Ao longo das duas semanas seguintes, Natasha e eu conversamos todas as noites pelo telefone. Infelizmente, a fábrica me colocou no turno da noite e me obrigou a fazer horas extras nas primeiras semanas, e nossos horários de trabalho sempre impediam que nos encontrássemos. O único tempo disponível em que tínhamos chance de nos falar era durante meu intervalo de quinze minutos, perto da meia-noite. Eu sempre pedia desculpas por ligar numa hora tão inconveniente como aquela, mas ela me jurava que o momento era ótimo.
Pela primeira vez em muito, muito tempo, eu sentia empolgação na hora de ir para o trabalho, pois sabia que iria ouvir a voz de Natasha. Drew, que trabalhava na minha frente no balcão da linha de montagem, se divertia muito quando eu
saía e me dirigia até um canto sossegado da fábrica, para fazer a ligação. Logo na primeira noite ele me perguntou aonde eu ia. Como não respondi, ele me seguiu como um cão de caça até o local escolhido, avisando aos berros para todas as pessoas que passavam que eu pretendia ligar para meus pais e avisar que iria assumir minha homossexualidade. Um chute no saco de Drew, muito bem dado, o fez desistir de repetir a dose. Mesmo assim, as pessoas continuavam a surgir do nada na minha frente, de vez em quando; e me davam tapinhas nas costas, me oferecendo apoio moral por minha decisão de sair do armário.
Durante quinze minutos, todas as noites, Natasha e eu conversávamos sobre tudo e sobre nada ao mesmo tempo. Contei a ela como tinha sido crescer com dois irmãos mais velhos, que confirmavam que o bicho-papão existia de verdade.
Os amigos deles, por sua vez, me informavam que trabalhavam para o Papai Noel, e eu nunca mais ganharia um único brinquedo na vida se não limpasse o quarto dos babacas usando uma cueca usada deles na cabeça.
Natasha me contou sobre o divórcio dos pais dela e da sua decisão de morar com o pai, de quem eu já sentia um medo irracional, mesmo sem conhecê-lo. Só para vocês terem uma ideia, ele tinha ido a uma festa de aniversário no fim de
semana anterior e, ao tentar separar uma briga, um cara lhe disse: “Qual é, vai fazer o quê, vovô?” O pai de Natasha o colocou a nocaute com uma cabeçada e disse: “ISSO é o que eu vou fazer, seu merda.” Natasha tentava me convencer de que seu pai não passava de um ursinho de pelúcia gigante. Só que, no lugar de onde eu vim, ninguém se cagava de medo de encontrar um urso de pelúcia num beco escuro, temendo que ele te enchesse de porrada e tatuasse OTÁRIO na tua bunda.
Um dia eu lhe contei sobre Tara e o motivo de termos terminado, mas me arrependi disso. Cheguei a me abrir por completo, confessando que não tinha certeza de um dia ter amado Tara de verdade ou, talvez, estar apenas passando um tempo com ela até a mulher certa aparecer. Nunca mais mencionei a história que Drew contou no jantar, sobre a garota com quem dormi uma única noite na festa da faculdade. Felizmente, ela também não perguntou. Embora fosse fácil conversar com Natasha sobre Tara, me parecia errado falar sobre a mulher com quem eu sonhava havia cinco anos. Natasha era doce, inteligente e divertida, e eu não queria estragar tudo falando desse sonho idiota. Quanto mais eu conversava com Natasha e a conhecia melhor, mais ficava claro que ela era a garota que eu esperava para a minha vida. Percebi que na maior parte do tempo falávamos mais sobre a minha vida que sobre a dela, e quando eu comentei esse fato, ela simplesmente riu e disse que não havia muito a contar sobre sua vida, que era muito sem graça. Mesmo assim, a cada nova ligação eu descobria algo novo sobre ela, e estava disposto a levar o tempo que precisasse para conhecer tudo a seu respeito.
