1. Spirit Fanfics >
  2. The Change- Fillie >
  3. Capítulo 04

História The Change- Fillie - Capítulo 04


Escrita por: MabelSousa

Notas do Autor


O capítulo ficou bem grande, então aproveitem. kkkk


Boa leitura ♥️

Capítulo 62 - Capítulo 04


Millie. 

Acordo com a garganta seca e com a sensação de que tem areia por baixo das minhas pálpebras pesadas. Quando me mexo, percebo que ainda estou deitada no sofá e encaro a bota ortopédica encobrindo meu pé direito.

-Achei que você não fosse acordar mais.

Olho para o lado assustada me deparando com David sentado sobre a poltrona atrás da mesinha de centro. Ele está com os braços cruzados, em uma posição de quem ficou me observando durante muito tempo.

-Eu dormi demais? -Pergunto, usando os cotovelos para me dar apoio ao me sentar.

-Bastante, sua mãe estava aqui com a Ava, mas pedi para não te acordar. Você parecia muito cansada.

-Meu Deus, a Ava? -Me sinto zonza. Com a cabeça pensando quando penso em minha irmã e tento me lembrar de tudo o que aconteceu.

-É... Ela ficou preocupada quando soube que você se machucou, mas garanti que estava tudo bem. -Ele fala com a voz suave e altamente compreesiva.

Concordo com um movimento de cabeça. Gostaria de ter visto minha irmã, mas sei que foi melhor para nós duas que eu não tivesse acordado. Ajeito meus cabelos para trás enquanto volto no tempo e lembro de exatamente tudo o que aconteceu. 

A caixa pesada caindo em meu pé, Finn gritando comigo no carro, eu tentando fugir dele e ele reaparecendo aqui depois de ter seguido o meu táxi.

-Você e o Finn brigaram? -Pergunta David lendo minha expressão com cuidado sem nenhum toque de raiva na voz.

Deixo escapar um suspiro e uma risada sem humor, quase ao mesmo tempo.

-Como você sabe que isso tem a ver com ele? -Pergunto, apontando para a bota em meu pé machucado.

David dá uma risada tão sem graça quanto a minha e move a cabeça de um lado para o outro.

-E existe mais alguém capaz de te deixar desse jeito, se não ele?

Faço que não com a cabeça, aceitando isso como a mais pura verdade. Já tive que lidar com todo tipo de situação na minha vida, mas nada nunca me deixou tão destruída como meus problemas com Finn.

-Bem, acho que nem vou perder tempo perguntando o que aconteceu, pois parece que nem você mesmo sabe...-Ele para para cruzar as pernas e me encara. -Mas vou fazer a única pergunta importante, isso finalmente acabou?

Não fico surpresa com a pergunta, mas sinto o nó em minha garganta apertar bem forte, especialmente quando me lembro dos últimos momentos de Finn aqui comigo, nesse mesmo lugar a poucas horas atrás. Me lembro com perfeição de cada palavra seca, cada expressão de dor que ele fazia ao mesmo tempo que parecia não se importar com o estado em que me deixou. 

Finn se tornou uma verdadeira incógnita para mim, muito mais do que antes, com suas palavras duras reverberabdo o oposto do que seu semblante parecia querer dizer. Mary me garantiu que ele não estava com raiva de mim, mas o que aconteceu depois, embora eu não saiba explicar o porquê, me deixou ainda mais certa de que sim, ele me odeia. Os pensamentos me magoam profundamente e eu nem percebo quando lágrimas escorrem do meu rosto. David se levanta da poltrona e vem para o meu lado me envolver em seu abraço.

-Eu fiz de tudo... Lutei até minhas últimas forças, mas não consegui, David. Eu não consigo mais lutar. -Confesso pela primeira vez, deixando que minha mente se alivie dos pensamentos que tomaram minha cabeça o dia inteiro.

Ele me aperta e eu pressiono o rosto em seu ombro.

-Tudo bem. Não é culpa sua, você fez o que pôde. Não é justo que só você faça alguma coisa. -Diz ele suavemente enquanto tenta me consolar.

Afirmo com a cabeça, concordando com ele, embora lá no fundo eu ainda me culpe, me culpe não só por ter levado Marvin naquele dia, mas me culpo por aceitar que as coisas acabem. Por ser fraca demais para não conseguir mais lutar.

-Ele é outra pessoa. -Digo me afastando para limpar minhas lágrimas. -Uma que eu não conheço. Você tinha que ver a forma como ele me tratou, como foi frio e desagradável.

David respira pelo nariz com seu rosto tomando uma expressão de raiva e ele sacode a cabeça lentamente.

-Eu sabia que eventualmente isso ia acontecer, mas não fazia ideia de que ele deixaria que você saísse afetada por isso.

Também não entendo. Não entendo nada e isso me enche de raiva de repente.

-Parece que ele fez de propósito, como se quisesse me machucar. -Aperto as unhas com força dentro das mãos ao me lembrar.

David coloca uma mecha de cabelo para trás da minha orelha e chega mais perto.

-Acho que ele quer afastar você, Millie. Como se fosse te para te proteger, ele se sente culpado.

Ergo a cabeça encarando David com uma expressão fechada e limpo minhas lágrimas com raiva.

-Pode até ser verdade, mas eu já cansei de tentar ficar arrumando justificativas para o comportamento dele. Francamente, eu fiquei do lado dele em todos os momentos e fui a única de quem ele decidiu se afastar. Isso não faz nenhum sentido.

-Eu sei. -Ele tenta me abraçar de novo, mas dessa vez eu não deixo.

Me forço a levantar e fico de pé com um sentimento horrível de agitação me afligindo.

-Ei, você consegue andar? -David pergunta angustiado se preparando para segurar meu braço.

-Sim, consigo. Foi para isso que o médico colocou a bota, não sinto nada quando estou com ela. -Digo encarando a diferença de altura que um pé fica do outro. -Talvez se eu usar uma sandália não dê tanta diferença assim.

-Otimo. -Ele abre um sorriso aliviado e segura em meus ombros para me equilibrar em cima da bota, mas além do alívio, percebo outra coisa ali. -Vamos sair para jantar, aposto que você não comeu nada o dia todo.

