Os olhos rosáceos abriram-se, piscando para a manhã fria. Ela não quis levantar cedo naquele dia, sequer queria sair da cama para enfrentar o mundo, mas devia fazê-lo, sabia que ficar ali só pioraria seu estado.
Estremeceu ao entrar em contato com a frieza do inverno, indo até o banheiro para tomar um banho quente.
Demorou o máximo que pôde lá dentro, sentindo a água quente quase machucar a pele, enrolou-se na toalha, parando em frente ao espelho nublado pelo vapor de água. Limpou-o, encarou seu reflexo e pensou no quanto aquela imagem machucava seus familiares, a cada ano ficava mais parecida com a mãe, pelo menos era o que todos diziam e as fotos e quadros confirmavam.
Suspirou e desviou o olhar, não aguentando ficar ali por mais tempo. Vestiu-se com seu vestido mais quente e colocou uma meia-calça por baixo, calçando suas botas logo depois. O cabelo ela apenas penteou e secou com a toalha, arrumando-o da melhor maneira que conseguiu. Há um tempo atrás ela ainda utilizava criados para ajudarem com suas tarefas básicas, como vestir-se e arrumar seu cabelo, com certeza parecia mais digna do título de princesa naquela época, porém decidiu virar-se sozinha, em parte porque sentia raiva de tudo o que envolvia aquele palácio e estava cansada de ser paparicada por todos. Preferia andar desarrumada do que aquilo, atualmente só se deixava ser aprontada para eventos especiais.
Ela saiu do quarto, percebendo como o número de guardas havia aumentando nos corredores enquanto passava por eles. Ela desceu as escadarias, rumando para fora do palácio.
- Para onde pensa que vai? - Nina falou, saindo do salão das damas.
- Apenas quero fazer um passeio, faz tempo que não vou lá fora.
Nina franziu as sobrancelhas, aproximando-se.
- Estava desmaiando de febre há duas semanas atrás, é melhor não entrar em contato com o frio lá de fora.
- Prometo que serei breve - Noelle andou até os portões do palácio, sendo parada pela mão de Nina em seu braço.
- É melhor não - Nina olhou-a com firmeza.
Noelle apertou os punhos, sentindo a raiva arder dentro de si. Ela respirou fundo, soltando seu braço do aperto da mão de Nina.
- Eu vou mesmo assim - a garota levantou o queixo.
- Está errada sobre isso - Nina acenou para os guardas, que se aproximaram. - O rei me deu a liberdade para agir diretamente sobre suas ações caso seja necessário, e você claramente não está raciocinando bem.
A princesa fraquejou, piscando para afastar as lágrimas de fúria e traição.
- Você sabe que dia é hoje.
- Sinto muito, mas não posso deixá-la sair, é muito perigoso - a mulher tentou se aproximar de Noelle, mas a garota se afastou do toque com uma feição de nojo.
- Vocês têm medo de que algum rebelde me capture? Não acho que alguém sentiria minha falta de qualquer forma!
- Chega! Não chame mais atenção para si, está fazendo um show para todos verem.
Noelle riu com desprezo, perdendo todo seu auto controle. Ela se aproximou da funcionária, olhando-a nos olhos.
- Você não tem o direito de tentar cuidar de mim - sua voz estava fria ao dizer aquelas palavras. - Perdeu esse direito no momento em que virou as costas para o que eu estava sentindo, pensando apenas em suas malditas ordens!
Yuno observava a cena no segundo piso do palácio, ao seu lado se aglomeravam alguns soldados curiosos. Ele se aproximou do conflito com as sobrancelhas franzidas, seus olhos estavam em Noelle, a garota parecia prestes a explodir de raiva, suas mãos tremiam e o rosto estava vermelho, ele nunca havia a visto tão furiosa.
Nina notou a aproximação do guarda, buscando apoio no garoto:
- Yuno me ajude a convencê-la! - pediu. - Ela está querendo sair mesmo sabendo que corre perigo, não está pensando direito.
Para a surpresa de Noelle, Yuno respondeu:
- Posso protegê-la lá fora.
Nina hesitou, seus olhos indo de Yuno para Noelle. Foi o momento da princesa agir, segurando a mão de Yuno.
- Parece que você não possui mais nenhum argumento para me manter aqui - Noelle falou, com cinismo.
A garota puxou a mão de Yuno, levando-o com ela para o lado de fora antes que Nina pudesse dizer alguma coisa. Ainda estava nervosa, tão nervosa que sequer percebeu que ainda segurava a mão do guarda, ela rumou para o lago mesmo sabendo que talvez estivesse congelado.
Yuno deixou que Noelle o puxasse, podia ouvi-la murmurando consigo mesma.