Por fim, depois de quinze dias falando aos sussurros nos cantos da montadora, tentando permanecer longe do barulho das máquinas para ouvir com mais clareza a voz suave, meio rouca e muito sexy de Natasha, sabendo que ela estava
em casa, encolhida debaixo das cobertas, eu, aleluia!!!, iria vê-la novamente. A fábrica me deu um sábado de folga e eu fiquei superfeliz por passar esse dia analisando a loja de Hill e de Natasha (tudo bem, analisando a bunda da Natasha, confesso). Natasha tinha me enviado algumas fotos da loja pelo celular, e deu para
perceber que a obra estava bem adiantada. Na verdade, eu não me importaria se tivesse que me encontrar com Natasha num depósito de lixo; desde que estivesse perto dela, eu me sentiria feliz.
Então, às dez da manhã desse sábado, parei o carro no endereço que Natasha me informara. Fiquei sentado ali tamborilando no volante com as mãos. Tinha dormido só três horas durante a noite. Fiquei rolando de um lado para o outro na
cama, a noite toda, ligadão com a expectativa de ver Natasha mais uma vez e estar perto dela a ponto de tocá-la. Mas não vou mentir para vocês: o que me deu insônia foi a frase que ela dissera ao celular, por distração, na véspera. Foi a segunda vez que ela usara a frase comigo. Por mais que eu tentasse tirar isso da cabeça, um pensamento insistente a respeito dela me voltava à mente. É claro que milhares de pessoas haviam assistido ao filme Atração mortal. Na verdade, a
velha expressão “me foda gostoso com uma motosserra” podia ser considerada o equivalente a dizer “puta merda” nos dias de hoje.
Hã-hã… Me engana que eu gosto.
O uso dessa frase poderia simplesmente ser a maior coincidência da história do mundo, ou então eu tinha embarcado de vez no avião dos doidos que vai sem escalas até Piradópolis. Peguei o celular no porta-copos do painel do carro e conferi que horas eram, sorrindo ao ver a foto de Natasha que usava como tela de fundo. Drew me zoou por vários dias quando viu aquilo, mas nem liguei.
Secretamente, eu tinha pedido a Hill que ela me enviasse uma foto da amiga, e Hill ficou feliz em me atender. A foto que ela me mandou era um close em preto e branco de Natasha, quase se mijando de rir com alguma coisa, com uma das
mãos tentando tapar o rosto e os dedos abertos de tal forma que dava para ver com clareza seu sorriso lindo, a jovialidade dos seus olhos e as covinhas em suas bochechas. A imagem era fantástica e eu só torcia para poder, um dia, conseguir fazer Natasha rir daquele jeito para mim e estar bem ao lado dela nesse instante.
Olhar para a foto no celular me ajudou a esquecer a confusão e as perguntas que trazia na mente, e fez com que eu simplesmente concentrasse a atenção nela, e não em fantasmas do passado. Desliguei o motor, saltei do carro e, por fim, dei uma boa sacada na casa em frente da qual estacionara o carro. Fiquei impressionado. Era maior do que eu imaginava, e me pareceu um espaço fantástico. Avistei Hill atrás da vitrine do que deveria ser o seu lado da loja. Dei a volta pela frente do carro e fui até a calçada. Comecei a andar na direção da porta, mas tive que parar quando um garotinho passou correndo na minha frente, quase voando, com os braços e pernas se espalhando para todos os lados de forma desordenada.
– James, volte aqui!
Por instinto, meu braço se lançou para frente e eu agarrei a parte de trás da camisa do menino, impedindo-o de ir adiante. Um sujeito com cerca de cinquenta anos veio correndo até onde eu estava.
– Puxa, obrigado por pará-lo – agradeceu ele, virando-se para o moleque com o rosto tão sério que eu sentiria medo se aquele olhar fosse lançado para mim. Soltei a camisa do garoto, confiante de que o pequeno fugitivo não iria mais a lugar nenhum, agora que fora agarrado.
– James, quantas vezes eu já disse que você não deve sair correndo assim que eu desligo o carro? Você tem que dar a mão!