Ergo uma sobrancelha, surpresa, mas logo sinto o aperto em meu peito de novo ao pensar em por os pés fora do prédio.

-Não, obrigada. Podemos pedir alguma coisa aqui mesmo. -Cambaleio para trás e me jogo na poltrona em que David estava sentado antes, sentindo até uma pontinha de dor no início do meu pé machucado ao fazer isso.

-Nada disso. Não vou deixar que você fique mofando aqui dentro como têm feito a dias. Você vai comigo. -Pressiona, cruzando os braços ao redor do peito.

Levo apenas alguns minutos para pensar e concordar com a cabeça. Também não quero ficar aqui. Se ficar sei que vou acabar desmoronando mais uma vez e preciso de pelo menos um descanso antes do inevitável.

-Isso, garota. Vou chamar a enfermeira para te ajudar no banho. Você vai adorar o lugar para onde vou te levar.

Ele chega perto e abre a palma da mão para que eu bata, depois de suspirar fingindo impaciência eu bato.

Steph, a enfermeira que o hospital deixou a minha disposição volta para me ajudar. Ela embala minha bota em um saco plástico e fica do lado de fora do banheiro esperando enquanto termino de tomar banho. Por incrível que pareça eu consigo fazer isso, desviar meus pensamentos e me arrumo o quanto posso para tentar mascarar os efeitos dos choros frequentes marcados em meu rosto.

No closet, a enfermeira também me deixa sozinha e prevendo que David vá me levar em algum lugar chique, escolho um vestido tubinho azul marinho de linho com alças finas. Coloco só um pé do scarpan branco de salto baixo de um jeito que fica na altura da bota. Quando estou pronta, encontro David encarando distraidamente  a parede de vidro olhando para baixo, para a cidade que nunca para a nossa volta.

Ha um certo tempo atrás eu nunca poderia imaginar que o perdoaria, que voltaríamos a ser tão amigos quanto antes, mas David foi uma das únicas pessoas que sempre pensou em mim, que errou muito comigo, mas que nunca me deixou então só fico feliz por termos nos entendido, não faço a menor ideia do que teria acontecido caso ele não estivesse aqui.

-Olha só, é você de novo. -Diz ele se voltando para mim, me dando um sorriso satisfeito e reconfortante.

-É. Acho que sim.

Segurando em seu braço ele me leva até o elevador enquanto eu me arrasto mais devagar por causa do medo de machucar minha perna e pelo peso da bota. Peço para descermos direto para o subsolo com a intenção de não passarmos pelo lobby que agora também está manchado de lembranças ruins.

No carro, David coloca o som baixinho tocando blinding lights e enquanto fazemos o caminho eu olho as últimas mensagens no meu celular. Várias são dos meus pais -Que eu ignoro- mas a mais recente é de Mary. Me sinto tensa, antes mesmo de abrir e quando leio quase perco o fôlego de novo.

Está tudo bem com você Millie? O finn não voltou para casa, nem atende o celular. Estou preocupada com vocês dois.

Respirando fundo, eu respondo:

Estou bem. Não foi nada grave, o Finn foi embora a algumas horas, não sei para onde.

Resolvo esconder tudo o que aconteceu, tanto porque não quero entrar no assunto por mensagem quanto porque quero esconder a preocupação irracional que me toma ao saber que Finn não deu nenhum sinal depois que saiu do meu apartamento.

-Está tudo bem? Quem é? -David me pergunta, me trazendo de volta ao presente.

Encosto a cabeça no banco do carro e solto um suspiro jogando o celular de volta na bolsinha.

-É a Mary. Ela ficou preocupada comigo.

O rosto de David fica meio branco, perdido e ele apenas volta a encarar a estrada.

-Você não falou com ela, não é? Desde que...

-Não. Ainda não. -Responde, me interompendo para que eu não complete a frase.

Ele fica nervoso e aperta o volante com as mãos até seus dedos perderem a cor.

-Não quero pressionar, David, mas já se passaram dois meses, uma hora ou outra você vai ter que enfrentar isso.

Ele solta o ar pela boca e concorda.

-É. Eu sei. Estou dando um tempo para ela, não quero piorar ainda mais a situação. -Percebo toda a hesitação em suas palavras, assim como o medo.

Em partes entendo seu comportamento. David passou oito anos se remoendo com a culpa e agora que tudo foi revelado ele não sabe o que fazer.

-Ela precisa de você, mais do que nunca agora. -Digo suavemente, sem querer pressiona-lo, mas já fazendo isso.

-Ela disse a você alguma coisa sobre mim? -Ele vira o rosto, repleto de curiosidade e pânico.

Faço que não.

-De todas as coisas que conversamos ela nunca nem citou o seu nome. Faz sentido, ela sabe que ficamos muito tempo juntos.

Seus ombros decaem em uma mistura de alívio com decepção.

-Ela não vai me ouvir. Conheço minha irmã, ela pode perdoar a traição de qualquer um, mas não a minha especialmente quando envolve o Finn nisso.

-Para saber você primeiro tem que perguntar, pedir perdão. Sei que quer fazer isso. -Seguro seu braço com delicadeza.

Ele hesita, perdido na própria culpa depois me encara suplicante.

-Você pode fazer isso comigo. Podemos ir juntos até lá e...

-Me desculpe, mas eu não vou voltar naquela casa. -O interrompo, sendo mais grossa do que eu queria.

Ele franze o cenho para mim, sem entender nada.

-Você não vai mais falar com ela?

-Não. Não é isso... -Passo a mão pelo rosto com cuidado para não borrar a maquiagem. -Só não vou encontrá-la mais lá, é muito arriscado.

-Por causa do Finn. -Ele complementa sem que eu precise explicar.

-Exatamente.

Só o pensamento me faz sentir a dor de novo então me esforço a não pensar demais nisso. Nunca abandonaria Mary, mas preciso de um tempo distante  até pelo menos aceitar tudo o que aconteceu.

-Entendi. Não é sua obrigação de qualquer forma. É minha, e eu vou fazer isso.

