar minha sexualidade, mas, segundo ela, eu também não tenho amor próprio o suficiente, sou incerto, busco segurança nos mais velhos pra me livrar da culpa dos meus erros. Muitos erros que eu nem sabia que cometi. Achei que tinha errado em deixar vocês irem pra longe, achei que tinha errado em deixar a Eunjin terminar em um orfanato, que tinha errado em amar um garoto e errado em adoecer, porque arruinou minhas chances com a outra família – ele riu, com tristeza – eu acho que estive esse tempo todo esperando um de vocês virar pra mim e dizer que está tudo bem. Eu queria alguém cuidando de mim que me assegurasse que tudo foi como devia ser, porque a minha palavra não tem o mesmo valor. Mas é verdade que o mundo não é tão legal assim e eu não vou saber o que vocês acham do rumo das coisas. Será que gostaram da família nova da Eunjin? Eu acho eles sensacionais e amam ela como uma filha verdadeira. E teriam coragem de me culpar por adoecer? Pai, você era quem sempre mandava eu faltar a escola e me cuidar quando sentia uma pontadinha no dedo do pé. Desistiram do aniversário da Eunjin na praia só porque eu tive diarreia, lembram? E ela nunca me perdoou – ele gargalhou sozinho e arrancou um riso tímido meu – e além disso, o que será que pensariam do meu namorado? Eu acho ele o garoto mais lindo do mundo, tão divertido, tão carinhoso... e, mãe, eu sei que quando era mais novo e você falava dessas coisas com a sua boca suja me envergonhava, mas hoje eu posso dizer que o sexo também é ótimo... A verdade é que eu não consigo imaginar vocês me culpando por nada disso. E eu não quero mais sentir vergonha das minhas decisões, da minha doença, do meu namorado e nem de mim mesmo. Eu quero me curar. Mãe, pai, eu quero viver a vida que vocês gostariam que eu vivesse. A vida que eu escolhi. Sem a vida em si, escolha nenhuma importa, dor ou alegria nenhuma importa, nada importa. Então eu quero estar vivo em primeiro lugar.
Taehyung estendeu um dos braços pra mim, gesticulando pra que eu me sentasse por trás dele e o abraçasse, e foi o que fiz, sem hesitar. Encostei meu queixo no vão do seu pescoço e ele pendeu a cabeça para trás, confortavelmente descansando sobre meu ombro. O sol já havia há muito escapulido de trás das árvores e chegava onde estávamos, quase acima de nossas cabeças, esquentando a terra e secando a umidade das lápides.
- Eu não sei por quê passei tanto tempo em silêncio quando eu podia estar conversando com vocês desse jeito – o ruivo sussurrou, sorrindo em seguida.
E era nítido o impacto que aquilo havia tido sobre Taehyung. É claro que não havia o curado, pois era humanamente impossível curar uma doença mental severa daquela forma, mas abriu um caminho que antes sequer existia, como se demolissem a pedra esmagadora que ele há tanto carregava. Ele estava se permitindo, pela primeira vez. No caminho, dentro do ônibus, contou curiosidades engraçadas sobre os pais e Eunjin, lembrando do quanto eram uma família caótica. Ria, chorava de rir, apontava pra coisas fora da janela e interagia comigo como se aquele fosse o nosso quarto, onde só nós dois convivíamos e ali poderíamos tudo. E por isso eu sorria também.
- Você tem dentes de coelho, Jungkook – ele afirmou, se segurando no apoio que era pendurado no teto, e eu fazia o mesmo.
- Eu sei disso – encarei-o, confuso – você já me disse isso um bilhão de vezes.
- Eu também sei – ele se soltou da argola de apoio, se agarrando no meu tronco de modo que ficasse mais baixo do que eu, me fitando com um sorriso infantil no rosto – é que toda vez que eu vejo eles eu me apaixono de novo por você.
Sorri abertamente, enrugando o nariz e tentando disfarçar as bochechas coradas com aquela demonstração súbita de carinho, tão publicamente, o que não era do feitio dele. Mas ainda assim, não pude retribuir o abraço, visto que estava me segurando no apoio por nós dois.
E em mais um ato inesperado, ele selou nossos lábios sem hesitação. Tinha o mesmo sabor e o mesmo desejo de quando estávamos só nos dois, tinha o mesmo abraço apertado de quando ninguém estava vendo e uma leveza que ainda era novidade pra mim. Como se ele nunca cansasse de me surpreender, era mais um velho e novo Taehyung que florescia diante dos meus olhos, colado nos meus lábios.
- As pessoas estão olhando pra gente – sussurrei, sorrindo contra sua boca, selando seus lábios mais uma vez, com ternura.
- Então não olhe pra elas.
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