– Ah, sei lá… – reagiu o menino, dando de ombros. – Preciso correr para a sorveteria antes que os sorvetes derretam.
Cobri a boca com a mão para esconder o riso. Aquele garoto tinha coragem!
O pobre sujeito simplesmente girou os olhos para o menino e deu um longo suspiro.
– Se você tem algum apreço por sua sanidade, não tenha filhos – disse-me o pobre homem, agarrando a mão do menino com força e caminhando com ele pela calçada.
– Obrigado pelo conselho! – gritei, vendo a dupla entrar na sorveteria que ficava bem ao lado.
Só nesse instante Hill percebeu que eu estava na calçada e foi até a porta da frente me receber.
– Bom dia! – cumprimentou-me ela, com muita empolgação, quando eu entrei.
Para todo lado que eu olhava via sutiãs, calcinhas e peças cheias de babados e rendas penduradas em cabides ou espalhadas sobre balcões. Quase senti meu pinto se encolhendo e recuando para dentro do corpo. Não me importava nem um pouco de despir as roupas íntimas de uma mulher, mas me ver no meio de um salão rodeado por toda aquela merda erótica me fez sentir constrangido demais devido ao contato com meu lado feminino.
Caraca, que porra era AQUELA ali na minha frente?
– Isso é uma mordaça com bola de silicone, Rogers. Já vi que você não curte dominação e submissão – afirmou Hill, com ar sério, ao reparar no meu ar de espanto ao olhar para o apetrecho.
– Hum… Eu, ahn…
Não ficou meio quente aqui dentro, de repente?
– Você já amarrou sua parceira? Já usou chicotes? Já brincou com anel peniano? Já fez um ménage à trois? Você se julga mais dominante na cama ou
mais submisso? Qual foi a última vez que você fez testes para doenças sexualmente transmissíveis?
– O quê? Puxa, eu…
– Quantas parceiras sexuais você teve nos últimos cinco anos? Alguma vez você foi condenado por crime sexual contra outro ser humano, animal ou vegetal?
– CHRISTINA!
Graças a Deus. Nunca me senti tão feliz na vida como quando ouvi a voz de Natasha.
– Estou de olho em você, garoto – murmurou Hill, olhando para mim de cima a baixo, apontando com os dedos em V para os olhos, e depois virando-os na minha direção.
– Tudo bem, anotei o recado – murmurei ao passar por ela, atravessando o portal e seguindo até o balcão, atrás do qual Natasha tinha se colocado, com as mãos nos quadris. Como ela estava ocupadíssima, lançando olhares de ódio por sobre meu ombro para Hill, aproveitei a chance para analisá-la sem ser notado.
Parecia impossível, mas ela estava ainda mais maravilhosa que na última vez que nos vimos. Talvez porque agora eu a conhecesse bem melhor que antes. Seus cabelos estavam presos paracima, num coque meio solto que lhe deixava fios
espalhados por todo o rosto. Notei uma mancha de farinha ou, talvez, açúcar de confeiteiro na bochecha e senti vontade de lamber tudo. Fiquei de pau duro só de me imaginar saboreando a pele dela.
– Vou cuidar de você mais tarde, Hill – ameaçou Natasha.
– Cale a boca e mantenha essa bunda caída na cozinha, onde é o seu lugar, vadia! – reagiu Hill.
Natasha olhou para cima e me fez um sinal com a cabeça.
– Venha, vou te mostrar minha parte da loja.
Pegou minha mão como se fosse a coisa mais natural do mundo. Quando nossas peles se tocaram, tive dificuldade para fazer meus pés se moverem.
Queria ficar simplesmente ali parado, olhando para ela. Natasha sorriu e se virou, arrastando-me com ela, de forma gentil. Caminhamos pelo depósito da parte da loja que pertencia a Hill e eu tive que me segurar muito para não passar a mão na bunda dela. Porra, ela estava novamente de jeans. Uma mulher como aquela de jeans circulando por aí devia ser proibido. Meu cérebro não funcionava direito
quando ela vestia jeans.