Abro um sorriso de orgulho e não digo mais nada para pressiona-lo.

Quando David encosta o carro, tenho que mover minha cabeça de um lado para o outro procurando um restaurante, mas não encontro nada além de uma lanchonete simples de comida natural e alguns bares.

-Que lugar é esse? -Pergunto vendo-o tirar o cinto.

Ele dá uma risada e se levanta sem responder para abrir a porta do meu lado.

-Não parece nada demais, mas estou dizendo. Você vai adorar. -Diz ele ainda sorrindo quando me ajuda a subir na calçada da tal lanchonete.

Parece um lugar perdido no tempo, ou afrente do tempo. As paredes são de madeira alta e Heras se espalham por elas até o chão fazendo com que pareça mais uma casa na árvore cheia de plantas ao redor. O letreiro também é de madeira e está entalhado nela o nome Rootsfood com uma tinta verde mais clara que os tons das plantas. As luzes são pequenas lanternas acopladas nas paredes e pela única porta de vidro na frente dá para ver que o local está  vazio.

-Desde quando você curte comida natural? -Pergunto estranhando exatamente tudo.

-Desde que aprendi que é muito boa. Até perdi dois quilos quando passei a cuidar melhor da alimentação. -Ele se gaba alisando a camisa do terno mostrando o novo físico que na realidade não mudou nenhum pouco.

-Serio, isso está muito estranho. É melhor me dizer logo o que você está aprontando. -Digo, fazendo-o parar de andar.

-Dá pra deixar de ser tão preconceituosa assim? Você vai gostar, confia em mim.

Encaro seu olhar divertido e depois encaro o lugar a nossa frente. Pode parecer loucura, mas fico completamente curiosa para ver onde isso vai dar.

-Está bem e não me chame de preconceituosa de novo. -Ameaço, batendo em seu ombro de brincadeira.

Ele ri e me leva para entramos na lanchonete. Lá dentro, por causa da baixa luminosidade me sinto estranhamente bem, sem todo o alvoroço de luzes nem de pessoas me reconhecendo logo de cara. As mesas são de plástico biodegradáveis e os bancos são feitos de tocos de madeira escura cobertos por um alcochoado de couro falso.

Tem pôsteres espalhados pelas paredes, mas não são obras de artes nem fotos de artistas, são imagens de florestas e flores, frutos e animais ameaçados de extinção com alguns informes no final de cada um deles.

Rinoceronte negro do oeste africano, entrou para a lista de animais em extinção em Maio deste ano. Muito procurado por caçadores que utilizam sua pele para a fabricação de bolsas e acessórios.

É o que consigo ler do pôster que fica bem em cima da mesa que David escolhe. Fico olhando para a imagem do animal capturada em um momento em que estava saindo de dentro da água com seus grandes olhos escuros voltados para a câmera.

-Assustador não é? A gente só percebe a merda que está fazendo quando se aprofunda no assunto. Já perdemos tantas espécies que é um verdadeiro absurdo. -David comenta, impactado também pela imagem.

Apesar de concordar com o que ele está dizendo, não posso evitar estranhar. Nunca achei que David fosse tão ligado em preservação assim

-Então esse é você agora? Vai me dizer que não frequenta mais os restaurantes franceses nem come carne? -Questiono levantando uma sobrancelha. David ama comida francesa.

Ele ri e abaixa a cabeça.

-Estou tentando. É complicado, mas pelo menos já tenho um estímulo e esse é primeiro passo.

Confirmo com a cabeça ainda desconfiada, mas lá no fundo apreciando essa mudança.

Um garçom chega para nos oferecer os cardápios. É um rapaz magro de pele escura com dreads no cabelo e vestido com uma túnica branca estampada.

Estranho todos os pratos, que pelo nome e descrição não me apetecem nenhum pouco no primeiro momento, então fico com um suco verde e peço também um sanduíche vegetariano de brócolis com queijo.

Quando o rapaz sai com a comanda, percebo que olha de um jeito meio estranho para David, que tenta disfarçar seu estado de agitação mexendo na caixinha com embalagens de maionese.

-Então... Eu te trouxe aqui porque... -Ele se interompe quando ouve o barulho do pequeno pêndulo sobre a porta anunciando a entrada de alguém na lanchonete.

Olho para trás, para a mulher baixinha que entra e porra... Para a Arara que ela traz em seu ombro. É bem bonita, com um estilo todo hippie. Seus cabelos são bem escuros apesar da pele branca e ela usa uma saia longa com estampa indiana sob a blusa curtinha verde caída nos ombros. Apesar de seu visual chamar bastante atenção, só consigo olhar para a ave tranquila em seu ombro, como se fosse apenas mais um adereço compondo a imagem. É uma arara vermelha de calda longa espichada para trás com as penas findando em um tom forte de azul.

-Uau. -Não deixo de ficar admirada, ainda mais quando ela sorri para mim e vem caminhando na minha direção.

Uma espécie de desespero injustificado me abate e eu olho para David. Espero vê-lo tão chocado quanto eu, mas ele está sorrindo abertamente com os olhos brilhando na direção da mulher. Ela não estava sorrindo para mim e sim para ele. 

Parece que tudo fica mais lento e eu observo embasbacada quando ele se levanta do banco. A mulher pega a arara com os dedos e ela voa em direção a um poleiro que não reparei ficar acoplado em uma das paredes finais. Percebo que a ave tem uma asa meio deformada o que faz com que seu vôo não seja exatamente plano e o bicho sai voando de forma desengonçada fazendo aquele barulho alto comum de pássaro.

-Oi, meu raio de sol.

Volto a cabeça para encarar David abraçando a mulher, falando com uma voz mansa cheia de carinho.

-Oi ursinho!-Ela retribui o abraço com igual intensidade e de costas reparo a enorme mandala que ela tem tatuada nas costas sob a camisa.

Preciso de tempo para conseguir discernir o que estou vendo e mesmo fazendo isso ainda não acredito. O conjunto todo é tão aleatório que se torna impossível não achar que deve ser efeito do remédio e que na verdade estou tendo o sonho mais maluco da minha vida.

