Capítulo Quatro: Sujeiras
[Douglas]
Depois que Esteban se foi, fiquei inquieto e comecei a perceber a gravidade do que tinha acabado de acontecer: Meu vizinho era uma criatura devoradora de corações e minha tia estava morta no banheiro. Eu não podia simplesmente ligar para a polícia, com certeza me chamariam de louco ou pior, eu seria responsabilizado por aquela morte.
Fiquei andando de um lado para o outro enquanto pensava em uma solução para me livrar do corpo. Minha inquietude foi interrompida quando a campainha tocou.
Entrei em pânico, o que aconteceria agora?
Decidi fazer silêncio e esperar que parassem de tocar a campainha e fossem embora, mas não foi o que aconteceu.
Alguns minutos depois, ouvi o som da porta ser batida e uma voz familiar me chamar pelo nome:
— Douglas, tá tudo bem? — era Vilma, enxerida como sempre. Será que ela não tinha nada melhor pra fazer?
Fiquei calado por alguns segundo, esperando ela ir embora, mas eu sabia o quanto ela poderia ser inconveniente.
Dei um salto quando ouvi passos vindos da escada.
— O que faz na minha casa, Vilma? — falei arfando enquanto ela arregalava os olhos, assustada.
— Amigo, que susto! Você tá bem? Por que demorou a responder? Desculpa invadir tua casa, mas não tive escolha. Vi o Esteban sair daqui só de shortinho e todo sujo do que pareceu ser sangue, por isso vim investigar e… — ela prendeu a respiração quando viu que eu tinha sangue nas mãos — Isso é sangue? O que foi que aconteceu por aqui?
— Fica calma Vilma, eu posso explicar! — foi tudo o que consegui falar antes de desabar no choro.
Desesperado, contei a ela tudo o que tinha de fato acontecido e quando terminei de contar, ela me olhou sem demonstrar grandes emoções.
— Deixa eu ver se eu entendi. O vizinho da casa da frente de quem estávamos falando hoje cedo estava transformado em um monstro e matou sua tia, depois tentou atacar você, mas o Sol o fez voltar à forma humana? — concordei ainda soluçando.
— Vai ligar pra polícia?
Ela titubeou por um instante e disse alguma coisa inaudível, em seguida olhou para mim com certa fascinação.
— Onde está o corpo? Eu quero ver!
— Mas porque você quer ver o corpo da minha tia?
— Vamos, me mostra logo! Quer que eu te ajude ou não?
— E por que você me ajudaria?
— Além do fato de eu amar livros e mistérios, eu entendo você. Somos iguais!
— Não somos não! Eu não matei ela se é isso que você tá pensando!
— Essa frase me soa familiar.
Sem entender com clareza o que ela quis dizer com aquilo, a conduzi até o banheiro ao final do corredor e abri a porta.
Vilma manteve as expressões, e, pra ser sincero, quase pude ver certo brilho em seu olhar.
— Você acha que ela sofreu? — perguntei enquanto meu estômago revirava.
— Sem dúvidas. — ela se abaixou para olhar o cadáver de perto — Você tem freezer?
— Tem um nos fundos. Por quê?
— Tem serra?
— Serra? Vilma, o que pretende fazer com o corpo da minha tia?
— Vamos esquartejar e esconder os pedaços, é claro!
— E vamos deixar congelado no freezer por quanto tempo?
— Bom, podemos comprar um moedor de carne e…
— Não, não, não, não, não! Não vou esquartejar minha tia, é demais pra mim! Isso é coisa de psicopata!
— Douglas, fica calmo. — Vilma segurou minhas mãos e amansou a voz — Nós precisamos fazer isso. Infelizmente, dessa vez sua mãe não está aqui para assumir a culpa por seus crimes.
— Espera aí… você realmente acredita que eu matei minha tia? — quando eu disse isso, ela abriu uma risada.
— Não seja cínico, amigo. Você a matou porque não queria dividir a herança e tá tudo bem. Eu mesma já matei duas pessoas no decorrer da minha vida e foi a melhor coisa do mundo!
— VILMA, VOCÊ É MALUCA!
Saí correndo daquele banheiro enquanto ela gargalhava para mim.
Que diabos tinha acontecido com a nerd esquisita que sempre me importunava? Definitivamente, aquele dia estava sendo o ápice da bizarrice. Eu me perguntava, naquele momento, até quando a morte estaria me acompanhando?
Não demorou para que Vilma viesse até mim e tentasse me convencer de fazer aquela loucura. Suas palavras eram doces e seu toque delicado.
— E sei que você matou seu pai para se defender. Eu vi. — disse quasse sussurrando — Sabe, quando eu falei que havia matado duas pessoas, foi por circunstâncias ainda piores.
— O que pode ser pior do que ser violentado pelo próprio pai?
Vilma suspirou. Seus olhos marejavam.
Ѫ
“Foi há quatro anos. Minha irmã gêmea Valéria estava em uma colônia de férias, mas eu havia ficado em casa com minha mãe, meu padrasto e meu irmãozinho, Augusto. Ele tinha apenas dez anos de idade quando, certo dia, disse que gostava de meninos. Ouvindo isso, mamãe lhe deu um tapa e o colocou de castigo. Meu padrasto foi mais radical e lhe deu uma surra. Tentei intervir, mas acabei ficando trancada em meu quarto sem comida e sem água por dois dias e durante esses dias, tive que suportar ouvir os gritos do meu irmão sendo torturado por eles.