Eles pararam em cima de um pequeno morro coberto pela neve, lá embaixo podiam ver o lago congelado e o deck, a escada que levava até lá embaixo estava escorregadia e perigosa para se descer.
Yuno decidiu deixar Noelle se acalmar em silêncio, ainda via-a apertar as mãos em punhos, como se fosse voltar até o palácio para socar o rosto de Nina. Apesar da tendência agressiva, Yuno percebeu que preferia enfrentar aquela Noelle cheia de sentimentos conflituosos do que a garota fechada e para baixo que ela havia se demonstrado no dia anterior.
- Que dia é hoje? - ele perguntou de repente.
- O que?
Noelle assustou-se, percebendo que ele estava ao lado dela. Em meio ao seu momento de fúria sequer percebeu que o levava consigo para seu lugar favorito, largou a mão de Yuno, sentindo-se constrangida.
- Foi o que você falou para Nina: “Você sabe que dia é hoje” - Yuno se justificou.
- É meu aniversário. Um dia amaldiçoado.
- Por causa da morte da sua mãe?
Ela assentiu, apertando os lábios um contra o outro. Yuno odiou aquela visão, desejando que ela pudesse sorrir petulante para ele de novo.
- Esse é um dia delicado para toda a família, é subentendido que devemos ficar de luto e não comemorar, mas Mimosa sempre me fazia sorrir. Ela até mandou fazer um bolo para mim, nós comemos escondidas no meu quarto - ela sorriu fraco, colocando uma mecha do cabelo prateado atrás da orelha.
- Você já ganhou algum presente além do bolo?
- Uma vez Nozel me deu um colar.
- Só esses dois? - ela assentiu. - O que você quer ganhar? - ela pensou por um momento, sentindo-se mais animada.
- Uma experiência - falou, observando Yuno olhá-la com estranheza. - Eu já possuo tudo de material que posso desejar, mas tenho poucas experiências na vida.
Yuno olhou-a pelo canto dos olhos, notando os cabelos úmidos de Noelle e a falta de roupas quentes para estar ali fora. Nina estava certa sobre ela estar sendo irresponsável. Ele retirou seu casaco, ficando apenas com o blusão de lã que utilizava por baixo, mas que era o suficiente para se manter aquecido, ainda mais se utilizasse magia para ajudá-lo a se esquentar.
- Vista isso - estendeu-o para Noelle, mas a garota não fez nenhum movimento para aceitar a roupa que lhe era oferecida.
- O que…? - murmurou, surpresa.
- Você está tremendo de frio e seu cabelo está molhado - Yuno explicou com indiferença.
- Mas e você? - ela sentiu suas bochechas queimarem pela vergonha.
Yuno revirou os olhos, aproximando-se dela e estendendo os braços ao redor dos ombros de Noelle, quase como se fosse abraçá-la. Ele largou o casaco sobre os ombros da princesa, afastando-se logo em seguida.
- Vista logo.
Noelle piscou, saindo de seu estado de torpor. Sentia o calor do casaco em seus ombros e costas, fazendo-a sentir-se mais envergonhada ainda ao pensar que o calor provinha do corpo de Yuno, onde a peça de roupa estava momentos antes.
Ela não sabia o que pensar, estava tão surpresa, tão… estranha. Yuno havia sido gentil, não só gentil, atencioso também. Subiu o olhar para ele, detendo-se mais um vez ao perceber os olhos dourados olhando-a de volta, seu coração falhou uma batida.
Ele vestia cores escuras que contrastam com o ambiente claro caracterizado pela neve, os cabelos estavam mais crescidos e algumas mechas negras caiam sobre o rosto, parecia algum tipo de herói das histórias infantis, alto e lindo, com um olhar que faria seu coração derreter.
Noelle ignorou as palmas suadas de suas mãos e a sensação de embrulho que sentia na barriga.
- Obrigada - murmurou, vestindo o casaco e erguendo os braços totalmente cobertos pelo tecido.
Ela riu, tentando encontrar suas mãos dentro das mangas do casaco.
- Ficou gigante - ela falou, notando que Yuno a analisava. - O que foi?
- Parece um menino - ele provocou.
- Sou mais máscula que você - falou, abaixando-se para pegar uma bola de neve, mas Yuno foi mais rápido acertando-a na cabeça.
- Não é o que parece - ele riu, jogando consecutivas bolas de neve na garota, que gargalhava enquanto era atacada.
Ele sentia-se mais calmo agora que Noelle tinha voltado ao seu estado de espírito natural. Yuno também foi acertado por muitas bolas de neve, e algumas ele desviava com magia.