Quando os dois se afastam, David pega a mão dela onde está uma tatuagem de um sol e beija ternamente.

Solto um pigarro, como se isso fosse me despertar do sonho.

Os dois olham para mim, percebendo que eu ainda estou aqui.

-Ah, é... Sim.. Essa é a Millie. -David diz todo envergonhado com as bochechas rosadas apontando para mim.

A mulher arregala os grandes olhos cor de mel parecendo imensamente chocada e feliz. Não sei o que é mais estranho, o fato de David me apresentar para alguém, ou o fato de esse alguém de fato não me conhecer.

Quando dou por mim, a mulher está me abraçando jogando meu tronco de um lado para o outro em um movimento repetitivo que me faz sentir seu cheiro fraco de menta misturado com alfazema.

-Nossa! Que bom finalmente te conhecer! O David me falou tanto sobre você! -Ela diz quando me solta.

Fico tão abismada que perco as palavras e abro um sorriso completamente embaraçado.

-Lily, acho que ela não está entendendo nada. -David diz, encostando a mão sobre seu ombro.

Ela vira o rosto para ele franzindo o cenho.

-Você não explicou nada ainda não é? Eu deveria saber, ursinho! -Ralha ela, mas sem nenhum pouco de irritação.

Sua voz é bem bonita, alta, com um sotaque ligeiramente arrastado típico de alguém que cresceu no campo, fora da cidade.

-Não tive tempo. -Ele diz, ainda forçando a voz em um tom suave que por mais estranho que pareça combina com ele. -Millie, essa é a Lilian, ou Lily para os mais chegados. -Ele sorri, desconcertado. -E ela... É... Bem, é minha namorada.

Tenho um sobressalto de repente e o que consigo fazer para não achar que enlouqueci de vez é rir, mas não uma risada qualquer, caio literalmente na gargalhada juntando todos os fatos na minha mente acreditando que é uma grande piada.

-Umhum, conta outra! -Digo em meio a risada segurando minha barriga com toda força.

David fica sério, mas Lily se junta a mim contagiada pela minha risada. Sei que é brincadeira, mas adoro ela já de início de qualquer jeito.

Quando ambas diminuímos a frequência da risada, Lily coloca a mão sobre o peito de David, bem onde fica o coração e diz:

-Está bem, explique direito a ela. -Pede.

Ele assente e os dois se sentam perto um do outro, com as mãos dadas em um contraste difícil de engolir. Ela toda colorida com suas roupas chamativas e ele completamente monocromático em seu terno azul marinho.

Não acredito que estão mesmo falando sério.

-Lily e eu nos conhecemos a um ano atrás, Millie, mas só estamos juntos a quatro meses, pelo menos oficialmente. -Ele explica levando a mão tatuada dela até os lábios para dar um beijo.

Percebo que pela primeira vez a constatação não me incomoda, quando eu vejo que David realmente está morrendo de amores por ela.

Ainda sem entender nada balanço a cabeça.

-Um ano... Meu Deus, porque você não me disse nada? -Pergunto, sem querer parecer irritada.

-Ah, é uma excelente pergunta. -Lily concorda se virando para David.

Ele dá de ombros, da mesma forma desconcertada, mas nem isso tira o brilho de seus olhos.

-Eu não sabia aonde isso ia dar e... Convenhamos, você não estava em um momento muito legal para que eu pudesse contar isso assim.

A quatro meses atrás foi exatamente a época em que Susan estava na casa de Finn, muito perto da minha viagem para Londres e pensar nisso me traz tantas lembranças ruins que parece ter sido a muito mais tempo.

Engolindo em seco eu aceno com a cabeça.

-Sim, claro. Só que... fui completamente pega de surpresa. -De repente me lembro de outra coisa. -Foi por isso que você não quis ir comigo para Londres! -Praticamente berro.

David arregala os olhos assustado com minha acusação repentina, mas depois seus ombros murcham.

-Foi... Me desculpe, nós estávamos em uma fase muito boa e... Eu fui egoísta eu sei.

Ele parece extremamente chateado ao admitir e Lily passa a mão por seu cabelo para consola-lo. Em outro momento isso me afetaria muito, pois odiei que David me deixou viajar sozinha com Rick e Rose e só foi depois por causa da confusão entre Finn e Louis, na época eu entendi, pois ele mentiu dizendo que precisava ficar por causa de Mary, mas agora vendo que tudo foi para ficar perto de Lily, estranhamente não me importo, achando inclusive tudo muito irritantemente fofo.

-Tudo bem. Você fez o que tinha de fazer. -Digo, abrindo um sorriso para reconforta-lo.

-Ah que bom. Você é muito compreensiva, Millie. Nada a ver com o que David descreveu. -Lily diz, fazemos uma expressão engraçada para ele, depois se vira para mim. -Como já está tudo mais ou menos explicado, acho que agora podemos nos apresentar direito.

Ela estica a mão para mim por cima da mesa.

-Sou Lily Allen, dona da metade desse estabelecimento e uma das poucas pessoas que ainda tentam salvar o mundo. É um prazer enorme conhecer você. -Seu sorriso é a coisa mais radiante que já vi em minha vida.

Sorrindo, levo minha mão até a dela e a aperto. Antes que eu fale alguma coisa Lily se levanta bem rápido puxando a mão da minha.

-Ai caramba!! -Berra ela encarando a palma da mão que acabou de apertar a minha.

De súbito viro minha Palma também querendo ver se de alguma forma acertei ela com minhas unhas ou sei lá... Lhe dei um choque.

-Me desculpe... O que foi que eu fiz? -Pergunto sem encontrar nada de anormal em minha mão.

-Você... -Ela me encara com o rosto petrificado em uma expressão de esturpor. -Você... Tem uma energia muito forte!

Espero que ela explique o que quer que isso signifique, mas ela fica só me olhando como se eu tivesse duas cabeças.

David levanta achando graça e puxa o braço de Lily para que ela se sente.

-Não liga, Millie, ela é sensitiva, capta a energia das pessoas com as palmas das mãos. -Ele explica ainda rindo da expressão marcada no rosto de Lily.