– Esta é a minha parte da Malícias & Delícias – declarou Natasha, com muito orgulho, ao sair do depósito de Hill e entrar na cozinha. Com a mão ainda agarrada na minha, ela me levou pela cozinha até a parte da frente do estabelecimento, apontando para as coisas e me mostrando tudo.
Enquanto o lado de Hill era decorado com cores escuras e panos encorpados, o lado de Natasha era leve, arejado e cheio de cores fortes. Na parte da frente havia três paredes pintadas em amarelo vivo e uma em rosa-claro. Atrás do balcão havia uma viga larga que sustentava o teto, onde se viam três quadros com tudo que a loja oferecia e os respectivos preços. Por baixo dessa viga o
espaço era aberto e dava para ver a cozinha inteira. Em todo lado havia quadros emoldurados de cupcakes, doces e ditados famosos que tinham a ver com comida. Um cartaz de madeira pintado de rosa com letras marrons anunciava que “Dinheiro não compra felicidade, mas compra chocolate, o que é a mesma coisa”. Outro quadro amarelo com letras em marrom, ao lado da porta informava que “Chocolate vem do cacau, que é uma fruta, e açúcar vem da cana, que é uma planta, sendo assim… chocolate conta como salada”. Além da atmosfera aconchegante e atraente, só o aroma do lugar já seria capaz de deixar qualquer um com boa disposição. Pelo menos naquele momento o cheiro forte de chocolate não me incomodou, como geralmente acontecia, talvez pelo fato de Natasha estar bem ali, ao meu lado. Eu só conseguia me imaginar saboreando-a, em vez de pensar nas recordações que aquele odor geralmente me trazia.
Coloquei o corpo quase grudado no dela e considerei um bom sinal o fato de ela não ter recuado nem largado minha mão.
– Malícias & Delícias é um grande nome. Muito mais apropriado que Profiterrôlas.
Ela riu, um pouco nervosa, mas manteve nossa proximidade.
– O espaço é fabuloso! – exclamei, com entusiasmo, quase encostando nela, querendo ficar colado ali pro resto da vida. Baixei o braço um pouco e deslizei a mão para dentro da dela, fazendo com que nossos dedos se entrelaçassem. Ela engoliu em seco e passou a língua pelos lábios, nervosa, mas não se moveu.
– Obrigada – murmurou, olhando fixamente para meus lábios.
Caraca, ela queria que eu a beijasse? Eu devia fazer isso? Só me inclinar e deixar que nossos lábios se tocassem? Por que eu me sentia como um menino de doze anos, sem o mínimo de experiência? E por que não conseguia parar de fazer perguntas irritantes a mim mesmo?
Avancei, diminuindo o espaço entre nós. Desvencilhei nossos dedos para poder colocar a mão atrás do corpo dela e pousá-la na base das suas costas, puxando-a ainda mais na minha direção. As mãos dela voaram para o meu peito,
mas ela não me empurrou. Deixou-as pousadas ali e, finalmente, me olhou fixamente.
– Que cheiro é esse? O que você preparou? – perguntei baixinho, inclinando minha cabeça até quase tocar-lhe os lábios, grato por senti-la finalmente nos braços e surpreso ao ver como ela parecia pertencer àquele lugar.
– Na… nada – gaguejou. – Eu estava só fazendo a lista dos mantimentos que preciso, e ia guardar a farinha na prateleira.
Parei com os lábios quase encostados nos dela. Dava para sentir seu hálito junto do meu, e precisei contar até dez para me segurar e não empurrá-la contra a parede mais próxima e me lançar por entre suas pernas.
– Sinto cheiro de chocolate bem aqui – sussurrei, pairando com os lábios sobre os dela, quase roçando-os.
Eu realmente não tinha o mínimo controle quando ficávamos assim tão perto.
