Na manhã do dia seguinte, toda a família estava reunida diante da mesa para o café da manhã. Menos Tamara, que estava ausente. Madalena retornou para a sala trazendo a bandeja de frutas que fora levar para Tamara.
-Ela não quis comer nada, Madalena?-perguntou Heloísa reparando que as frutas estavam todas no mesmo lugar.
-Não, senhora. Não quis tocar em nada. Não comeu nenhuma fruta.
-Ela ficou muito abatida depois de ontem.-disse Laércio.-Você devia ter visto como a nossa menina ficou triste, Heloísa.
-Também não era pra menos..-disse Julian.-É horrível ver um ser humano sendo queimado vivo.
-Vamos esquecer esse assunto.-disse Heloísa.-Não quero mais ouvir falar sobre inquisição nessa casa.
Momentos depois, Heloísa estava bordando na sala como de costume. De repente, ela ouve batidas na porta. Rapidamente, Expedita correu até a porta e a abriu. Ela estremeceu ao dar de cara com o frei inquisidor. Ao ver o frei, Heloísa aproximou-se e disse:
-Senhor inquisidor?
-Bom dia, senhora.
-Bom dia. Entre, por favor.
-Com licença.
Emílio entrou e Expedita fechou a porta.
-Eu sou a esposa do delegado da cidade.
-Sim, eu sei. É um prazer conhecê-la, minha senhora.
Emílio fez uma breve reverência.
-O senhor é muito gentil, senhor inquisidor. O que deseja em minha casa?
-Eu gostaria muito de falar com a sua filha.
-Com a minha filha?
-Sim. Estou aqui na condição de padre e não de inquisidor. Eu apenas vim para confortá-la com a palavra de Deus.
Heloísa reparou na Bíblia nas mãos dele.
-A minha filha ficou muito abalada ontem a noite, reverendíssimo. Jamais tinha visto alguém sendo queimado vivo.
-Eu entendo, senhora. E é justamente por isso que estou aqui. Vim para mostrar o meu lado religioso, e não o meu lado de inquisidor. Não quero que sua adorada filha pense que sou um homem cruel e desumano.
-É claro que não, reverendíssimo. O senhor apenas agiu como ordena o Santo Ofício.
-Exatamente.
-Tenha a bondade de me acompanhar.
Heloísa conduziu o frei até o quarto de Tamara. Chegando lá, ela abriu a porta e disse:
-Tamara...frei Emílio quer conversar com você.
Tamara estava deitada sobre sua cama agarrada a sua boneca preferida. Sem virar o rosto, ela falou com voz gélida:
-Eu não quero ver ninguém.
-Por favor, minha filha. O frei apenas está aqui na condição de sacerdote religioso.
Heloísa permitiu a entrada do frei no quarto da menina.
-Converse com ela, reverendíssimo.
-Obrigado, senhora.
Heloísa saiu para fora do quarto, fechando a porta. Emílio se aproximou da cama da menina e começou a admirá-la com profundo desejo lascivo. Mas conseguia controlar esse desejo, que era intenso. Ele então sentou-se em uma cadeira que ali havia, e que ficava ao lado da cama. Tamara o fitou seriamente.
-Ainda gosta de bonecas?-perguntou Emílio ao ver a boneca de pano nos braços dela.
-Nunca deixei de gostar.
-Minha tia em Lisboa também gostava de bonecas de pano. Ela as tinha conservado desde quando era menina.
-Mãe Geraldina não merecia esse cruel castigo...
-Aquela mulher era uma feiticeira pagã. Mas eu não vim até aqui para falar sobre isso. Não estou aqui como inquisidor. E sim como frei. Eu notei que a senhorita ficou muito abatida com a execução de ontem. Por isso eu vim até aqui para confortá-la com a palavra de Deus.
-E porque não veio o padre Aurélio?
-Ele está ocupado com assuntos da igreja. Por isso me ofereci para vir aqui.