Ela encara a mão de novo e depois olha para mim.

-É tão ruim assim? -Decido perguntar, pois não entendo nada do que está acontecendo.

Lily balança a cabeça para sair de transe e sorri.

-Ah não. É ótimo, raramente tenho uma impressão tão forte como essa de alguém que não conheço. Você é diferenciada.

Uau.

-Bem, acho que vocês duas tem muita coisa para conversar então vou deixá-las um pouco sozinhas para se conhecerem melhor. -David diz levantando para ajeitar a gravata no pescoço.

-O que? Como assim? Pra onde você vai?-Pergunto exasperada.

-Eu tenho que encontrar um pessoal da Universal, você sabe.. para pegar o seu roteiro e tudo mais. -Diz ele claramente sem querer entrar em muitos detalhes sobre meu próximo filme.

-Mas eu não deveria ir junto? -Faço uma força para me erguer do banco, mas David segura meu ombro.

-Não, não precisa. Eu vou só pegar o roteiro, vamos ter que lê-lo juntos antes de assinar o contrato. Tudo isso podemos fazer amanhã, hoje já é muito tarde.

Aceito, confirmando com a cabeça embora ache muito estranho que David tenha que encontrar qualquer pessoa agora que já é de noite.

-Como vou embora, depois? -Questiono, me dando conta que vim com ele de carro.

-Me ligue, eu venho te buscar.

-Ah, não. Pode deixar que eu a levo no meu carro. -Lily protesta, sorrindo para David.

Ele também sorri e se abaixa para lhe dar um beijo suave nos lábios.

-Faça ela comer tudo e peça para me ligar se acontecer alguma coisa. Está bem?

Ela olha para mim e confirma para ele.

-Vá com cuidado, ursinho. -Diz ela em tom adoração.

David acena e lhe dá mais um beijo. Depois se vira para mim e reproduz o mesmo carinho, mas no topo dos meus cabelos.

-Você vai adorar o carro dela. -Comenta ele rindo baixinho antes de erguer a cabeça e ir embora.

Lily acompanha todos os seus passos concentrada e só parece voltar a respirar quando ele sai pela porta.

-Caramba. Como posso amar tanto uma pessoa desse jeito? -Pergunta ela levando a mão ao peito quase sem fôlego.

Não sei o que responder, aliás nem sei se foi de fato uma pergunta para mim ou para si mesma. Tomara que seja a última opção, pois não quero pensar sobre amor de jeito nenhum.

Vendo que fiquei calada ela abre um sorriso ameno para mim.

-Você ainda não está nem acreditando nisso tudo, não é?

-Eu? Hum... É que você não é bem o tipo de pessoa que imaginei um dia o David se relacionar.

Quase me dou um chute ao perceber que isso não é coisa que se diga, mas Lily sorri ainda mais.

-Ah é? Porque você diz isso?

Tenho vontade de inventar qualquer coisa, mas me sinto tão confortável perto dela apesar de mal nos conhecermos que decido dizer a verdade

-É que... Até pouco tempo eu achei que ele fosse gay.

Espero qualquer coisa, mas não que Lily dobre o pescoço para trás e exploda em uma gargalhada divertidíssima.

-Eu sei, nada a ver, me desculpa. -Digo, mas começo a rir também.

Ela continua rindo até ficar sem fôlego depois limpa os olhos com seus dedos cheios de anéis de cobre.

-Ah não. Não se desculpe. Quando o conheci tive a mesma primeira impressão.

-Meu Deus! Sério? -Pergunto eufórica mas imediatamente mais aliviada.

-Sim, não sei porque direito, mas acho que devem ser as roupas combinando sempre.

Suspiro aliviada, me divertindo muito com a forma com que ela parece tão leve e completamente desapegada a preconceitos, aliás nem me conhece mas fala abertamente comigo sem todas aquelas hesitações só por que eu sou quem sou.

-E como foi que vocês se conheceram? -Pergunto, tomada pela curiosidade em saber como esse encontro inusitado aconteceu.

Lily se inclina para frente e começa a me contar tudo, cheia de empolgação encenando divertidamente até mesmo as expressões e falas de David. Ela me conta que os dois se conheceram por causa de uma batida de carro no meio da rua, o carro dela tinha morrido do nada e David bateu com a sua BMW bem na traseira do carro de Lily.

-Nós dois brigamos muito. Porque o David queria que eu chamasse um reboque para levar o carro e tirá-lo da estrada, mas eu insisti em não fazer isso. Queria esperar meu irmão chegar, ele sempre concerta o problema do motor do louva-deus.

-Louva-deus? -Pergunto rindo e franzido a testa.

-É o nome do meu carro! -Diz ela e eu caio ainda mais na gargalhada.

Nossa comida chega e Lily fica com o suco que David pediu, mas pede um sanduíche igual ao meu quando vê meu prato reciclável chegando. O sabor é maravilhosamente surpreendente e eu gemo sentindo o prazer de comer algo tão gostoso sem culpa nenhuma.

Enquanto nós comemos ela continua falando, como se não conseguisse ficar calada um só instante e eu não reclamo pois adoro as suas histórias. Ela tem uma sociedade com o irmão mais velho e os dois são donos do Rootsfood a quatro anos, mas não são de Vancouver e sim de Cobourg, Ontário onde cresceram em uma fazenda sendo criados pelos tios depois que os pais morreram em um acidente. Por causa da convivência diária com a exploração animal e com desmatamento de florestas para criação de novas áreas de pasto para gado, os dois tiveram a iniciativa de sair de casa em busca de uma vida mais sustentável e se envolveram arduamente com as lutas para a preservação das espécies viajando o mundo todo com a instituição que criaram.

-O mundo foi feito para todos nós que estamos nele, Millie, não só para os humanos e a gente esquece que os animais estão aqui com a gente e não para a gente. É por isso que tento proteger ao máximo essas espécies mais ameaçadas. -Diz ela bebericando pelo canudo de vidro olhando os pôsteres nas paredes de forma pensativa.

Me sinto meio desconfortável por nunca ter pensado dessa forma e também culpada.