Duas semanas apenas ouvindo sua voz tinham sido as mais torturantes preliminares de toda a minha vida. Beijei-lhe o canto da boca, a bochecha e o espaço debaixo da orelha, inspirando fundo para sentir o cheiro de sua pele. Todo o sangue correu para a minha cabeça e meus braços a enlaçaram e apertaram com mais força.
Uau, que diabo é isso?
Senti seu coração bater com muita força contra o meu peito, que estava grudado no dela, mas não foi isso que me fez sentir como se o chão tivesse
sumido debaixo dos meus pés.
Aquilo não podia estar certo. Por que diabos meu subconsciente andava me pregando peças daquele jeito? Beijei o ponto abaixo do lobo da sua orelha só para me certificar de que não estava pirando, e a senti estremecer em meus braços.
Dei mais uma fungada em sua pele, enfiando o nariz nas pontas soltas de cabelo caídas sobre a lateral do pescoço.
Meu Jesus Cristo do chocolate ao leite, oficialmente eu tinha ultrapassado todos os limites da sanidade. Como era possível ela ter aquele cheiro? Fiquei ali e inspirei fundo novamente, deixando-me inundar pelo seu aroma. Depois de cinco anos de espera o cheiro estava bem ali, nos meus braços. Eu certamente iria parecer um tarado completo, pois aquilo estava me matando de curiosidade: eu precisava saber que cheiro era aquele. Só podia ser uma loção, creme ou alguma dessas merdas. Por uma cruel cilada do destino Natasha usava o mesmo produto da minha garota desconhecida. Pelo menos o mistério seria solucionado e eu poderia, de uma vez por todas, me livrar daquela maluquice antiga.
– Provavelmente sou eu mesma. Dizem que tenho cheiro de chocolate – murmurou ela, com os braços subindo lentamente até meus ombros, enlaçando meu pescoço e minha nuca. Algo no toque dela, nos dedos que deslizavam pela parte de trás da minha cabeça, me pareceu tão familiar que foi minha vez de estremecer.
Você acabou de citar uma frase de Atração mortal? Esse é o meu filme favorito.
É que eu tenho uma quedinha pelas ruivas, inteligentes e com um charme todo especial.
Eu me esqueci de respirar por um minuto inteiro, enquanto pedaços soltos de informações do passado tentavam rastejar até o palco central da minha mente.
Ela se encaixava tão bem nos meus braços; era como se pertencesse àquele lugar, ou talvez já tivesse estado ali antes…
Não, deixa de ser mané. Natasha é doce e linda, uma garota legal. Não a confunda com uma lembrança enevoada, muito menos agora.
Então me foda gostoso com uma motosserra.
Pergunta qual é o meu filme favorito.
O passado, o presente e sonhos idiotas voavam descontrolados pelo meu cérebro, tentando chegar à frente do palco. Subitamente, me veio à cabeça a sensação de cair por cima dela sobre uma cama estranha. Seu corpo era macio nos lugares certos, sua pele era lisinha e eu não conseguia parar de tocá-la. Ela emitiu os ruídos mais surpreendentes quando eu lambi a pele do seu pescoço, bem debaixo da sua orelha. Lembrei de ter me lançado dentro dela e de fechar os olhos com força, porque ela era apertadinha e quente, e eu não queria gozar antes mesmo de chegar ao fundo. Lembrei-me de ter me movimentado lentamente, entrando e saindo, torcendo para que ela estivesse gostando, porque senti vontade de fazer aquilo para sempre e só com ela. E me lembrei de ter acordado na manhã seguinte com o maravilhoso cheiro de chocolate ainda entranhado no travesseiro e nos lençóis, e de rezar baixinho, pedindo para descobrir quem ela era.
Afastei-me um pouco de Natasha só para ver seu rosto. Fitei seus olhos com firmeza, desejando que todas as minhas recordações voltassem logo de uma vez, para eu não me sentir tão confuso. Seus dedos continuavam a brincar com os
cabelos da minha nuca, colocando tudo em foco.
– Qual é o seu filme favorito? – murmurei.