-Eu agradeço a sua generosidade, senhor inquisidor. Mas não precisava ter vindo. Eu sei muito bem como me recuperar.
Tamara apertou os lábios, tentando reprimir as lágrimas, mas inutilmente.
-Sabe que eu não suporto vê-la chorar.
A voz dele soou doce e atraente. Mas Tamara nem havia percebido, pois o desprezava.
-Nunca foi a minha intenção magoá-la, senhorita Tamara. Eu a estimo muito.
Tamara enxugou as lágrimas com as mãos.
-Eu não quero que pense que sou um monstro. Apenas cumpro com minhas obrigações de juiz do tribunal da inquisição.
-Isso deve lhe dar muito prazer.
-Sim. Me dá prazer eliminar todos os hereges que há na face da terra. Todos os inimigos da igreja católica.
Tamara recusava-se a encará-lo nos olhos.
-Sei que a senhorita não simpatiza muito com a minha pessoa. Mas quero que saiba, que simpatizo muito com a senhorita.
-Foi como lhe falei, reverendíssimo. Eu o respeito porquê o senhor é um sacerdote religioso. O que não respeito, é o Santo Ofício!
O inquisidor a encarou com seu olhar penetrante.
-Vejo que é uma jovem obstinada...gosto disso.
Emílio admirava Tamara. Queria confessar o seu amor, mas preferia manter em segredo absoluto.
Enquanto isso, Laércio entrou em casa. Ao vê-lo, Heloísa perguntou:
-O que faz em casa tão cedo, querido?
-Vim buscar a minha arma que esqueci.
-Temos visita.
-Ah sim? De quem?
-Do frei Emílio.
-O que ele veio fazer aqui?
-Veio conversar com a nossa filha. Não se preocupe. Ele veio na condição de frei para confortá-la com alguns sermões da Bíblia.
Nesse exato momento, Julian entrou na sala e perguntou de imediato:
-Esse abutre ainda está aqui?
-Fale baixo, Julian!-advertiu Laércio.
-Ele está no quarto com a sua irmã.
-E a senhora permitiu que ela ficasse sozinha com ele?!
-Não seja birrento, Julian! Ele é um frei.
-Um frei da pior espécie!
-Quieto!-ordenou Laércio.
Segundos depois, Emílio deixou o quarto de Tamara e entrou na sala.
-Com licença. Mas eu devo ir agora.
-É um grande prazer recebê-lo em minha casa, reverendíssimo.-disse Laércio.
-Obrigado, senhor delegado.
-O senhor já deve ter conhecido o meu filho mais velho Julian.
-Eu me lembro sim. Muito prazer Julian.
Julian permaneceu calado e sério. Detestava a presença do frei inquisidor.
-Bem, eu preciso ir agora. Tenho que examinar vários documentos inquisitoriais.
-Alguma nova execução?-perguntou Julian com desdém e ironia.
-Por enquanto não. Mas com certeza irá surgir.
-E Tamara?-perguntou Heloísa.
-Foi muito atenciosa, senhora. Dei bons conselhos a ela. Os ensinamentos bíblicos que dei a ela, irão ajudá-la a superar essas emoções ruins.
-Eu fico muito grata, reverendíssimo.
-Não há o que agradecer, minha senhora. Sou apenas um servo de Deus. Na verdade, eu me ofereci para vir até aqui. Padre Aurélio estava muito atarefado com os assuntos da igreja e com isso não pôde aparecer.
-Estou vendo que o senhor adotou um certo carisma pela minha irmã.-comentou Julian de sopetão.
-Sua irmã é uma boa moça. Com certeza daria uma excelente freira. Eu preciso ir agora.
-Eu vou acompanhá-lo até a porta.
Heloísa e Laércio acompanharam o frei até a porta da frente. Julian riu e disse em voz baixa para si próprio:
-Esse daí não me engana...
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