-Você e seu irmão cuidam de tudo sozinhos? Apenas com o dinheiro da lanchonete? -Pergunto, me dando conta de que se isso for verdade os dois devem passar o maior aperto, uma vez que não tem mais nenhum cliente aqui dentro.

Ela ri, me achando inocente.

-Ah não. O dinheiro que fazemos aqui é só para dar conta das despesas como combustível, água, luz e internet. Mantemos a instituição com doações, algumas de pessoas famosas e outras de anônimos. Não é muito, mas conseguimos viajar para resgatar algumas espécies presas em cativeiro e pagar veterinários para que os reabilitem para voltar a selva sãs e salvos.

Ela se vira e aponta para a arara que continua parada no poleiro.

-Aquela é a aurora. Resgatamos ela de um depósito de contrabando lá na Argentina a uns dois meses atrás. Eles a mantinham junto com várias outras espécies e durante as várias viagens que eles faziam para tentar comercializa-las a Aurora quebrou a asa. Uma coisa horrível. -Comenta com a voz embargada de tristeza.

-Nossa... Isso é tão cruel. -Concordo, olhando para a enorme ave com a asa encolhida.

-Sim, e isso nem é o pior que eles fazem. Eu a trouxe para cá e estão cuidando da asa dela, logo menos vamos levá-la de volta a Argentina.

Fico surpresa e minha testa se enruga.

-Eu achei que ela fosse ficar com você... Parece que se dão muito bem.

Lily suspira dando um sorriso meio triste.

-E nos damos. Adoro ela, mas lugar de animal silvestre não é na cidade. Infelizmente ela não pode voltar para a selva, ou vai acabar morrendo por causa da asa, mas vão mantê-la em um viveiro. Não podemos arriscar perder mais nenhuma ararinha vermelha.

Aceno com a cabeça me compadecendo pela dor que Lily deve sentir ao saber que embora se esforce, provavelmente não vai conseguir salvar a espécie.

Mal percebo, mas acabo de comer todo o sanduíche e para alguém que inicialmente não estava com nenhum pouco de fome isso me deixa realmente surpresa.

-Enfim, chega de falar de mim. Me fale sobre você. -Ela chama minha atenção depois que ambas ficamos um tempo caladas.

É estranho, mas não sei o que dizer porque nunca precisei falar sobre mim com ninguém antes.

-Eu...

-Você está muito triste, tem uma áurea acinzentada enevoando seu rosto de vez em quanto. -Ela diz de repente, me interrompendo para me olhar como se pudesse enxergar além de mim.

Confusa e me sentindo exposta abaixo a cabeça. Está tão na cara assim?

-Eu achei que você tivesse dito que eu tinha uma energia forte. -Digo rindo para disfarçar meu nervosismo.

Lily estica a mão e toca a minha de novo fechando os olhos.

-Sim, é muito forte, mas isso não significa que seja só por coisas boas. Você está sobrecarregada, com um peso muito grande em suas costas e... Nossa... Seu coração está partido. -Murmura ela enquanto passeia os dedos por minha palma como se fosse capaz de ler as minhas linhas.

Involuntariamente encolho minha mão, me sentindo agitada e desconfortável.

Lily abre os olhos de volta ao presente e toma mais um pouco do suco.

-Me desculpe se te assustei, geralmente eu consigo me controlar, mas nunca senti isso de ninguém assim.

Coloco as duas mechas de cabelo para trás das orelhas apenas para ocupar minhas mãos trêmulas e meu coração acelerado. Odeio que eu pareça tão destruida como me sinto, passei boas horas conversando com ela e me esqueci dos problemas e é claro que não ia durar para sempre.

-Como é isso? Você tem um dom ou sei lá.. poderes? -Pergunto para mudar de assunto.

Ela sorri e balança a cabeça.

-Não. É mais como se fosse uma percepção entende? Sou sinestésica e cada som que escuto surge em minha cabeça em forma de cores, sempre tive isso e também sou super sensível, consigo me conectar com as pessoas muito fácil, especialmente pela palma das mãos que é um canal direto para a alma. Sua voz na minha cabeça é um tom fraco de lilás, o que me diz que está triste.

Ela me analisa completamente e eu fico impressionada e envergonhada como nunca antes. Já tinha ouvido falar sobre sinestesia, a condição genética que faz com que algumas pessoas possam ouvir as cores ou sentir o gosto do som, mas até então achei que nunca iria conhecer alguém assim.

Percebendo que fico extremamente perdida em meus pensamentos, Lily muda de assunto.

-Então, você gostou da comida?

-Caramba, eu amei, é realmente muito boa. -Digo com um tom entusiasmado exagerado, mas não estou mentindo estava realmente delicioso.

-Ah, que maravilha! Você tem que conhecer meu irmão é ele quem cozinha.

Lily levanta sem esperar que eu responda e vai correndo com sua saia balançando até o final da lanchonete e entra por uma porta lateral.

Nesse meio tempo tento me recompor, respirando bem fundo para me deixar menos tensa depois de quase ter entrado em surto com o que Lily disse. Não me contenho e verifico a última mensagem que Mary me mandou em resposta a minha.

Liguei para a Sophia e ela me disse que ele também não ligou para ela, nem para falar com a Sarah. Você pode conversar comigo, Millie? Me explicar o que aconteceu com vocês?

Todos os esforços para me acalmar se acabam e meu coração se enche gradativamente de preocupação e medo, claro que o fato de Mary me lembrar que ele poderia estar com Sophia também não me ajuda em nada.

-Aqui .. essa é a...

-Ah, não. Pode parar Lily, só porque você não conhece gente famosa não quer dizer que eu também não conheça.

Ergo meu rosto para ver que Lily tinha voltado, dessa vez trazendo um rapaz com ela. Nitidamente mais novo, mas são bem parecidos, de pele branca e com a mesma feição sorridente e calma, seu irmão deve ter a minha idade e seus cabelos castanhos e lisos são grandes na altura dos ombros o que lhe dá uma aparência de surfista. Ele usa uma camisa estampada com flores escuras e uma calça no mesmo tom, só que não dá para ver muito bem por causa do avental branco que usa por cima.