Prendi a respiração, desesperado para saber a resposta. Vi seu rosto mudar de alegre para perplexo, e depois para nervoso. Por que ela estava nervosa? Aquela era uma pergunta comum. A não ser que…
Ela me fitou rápido, pulando de um olho para o outro, e piscou depressa para reprimir as lágrimas. Ver seus olhos daquele jeito, brilhantes e agitados, me trouxe uma lembrança forte, e eu quase engasguei ao engolir em seco. Com clareza perfeita me vi sobre ela, erguendo sua perna e prendendo-a em torno do meu quadril, enquanto fitava seus olhos. Lembrei-me com detalhes do instante em que, ainda olhando fixamente para ela, penetrei-a devagar, forçando-me a parar ao ver que ela piscava depressa para encobrir as lágrimas.
Lembrei-me de tê-la ouvido soltar um gemido leve, como se sentisse dor, e também de ter lhe perguntado se ela estava bem. Ela nunca me respondeu.
Simplesmente me encarou com aqueles olhos lindos, muito brilhantes e verdes, puxou meu rosto para junto do seu e me beijou. O rosto de Natasha, os olhos de Natasha, o corpo de Natasha…
– Atração mortal – murmurou.
Minha mente voltou num centésimo de segundo para o presente, ao ouvir sua confissão sussurrada. Fiquei ali parado, olhando para ela, incrédulo. A sensação de tê-la em meus braços, seu hálito delicioso no meu rosto, o som da sua risada, o jeitinho como enrubescia quando ficava envergonhada, me lembrei de tudo. Das cutucadas que demos um no outro com o ombro, de forma conspiratória, quando jogamos beer pong. Da sensação dos lábios dela na primeira vez em que a beijei… Era ela. Era Natasha.
– Meu filme favorito é Atração mortal – repetiu, confundindo meu silêncio aturdido com problemas de audição. Olhou para mim como se desejasse que eu me lembrasse de tudo. Como se torcesse para minha ficha cair e eu descobrir a
razão de ela e Hill terem agido de forma tão estranha quando me viram no bar. E também o motivo de estar tão nervosa quando eu e Drew aparecemos de surpresa na casa de Jim e Hill; de como ela tentou não me encarar olho no olho, a
todo custo; o porquê de todo mundo na mesa ter feito uma cara de que tinha visto um fantasma quando Drew contou a história da virgem que eu pegara; e a razão de ela se mostrar tão reticente em compartilhar alguns momentos de seu passado nas conversas que tínhamos levado pelo celular nas últimas duas semanas. Eu já sabia tudo sobre ela. Ela me contara tudo sobre sua vida naquela noite, cinco anos antes.
– É você! – sussurrei, erguendo a mão e cobrindo sua bochecha, com ternura. – Puta merda, é você!
Ela soltou uma risada fraca e fechou os olhos, encostando a testa no meu queixo.
– Graças a Deus! – murmurou, de forma quase inaudível, mas alto o bastante para eu escutar.
Coloquei a mão sob seu queixo e afastei um pouco o seu rosto para poder vê-la melhor.
– Por que você não me disse nada? – eu quis saber. – Provavelmente me achou um idiota completo.
– Achei mesmo – confirmou, com um riso safado. – No início. Hill queria te dar um soco na cara.
– Acho que continua querendo – retruquei, sem pestanejar.
Ela sorriu e meus joelhos ficaram bambos.
– Para ser honesta, eu não soube o que pensar quando te reconheci no bar e você não me disse nada, nem mesmo falou comigo. Decidi que você não passava de um desses típicos babacas que comem a faculdade inteira só para gastar onda com os amigos. Só que, depois de alguns lances que Jim relatou ter ouvido você contar, Hill sacou rapidinho que você estava bêbado demais, na
véspera, para se lembrar de mim. Então eu simplesmente estava achando que eu não devia ser tão inesquecível assim, para início de conversa.
Ela riu ao dizer isso, mas eu percebi que essa ideia a incomodava.