Na madrugada do terceiro dia, meu padrasto me fez a absurda proposta de participar daquilo ou continuar de castigo. Quando perguntei por que eles estavam fazendo aquilo, ele nada respondeu, mas por um instante, ficou com o olhar vazio, como se não fosse ele mesmo diante de mim.
Foi então que vi, na janela de meu quarto, uma criatura humanoide, muito semelhante a um homem, mas sua pele era pálida e seu rosto esquisito. Seus lábios formavam um sorriso incessante e seus olhos eram esbugalhados. Segundos depois ele já não estava lá, havia sumido.
Hoje eu o chamo de O Homem Que Ri.
Não muito depois disso, acertei meu padrasto na cabeça e o espanquei até a morte. Em seguida fui até o quarto do casal. Naquela noite eu esfaqueei minha mãe trinta e sete vezes.
Quando encontrei Augusto, ele estava em seus últimos momentos de vida. Ele fora jogado no chão e chicoteado com cinto, sua pele estava queimada com cinzas de cigarro e sua boca estava em carne viva após beber molho picante.
Minha irmã, Valéria, chegou ao amanhecer e me encontrou com o corpo de Augusto nos braços. Contei a ela tudo o que tinha acontecido e acionamos a polícia, que após investigação, confirmou minha história.
Depois de vários acompanhamentos com psiquiatras e psicólogos, fomos adotados e hoje vivemos aqui, com o Senhor e a Senhora Mendes. São dois idosos muito gentis que nos acolheram quando ninguém mais quis.”
— Por isso é que eu digo que somos iguais! — disse ela por fim.
— Acho que você tem razão. — falei olhando para baixo, tentando imaginá-la com sangue nas mãos e um homem esquio com sorriso no rosto observando com prazer — Bom, tem algo que preciso te contar.
— O quê?
— Eu vi o Homem Que Ri, quer dizer… na verdade eu esbarrei nele. Ainda consigo sentir aquele cheiro…
Contei a ela o que eu tinha visto e a sensação de medo que sua presença havia me causado.
Vilma ficou pensativa por alguns minutos, absolvendo cada detalhe de minha história.
— É curioso. O Homem Que Ri apareceu momentos antes de acontecimentos traumáticos e sangrentos. E se outras pessoas o tiverem visto? Talvez ele seja algum tipo de entidade, sei lá.
— Ou talvez estejamos ligados de alguma forma. — me senti um idiota quando falei isso. Ela permaneceu séria.
— Precisamos nos livrar do corpo e arrumar essa bagunça. E… antes que fique se perguntando por que eu estou te ajudando, a resposta é óbvia: Adoro mistérios!
Ѫ
Passamos o resto do dia desmembrando o corpo de minha tia. Enquanto Vilma fazia aquele trabalho sujo com excitação no olhar, para mim era como se eu revivesse a noite em que meu pai havia morrido.
Aqueles olhos vazios, a carne rasgada e sangrando, indicando que não havia mais vida naquele corpo era uma sensação estranha que me assombraria pelo resto de meus dias.
Vomitei duas ou três vezes enquanto desmembrava os braços e pernas e os colocava em sacos pretos de lixo que iriam para o freezer até que pudéssemos nos livrar de todos os vestígios de que ela havia estado ali. Pra minha sorte, não tínhamos outros parentes próximos e ela com certeza não faria falta a ninguém, uma vez que não passava de uma perua golpista e ambiciosa.
Ѫ
Ao anoitecer, fui para o trabalho com a sensação de estar sendo seguido e observado. Cada cliente atendido na loja, me olhava como se soubesse de todos os meus segredos.
Ao final daquele expediente, cheguei em casa e fui direto para meu quarto. Eu estava completamente imerso no meu mundo sombrio, revivendo pela enésima vez os horrores do dia anterior.
O silêncio foi quebrado quando o som de uma batida veio da sala, me arrancando de minhas fantasias sombrias.
Fiquei assustado pensando que fosse Esteban na forma de um monstro, mas à medida em que eu descia as escadas, escutava além do som da batida, o som de algo se debatendo.
Fui andando devagar até a sala e à medida em que eu me aproximava, meu coração acelerava.
Abri as cortinas e vi que a janela estava quebrada e tinha um pássaro caído ao chão. Suas asas estavam quebradas e sua cabeça em carne viva. Fiquei olhando-o sangrar e se contorcer até que desistisse de lutar pela vida.
Fiquei algum tempo olhando para o pássaro morto e lembrando que havia outro corpo em meu freezer. Que mal faria colocá-lo lá dentro?
Peguei o pássaro e no mesmo instante, um som de batida veio da cozinha.
Será outro pássaro? Pensei.
Peguei o pássaro morto com a ponta dos dedos e fui até a cozinha. Chegando lá, vi uma criatura de costas. Um homem alto usando roupas pretas virava de frente para mim e revelava seu rosto bizarro e risonho. Era a mesma criatura que eu tinha visto no posto. Ele então veio até mim e tocou meu ombro. Era como se ele quisesse me dizer alguma coisa.
Fechei os olhos enquanto lágrimas insistiam em cair de meu rosto e quando os abri, o Homem Que Ri não estava mais lá, mas se eu o tinha visto, só podia significar uma coisa: outra tragédia estava por vir.
PRÓXIMO CAPÍTULO: VAGANTE
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