-Prazer, sou Romeo. -Ele diz abrindo um sorriso com dentes perfeitamente alinhados e brancos que me surpreendem.

Fico olhando para seu braço cheio de tatuagens pretas de desenhos que não consigo identificar de primeira e quase esqueço de responder. Saindo do esturpor balanço a cabeça e aperto sua mão.

-Millie...

-Uau. -Ele diz olhando para nossas mãos juntas.

Seus dedos também são cheios de tatuagens e de anéis.

Lily segura em seu ombro, encarando o irmão.

-Você sentiu também? -Pergunta ela curiosa, então me lembro de toda a história sobre energia que ela falou.

-Sim. É impressionante. -Ele fala admirado enquanto vararosamente alisa o dorso da minha mão com o polegar.

-Você também é sensitivo? -Decido perguntar aproveitando para colher minha mão e agarrar de novo meu celular.

-Não tanto quando a Lily, mas também sinto algumas coisas apesar de não ter sinestesia. -Diz ele, ainda emcabulando olhando para a própria mão.

Fico com medo dos dois entrarem demais nesse assunto e comentarem sobre a minha "áurea acinzentada de tristeza" então mudo de assunto.

-É você quem cozinha? Eu adorei o sanduíche, estava muito bom.

Ele dá um sorriso meio tímido e coloca a franja suavemente para trás.

-Obrigado, as pessoas costumam me elogiar bastante, mas ouvir isso de alguém como você é totalmente diferente.

Sinto minhas bochechas corarem por alguma razão e é minha vez de ficar tímida.

-O Romeo é muito bom com medicina natural, Millie. Se você quiser ele pode fazer uma massagem ou dar um banho de ervas no seu pé machucado. -Lily diz, indicando minha bota que achei que ninguém tivesse percebido ainda.

-Imagina, eu não quero dar trabalho. -Recuso com um movimento de cabeça frenético.

Não porque não me sinto curiosa ou avontade na frente deles, mas porque agora estou com a cabeça longe demais para pensar em uma massagem.

-Não é trabalho nenhum. Tenho certeza que você vai se sentir bem melhor depois de um aguento poderoso que tenho lá dentro. -Romeo insiste com sua expressão naturalmente tranquilizante, para a qual parece ser impossível dizer não.

-Tudo bem, então.

Depois de me convencer tento me levantar do banco e Romeo rapidamente segura em minhas costas e em meu braço para me dar sustentação.

-Eu ajudo você.

Nossos olhos se encontram e eu percebo que os seus são verdes, um tom que me faz lembrar folhas de arvores novinhas ou a água de um lago calmo. Ele é lindo.

-Obrigada.

Os dois me levam até a mesma porta dos fundos, Romeo prontamente me segurando ainda que não seja tão necessário assim, mas não tenho coragem de falar que posso andar quase perfeitamente só, porque... De repente, é bom ter alguém fazendo isso além da minha enfermeira.

O cômodo que se acende na minha visão não passa de um kitnet mobiliado e organizado. Há uma cama pequena sob em uma janela de metal, dois bancos imitando os da lanchonete algumas almofadas grossas espalhadas pelo chão, um armário, uma escrivaninha no canto e mais duas portas de madeira fechadas.

O chão é coberto por um carpete vermelho escuro e as luzes vem de várias luminárias espalhadas pelo teto que me lembram vaga-lumes.

-Sente aqui. Vou preparar o aguento e já venho. -Romeo diz ao me ajudar a sentar na ponta da cama.

O movimento faz com que meu vestido suba um pouco, revelando minhas pernas por baixo do vestido. Ele não passa muito tempo olhando, mas sei que repara antes de puxar um travesseiro macio para que eu coloque sobre as coxas.

Depois ele vai em direção a uma das portas e sai por ela.

-Aqui é bem pequeno, mas ele faz questão de morar aqui dentro mesmo assim.

Viro meu rosto para Lily quando ela fala sentando ao meu lado e percebo que passei uns bons segundos olhando para onde Romeo tinha ido.

-Você não mora aqui também? -Pigarreio, morta de vergonha.

Ela olha ao redor e acha graça.

-Não, boba. Mal cabe ele sozinho aqui. Tenho um apartamento, não é muito maior, mas assim conseguimos manter pelo menos um pouco da nossa privacidade.

-É lá dentro que ele prepara a comida?

-Não, ali é a porta para o quintal, a cozinha da lanchonete fica na outra porta. -Ela continua sorrindo, mas passa a me olhar de forma esquisita. -Ele é bem bonito, não é?

Sinto que ela sabe muito bem que fiquei olhando, aliás não fui nada discreta. Ao invés de dizer alguma coisa apenas confirmo com a cabeça.

-Ele tem apenas vinte e dois, mas já passou por poucas e boas. Tem um coração enorme e as pessoas se aproveitam disso.

Ela parece pensativa ao dizer, o que me faz pensar que está triste por alguma razão.

-Aconteceu alguma coisa com ele?!

Ela respira fundo e olha de novo em direção a porta esperando para ver se Romeo surge de novo.

-Se envolveu com uma garota a uns anos atrás que o arrastou para um monte de coisa ruim, inclusive drogas. Está tentando se recuperar a dois anos e eu passei esse tenpo todo tentando trazê-lo para o mundo de novo. Foi bem difícil e ele agora não quer mais se envolver com ninguém.

Meu coração se aperta ao ouvir, pois involuntariamente minha mente faz um comparativo dessa situação com a minha e de Finn mesmo que não tenha nada a ver. Lily passou dois anos lutando para ter o irmão de volta e eu desisti de Finn em apenas dois meses... Só que diferente de Finn, Romeo queria ser ajudado.

Quando penso em responder alguma coisa ele volta do quintal trazendo uma bacia cheia de água escura nos braços e Lily de levanta para dar espaço.

-O que você usou na mistura? -Ela pergunta, quando Romeo se ajoelha na minha frente com a bacia.

-Um pouco de tudo. Aloe Vera, calêndula, camomila e um pouco de óleo de girassol. -Diz ele parecendo muito experiente.