– Não brinque com isso. Nunca! Você faz ideia do tempo que eu passei à sua procura? O número de vezes em que Drew achou que eu era maluco de
carteirinha só porque eu vivia tentando achar uma loção que tivesse esse cheiro de chocolate, e nada sequer chegava perto de como eu me lembrava de você?
Eu já começava a achar que tinha apenas imaginado sua existência.
Puxei seu corpo para junto do meu e encostei minha testa na dela. Tive medo de largá-la, pois ela poderia tornar a desaparecer. Será que aquilo era real? Drew jamais acreditaria num troço desses. Porra, eu mesmo ainda custava a acreditar.
Agora que ela estava pertinho, dava para cheirar sua pele normalmente, e isso me fez sorrir.
– Você não bebeu tanto quanto eu na noite em que nos conhecemos ou deve ter uma memória melhor que a minha. Como conseguiu me reconhecer? – perguntei.
Natasha abriu a boca para falar. Nesse instante, porém, a porta da loja se escancarou e ela se afastou dos meus braços num pulo, ao mesmo tempo que nos viramos na direção do barulho. O garotinho cheio de atitude entrou porta adentro
e eu dei uma gargalhada, sacando que ele conseguira escapar novamente das mãos do pai.
– Mamãe! Eu comi sorvete! – gritou ele, correndo em nossa direção.
Fiquei petrificado e com a boca aberta, vendo Natasha se agachar para pegar o menino que se lançava nos seus braços. Ela olhou para mim com um ar de puro terror estampado no rosto.
Puta merda! Natasha tinha um filho. Enquanto eu a procurava durante cinco longos anos, ela saiu e teve um filho por aí. Viu só, seu babaca, como são as coisas?
– Meu amor, esse garoto está me levando à loucura. Estou quase comprando uma coleira ali no petshop. Ou, quem sabe, uma daquelas que dá choque. Será que é preciso autorização para portar uma daquelas armas que dão descargas
elétricas?
O pai que eu vira um pouco antes entrou na loja, e eu tentei não me encolher de repugnância quando ele foi até onde Natasha estava agachada, ainda abraçando o menino e com cara de quem ia vomitar a qualquer momento.
Natasha curtia homens mais velhos, é mole? Aquele cara devia ter quase cinquenta anos. Eu também vomitaria, se fosse ela. Aquilo era nojento! Ela já tinha acariciado aquele saco velho e ainda mais enrugado. Quando ele gozava, aposto que saía apenas uma gosminha aguada do seu pau meia-bomba. O cara finalmente me olhou com atenção, de cima a baixo.
– Quem é você? – perguntou, obviamente esquecendo que tínhamos acabado de nos encontrar na porta da loja. Já devia estar com Alzheimer.
– Saco velho – resmunguei baixinho, com muita raiva.
– Nick! Bem que eu achei que tinha visto você estacionando o carro, agora há pouco! – exclamou Hill, vindo do seu lado da loja e se colocando ao lado de Natasha para ajudá-la a se levantar. Olhei para a parte de trás da cabeça do coroa quando ele se virou para abraçar Hill. Ele era careca, pelo amor de Deus!
Será que seu saco também estava careca? Senti vontade de bicar seus colhões enrugados e despentelhados.
Natasha olhou para nós com visível nervosismo. Seus olhos dardejavam entre mim e o idoso com cara de poucos amigos. Perguntei-me o que ele iria pensar se descobrisse que tinha rolado um lance entre mim e Natasha no passado. E também que ela quase tinha dado para mim bem ali, pouco antes dele aparecer e cortar nosso clima.
– O ex da sua esposa – declarei, cruzando os braços diante do peito e olhando- o com altivez num súbito acesso de macheza.
Os três me olharam com o mesmo ar de perplexidade e confusão.
– Você dormiu com a vovó? – perguntou o menino. – Ela leu uma historinha pra você pegar no sono? Papa me contou que ela ronca que nem o demônio!
Nick deu um passo em minha direção e eu engoli em seco. Apesar de ser velho, percebi que tinha um físico avantajado, e era bem capaz de me dar uma surra. Ou me matar e fazer parecer que tinha sido um acidente.