- Ei, isso não vale! - Noelle reclamou, fugindo dos ataques do garoto e tentando, também, afastar as bolas de neve com magia, porém conseguindo pouco êxito.
Yuno decidiu que faria daquilo um treinamento, começou a utilizar a magia para arremessar grandes quantidades de neve na princesa, ele podia ouvi-la gritando e às vezes rindo. Ela correu para atrás de uma árvore, mas Yuno lançou uma rajada de vento que fez com que a neve acumulada nos galhos caísse sobre a cabeça da garota.
- Seu covarde! - ela gritou.
- Vai ficar choramingando, princesa?
Noelle semicerrou os olhos para ele, vendo-o se aproximar da árvore, ela foi para o outro lado do tronco, esquivando dele.
- Não vale, eu nem sei usar magia direito - justificou-se.
- Procure o grimório dentro de você, talvez possa senti-lo.
- Não com você me perseguindo como uma presa.
Yuno sorriu, gostando do uso das palavras.
- Você está sendo uma presa fácil até agora.
A voz dele veio de suas costas, ela gritou, virando-se e dando de cara com o sorriso vitorioso de Yuno. Ele fez um movimento elegante com a mão, provocando uma onda de neve na direção de Noelle, ela ofegou, fechando os olhos.
- Parabéns - ouviu a voz de Yuno. - Você conseguiu.
Noelle abriu os olhos, nenhuma onda de neve havia batido contra ela, e não fora pela piedade de Yuno, mas sim porque ela havia parado-a. O grimório em sua mão era de um azul claro e brilhante, parecia arder em sua mão, contendo um tipo de vibração que só ela podia sentir, ela tentou virar uma página do grimório, porém ele simplesmente desapareceu de sua mão, fazendo-a assustar-se.
- O que eu fiz?
- Ainda consegue senti-lo? - Noelle negou, preocupada. - Terá que tentar mais tarde então, mas veja isso como um progresso.
Ela assentiu, relaxando. Voltou-se para Yuno, apontando um dedo acusatório para ele.
- Você é um grande manipulador.
- Depende do ponto de vista - ele deu de ombros.
- Você deveria pensar no que lhe falei sobre virar um homem de negócios - ficou feliz ao vê-lo sorrir.
- E então, qual experiência quer ter? - ele perguntou de repente.
Sentiu novamente aquela hesitação acompanhada pelo nervosismo, Yuno pretendia lhe presentear com alguma experiência?
- Eu não sei... - respondeu.
- Certo - ele concordou e não falou mais daquele assunto enquanto ficaram ali fora.
Retornaram para dentro quando começou a nevar novamente, Noelle praticamente precisando ser carregada para o palácio.
Suspirou, lendo pela milésima vez a mesma frase do livro. Simplesmente não conseguia se concentrar, o motivo de sua distração era apenas um: Yuno.
Ela largou o livro de lado, pressionando a palma das mãos sobre os olhos cansados. Pare com isso, falou para si mesma. Ouviu uma batida na porta e correu para atendê-la, feliz por poder se livrar de seus pensamentos, porém deparou-se com o motivo de sua desgraça.
O garoto estava incrivelmente mais bonito do que mais cedo, utilizava um cachecol negro, assim como as roupas. Noelle pestanejou diante daquela cena, querendo bater a porta na cara de Yuno e ir dormir, quem sabe assim pudesse voltar ao seu estado de normalidade.
- Coloque uma roupa quente - ele falou.
- Por que?
Yuno revirou os olhos, esperando por aquela resposta.
- Vamos para o telhado, quero lhe mostrar uma coisa.
O coração de Noelle acelerou e ela hesitou, fazendo Yuno pensar que ela não aceitaria sua oferta.
- Certo, espere aqui.
Noelle voltou vestindo calças de couro como as que havia utilizado na caçada e um casaco longo de lã que era aberto na frente, calçava as botas de couro que havia utilizado de manhã.
- Essas são suas roupas quentes?
- Algum problema? - ele suspirou.
- Esquece, posso utilizar um feitiço que a proteja do frio.
Eles saíram andando pelos corredores lado a lado, com Noelle o bombardeando de perguntas sobre o que fariam no telhado, ele apenas revirava os olhos e a ignorava.
Ela estremeceu ao sentir o frio da noite tocar sua pele, mas logo sentiu a mana de Yuno envolvê-la, mantendo-a aquecida. O telhado estava repleto de neve, mas claramente alguém havia limpado o local, visto que havia um caminho em meio ao amontoado branco, provavelmente feito por Yuno. O garoto foi até a beira do precipício, como sempre fazia, Noelle o seguiu de perto, curiosa.