-Ah, poderosíssimo. -Lily fala impressionada.

Romeo toca suavemente meu tornozelo.

-Posso? Preciso retirar a bota, mas sei colocar de novo.

Aceno com a cabeça, mas não consigo esconder minha apreensão ao me lembrar da hora em que o médico retirou minha sandália e na dor insuportável que senti.

-Acho que chegou um cliente. Vou lá fora atendê-lo. -Lily anuncia pouco antes de sair e nos deixar sozinhos.

Eu desvio o olhar quando Romeo abre a primeira faixa de velcro que envolve a bota.

-Sabia que esse aguento me ajudou a curar uma perna quebrada? -Diz ele, com a intenção de me distrair enquanto retira o restante das faixas.

-Serio? É meio difícil de acreditar que um pouco dessa água pode curar alguém. -Deixo escapar meu medo, me sentindo extremamente arrependida de tê-lo deixado tirar minha bota.

Ele solta uma risada baixa, gostosa de ouvir e balança a cabeça.

-Antes, quando não existiam remédios nem medicina, nossos ancestrais só se curavam na base das plantas e banhos. Pode parecer besteira agora, mas se não vai ajudar tenho certeza de que piorar não vai.

Eu rio e ele finalmente termina de retirar a bota.

Vejo meu pé pela primeira vez desde que o machuquei e perco o fôlego. Está bem inchado, com uma mancha enorme roxa que começa do meio do peito do pé e vai até meu dedo mindinho.

Com cuidado Romeo o abaixa para ficar mais na altura da borda da bacia e eu sugo um pouco do ar pelos dentes.

-Desculpe, te machuquei? -Ele pergunta, alarmado por minha reação.

-Não, só... Está um pouco sensível ainda. Me machuquei hoje mais cedo.

Ele acena e volta a olhar para meu pé.

-Não quero parecer intrometido, mas... Como você se machucou?

-Ah... -Hesito, mas decido contar. -Eu derrubei sem querer uma caixa com a miniatura de um carro nele.

Romeo ergue a cabeça e seus olhos se arregalam.

-Caramba, está explicado então. -Diz ele voltando a encarar meu pé. -Esse coisas pesam bastante.

Confirmo com um movimento de cabeça me lembrando da dor no momento em que a caixa caiu.

-Mas o que alguém como você estava fazendo com uma caixa como essas? Certamente não é algo bem a sua cara.

Como Romeo permanece de cabeça abaixada tenho tempo de fechar os olhos quando ouço a pergunta.

-Era um presente para uma pessoa, mas só serviu pra me machucar, não só fisicamente. -Confesso, embriagada pela sensação de seus dedos suaves em minha pele sensível.

Ele fica calado por um tempo, então sei que deve ter compreendido. Seus dedos se movem aplicando uma massagem muito suave entre meus dedos evitando a parte mais ferida e eu sinto a água morna aquecer toda a região.

-Esse lance da relação das mãos é bem forte. Parece loucura, mas consigo sentir que você está passando por um momento difícil só ao tocar sua pele.

Sua voz me faz despertar do momento de relaxamento e eu abro os olhos.

-Sua irmã disse a mesma coisa. -Digo, com a sensação de um nó entupindo minha garganta.

Ele me encara profundamente, como se também pudesse enxergar além de mim e seus dedos nunca param de se mexer. Parece loucura, mas me sinto tão querida e bem cuidada, o que é um contraste absurdo com o que Finn fez comigo, que fico com vontade de chorar.

-Nós temos uma vida bem simples, mas é o melhor tipo de vida possível. Se você quiser podemos dar um pouco disso pra você. Não estou falando só das massagens. Minha irmã é uma excelente mentora de meditação e eu sei que isso pode ajudar bastante também a resolver as questões do coração.

Fico realmente emocionada ao ouvir isso, compreendendo que ele disse isso por experiência própria já que sofreu tanto também. No entanto não consigo responder evitando assim acabar chorando.

Quando Romeo termina de lavar meu pé ele coloca a meia de volta junto com a bota e me ajuda a levantar. Voltamos para a lanchonete e encontramos Lily atrás do balcão meio ocupada agora que tem duas mesas ocupadas, então Romeo deixa o garoto que é garçom no comando da cozinha e Lily na recepção se oferecendo para me levar para casa.

Eu aceito rápido, somente porque sei que se ficar mais vou acabar atrapalhando o pouco movimento que eles tem. Na parte de fora da lanchonete começa a ventar bastante e Romeo arranja um casaco para que eu coloque enquanto vai buscar o carro.

Enquanto espero, fico pensando em todas as coisas que aconteceram em um único dia na minha vida e foi como se de manhã eu estivesse estado no inferno e agora estava no paraíso, conhecendo pessoas maravilhosas que com certeza não queria mais me afastar nunca.

Quando Romeo para com uma Kombi dos anos oitenta pintada de verde claro com antenas na parte de cima, logo imagino ser o carro de Lily, o louva-deus. Dou risada e entro dentro dele, descobrindo que além de confortável dentro tem um cheiro bastante agradável de terra molhada e flores.

Durante o caminho, ele volta a conversar comigo, me distraindo com ainda mais histórias, sem citar nunca o que aconteceu com a tal namorada e eu não toco no assunto, sabendo exatamente o porque de ser difícil.

 Só deixo para me preocupar de verdade quando chego em casa, que é quando tenho a constatação de que Finn realmente não voltou para casa nem deu sinal nenhum para Mary, quando ela me manda mais mensagens.

Sinto meu coração apertar de preocupação e medo por ele, mas também tenho  a constatação definitiva de que não posso salva-lo e pela primeira vez em muito tempo me sinto pronta para desistir.  


Notas Finais


Não tô chorando, vc que tá!!


Até breve ♥️


Gostou da Fanfic? Compartilhe!

Gostou? Deixe seu Comentário!

Muitos usuários deixam de postar por falta de comentários, estimule o trabalho deles, deixando um comentário.

Para comentar e incentivar o autor, Cadastre-se ou Acesse sua Conta.


Carregando...