– Papai… – pediu Natasha, em tom de advertência.
Papai? Ai, cacete, eu realmente sou um babaca. Devia ter síndrome de Tourette na boca. Natasha não tinha mencionado seu nome nem uma vez, quando falava a respeito dele. Aquele era o sujeito que tinha desfigurado o rosto do mané
que o chamara de “vovô”. E eu acabara de chamar o sujeito de saco velho. Ele iria me matar ali mesmo, sem pensar duas vezes.
– Merda. Mil desculpas. Eu não dormi com sua esposa, não. Rolou um equívoco total aqui, foi mal.
Ele parou de caminhar em minha direção. Se minha massa cinzenta estivesse em forma eu manteria a boca fechada a partir daquele instante. Obviamente eu estava bêbado no dia em que distribuíram neurônios.
– Eu me confundi – completei. – Eu quis dizer que sou o ex da sua filha.
Ouvi Hill gemer alto e vi a boca de Natasha se abrir quase um palmo.
– Mas não foi do jeito como o senhor deve estar imaginando – continuei, falando mais depressa. – Isto é… O lance foi que nós dois estávamos muito, muito bêbados, e eu nem sabia que era com ela que eu tinha transado até alguns minutos atrás.
Ó meu Deus, cale a porra da boca. PARE de falar!
Uma das minhas sobrancelhas se ergueu, e eu juro que o ouvi estalando os dedos e o pescoço.
– Ela tem cheiro de chocolate e eu não gosto de apanhar – despejei tudo de forma meio atrapalhada, e em pânico.
– Meu Pai do Céu… – murmurou Nick, balançando a cabeça para os lados.
Vi Natasha dar um tapa no braço da amiga com toda a força, atrás de Nick, pois Hill quase caiu no chão de tanto rir. Obviamente estava achando aquilo tudo engraçadíssimo, hilário.
– Eu também não gosto de apanhar. E também não tenho cabelo no saco.
Mamãe, você não vai bater nele, vai?
– Isso mesmo, mamãe, conte para a gente. Você vai bater no Steve por ele ser um menino mau? – pediu Hill, com uma voz grave e sensual, imitando Marily n Monroe. No caos das merdas que estavam simultaneamente acontecendo, eu nem tinha conseguido dar uma boa olhada no menino que Natasha continuava abraçando, agora em pé. Ele estava de costas para mim até alguns segundos atrás, e eu não tinha prestado muita atenção ao rostinho dele quando o agarrei lá fora para impedir que escapasse. Natasha teve de colocá-lo meio de lado na hora em que socou Hill, e ele me encarava, agora. Era um menino muitobonito. Mas isso não era surpresa, já que era a cara da mãe. Contudo, havia algo mais nas feições…
Virei a cabeça meio de lado e ele fez o mesmo. Percebi que todos tinham emudecido subitamente, mas não consegui tirar os olhos dele. Os cantos do meu campo de visão começaram a ficar escuros e eu senti como se fosse desmaiar a qualquer momento. Aquele menino tinha os meus olhos. Tinha um jeito de olhar igualzinho ao meu! Rapidamente tentei fazer algumas contas de cabeça, mas meu cérebro tinha virado purê e eu nem me lembrava qual era o dia do meu aniversário!
Que porra estava acontecendo ali? Aquilo não podia ser real. Meu esperma tinha me traído. Subitamente, tive uma visão do meu esperma nadando loucamente e falando com a voz de Bruce Willis, em Olha quem está falando:
“Vamos lá! Nadem mais depressa! Esse bundão nem desconfia que nós conseguimos escapar da camisinha! Yu-huuu, seu otário!”
A única diferença é que meu esperma era cheio de marra e se achava o John McClane de Duro de matar. Essa era a única explicação para aquela suruba de emoções.
– Você é o…? – perguntei ao garoto que tinha olhos iguais aos meus, quando recuperei a voz.
– Sou James Romanoff. E você quem é, bobalhão?
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