- Você tem medo de altura? - ele perguntou.
- Não muito - ela falou.
- Tudo bem - ele respondeu e então pulou do prédio.
Os olhos de Noelle arregalaram-se e ela sufocou um grito de desespero, correndo até a borda e vendo Yuno planar no ar. Seu rosto era a perfeita imagem do assombro quando Yuno pousou em sua frente, mas então ela fez algo que ele não esperava, levantou a mão e deixou um sonoro tapa no rosto do garoto.
Ele tocou o rosto, atônito.
- Suponho que mereci isso - falou depois de se recuperar da surpresa.
- Você merece muito mais do que um tapa, quase me matou de susto! Não ria!
- Tudo bem - ele levantou as mãos em sinal de rendição.
Noelle suspirou, tentando se acalmar depois do momento de desespero. Apesar de não se arrepender de tê-lo agredido, sentia-se culpada, mesmo que Yuno não parecesse ter ligado para aquilo. Ela precisou se controlar para não tocar a parte avermelhada da bochecha onde o tapa havia acertado.
- Vai ter coragem? - Yuno perguntou.
Ela olhou-o desconfiada, ele estava mesmo a convidando para aquilo? Era loucura. Lendo a expressão de Noelle, Yuno continuou.
- Você queria uma experiência. Isso é uma experiência.
- Você não pode estar falando sério.
- Vai amarelar? - ele levantou apenas uma sobrancelha para ela, a desafiando.
Ela mordeu o lábio, não havia o que pensar, sabia que acabaria aceitando de qualquer forma. Não podia negar um desafio, nem sua natureza imprudente.
Yuno observava-a com o divertimento disfarçado, achava engraçado o modo como ela vivia sua vida, podia ver o quanto ela amava a adrenalina. Parada ali no telhado em meio a noite com os cabelos prateados voando ao redor do rosto bonito, ela parecia algo indomável. Selvagem.
- Vamos logo com isso.
Engoliu em seco quando Yuno agitou os ventos e planou para fora do telhado, ela ficou parada na ponta do prédio, ouvindo as batidas aceleradas de seu coração. Ele sorriu para ela e estendeu a mão, ela hesitou por um momento, olhando nos olhos de Yuno.
- Não vou deixá-la cair - ele prometeu.
Ela assentiu e segurou a mão que ele oferecia, permitindo-se ser puxada para o vazio. Soltou um grito e apertou os olhos, mas não estava caindo, estava nos braços de Yuno.
Ela retirou sua cabeça da dobra do pescoço do guarda, olhando em volta.
- Nossa... - foi tudo o que conseguiu falar. - É tão estranho não estar pisando em nada.
Yuno riu, segurando-a fortemente pela cintura, ele falou ao lado de seu ouvido, fazendo-a sentir a respiração dele tocar sua pele:
- Vou me afastar do prédio, não se assuste - ela assentiu, respirando fundo.
Yuno deslocou-se no ar, o vento jogou os cabelos de Noelle para trás e fez cócegas em seu rosto. Ela sorriu, aproveitando aquela sensação que era como ser acariciada pelo ar.
- É muito bom sentir o toque do vento - ela falou perto do ouvido de Yuno, para que ele pudesse ouvi-la.
- Não há nada melhor do que isso - ele falou. - Voar é o que eu mais gosto de fazer.
E ele parecia realmente adorar aquilo. Estava totalmente relaxado, até mantinha um sorriso no rosto e os olhos brilhavam.
- Me mostre como é voar de verdade - ela pediu. - Sei que está indo devagar por minha causa.
Ele sorriu, nem um pouco surpreso pelo pedido de Noelle. Intensificou a força com que a segurava, aumentando sua velocidade e descendo até quase tocarem as árvores da floresta. Ouviu a risada de Noelle, feliz por ver que ela estava gostando do passeio, ele estava se divertindo tanto quanto ela.
Aumentou a altura que estavam do chão, fazendo-os subir e o vento arrastar seus cabelos para trás. Noelle gargalhou, abrindo os braços.
Permitiu-se planar, como se estivesse boiando no ar, deitou-se com Noelle acima dele.
- Estamos tão alto, é tão lindo - falou, maravilhada enquanto espiava abaixo deles. O palácio ainda parecia grandioso, mas as casas da cidade estavam muito menores, como se fossem brinquedos, a floresta se espalhava por vários quilômetros abaixo deles.
- É aqui que eu pertenço - Yuno falou, afastando uma mecha de cabelo prateado que voava sobre o rosto de Noelle.
- É um bom lugar para se pertencer.
Ela sorriu de verdade para ele, e por um momento aquele sorriso foi tudo.
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