A sensação do corpo limpo, o calor aconchegante do sol sobre a pele de seu rosto; essas sensações deveriam mantê-la calma e confortável, mas falharam. Ainda é cerca de meio-dia e meia, mas o dia já parece finalizado. Muita coisa ocorreu nesta manhã, incluindo uma descoberta universal…
A luz dourada do sol decora os gramados verdes ao redor da cidade de Anvard, cumprimentando a mulher ironicamente como uma presença salvadora. Os pensamentos em sua cabeça não fornecem um pingo de esperança. Seus olhos não veem nada além de futuras ruínas, não conseguem entregar aquela paisagem sem trazer junto o pensamento de que, em breve, nunca mais a veria na vida.
Os cabelos longos da Drovolid, amarrados numa única trança que alcança seu quadril, balançam levemente com a brisa que a atinge. O frio da fraca ventania congela o corpo de Artana, que agarra o parapeito da varanda com força. Em um momento, ela se pergunta qual a sua função nessa situação.
Mesmo que mantenha a postura de uma verdadeira guerreira a todo instante, ela mesma quase não consegue conter a vontade de chorar. Até ela admite seu medo, principalmente agora...
“Senhorita Shimizu.” Ela no mesmo instante se recompõe, abafando seus pensamentos por enquanto. A mulher então vira-se, capturando com seus olhos a pessoa dona da voz. Caminhando em sua direção, ela vê o emissário do Jarl – Adre Warborn, acompanhado de um rosto feminino levemente familiar.
A figura apresenta baixa estatura e rosto relativamente jovem, e isso é um fato que chama um pouco de atenção, visto a posição que ela ocupa socialmente. Seu cabelo loiro é preso num rabo de cavalo, volumoso e extravagante em sua perfeita coloração dourada. Seus olhos vermelhos são amigáveis, mas dá para saber quão ameaçadores podem se tornar com um único fitar.
Sua roupa é majoritariamente avermelhada, repleta de detalhes dourados, muito parecida com a roupa de Misha em cores e estilo. Algumas das poucas diferenças são o grande laço em borboleta vermelho em seu abdômen – onde também pendiam dois sinos esféricos. Em suas costas, guardada como uma espada embainhada, há uma simples sombrinha, em mesmo estilo e esquema de cores que sua roupa.
Essa mulher, apesar de ter um cargo ridiculamente maior, passa a mesma exata energia de Misha. Sua postura e aparência passam confiança e uma sensação de inocência a quem a observa. Mesmo que não queira ter um ar de líder, é melhor demonstrar respeito.
“Senhor Adre?” Artana o cumprimenta formalmente, apesar de não estar trajada a favor.
“Essa é a Senhorita Miranda, ou Blossom; vice-líder da Elite Escarlate. Enquanto você e Misha estavam em sua missão em Hatehell Valley, ela e Taiki nos forneceram algumas informações importantes.” Ele cita. “Primeiramente, o Jarl pede desculpas caso as coisas não tenham saído muito bem como o planejado.”
“M-meu Jarl não precisa se desculpar, não para mim!” Artana responde, ainda tentando manter uma postura formal.
“Ele insistiu. Alega que a culpa é dele em exigir tanta urgência dessa missão. Você sabe como o Alvorecer é um artefato importante para a manter a humanidade em segurança.” O emissário retruca.
“Exatamente por isso. Eu teria feito o mesmo.”
“Se você diz… Senhorita Shimizu, a Blossom está aqui em busca de informações a fim de progredir nessa missão e, claro, eu repassarei tudo ao Jarl.”
“Eu já imaginava...” É claro que eles estariam ali para falar disso, mas como Artana dirá qualquer coisa sobre o Dragão enquanto segura seus sentimentos sobre isso? Como alguém se mantém emocionalmente estável enquanto descreve o absoluto fim dos tempos?
“Conta pra mim o que aconteceu no Mundo Superior, por favor” Miranda pergunta. A formalidade da conversa caiu bastante só com essa escolha de conjugação de verbos. Não é ruim, com certeza é uma tentativa de acomodar a soldada.
Formal ou não, ela tem que contar. Eles vão compreender o medo dela, isso é certo. Afinal, todos sentem medo de algo, ainda mais disso.
“Ele tava lá.” Ela começa. “Nossos alvos estavam dentro de uma casa, e quem nos atendeu foi um menino da mesma aparência que as lendas sobre o Dragão dizem, e eram dois: ele e uma garota, acho que a irmã.” Ela continua. “Eu e a Misha entramos na casa e tentamos pegar a Emi Shimizu e a Rimi Satou, a garota tentou me atrapalhar e eu nocauteei ela fácil, até estranhei um pouco… Só que na mesma hora, o outro veio pra cima de mim e derrubou eu e a Misha.”
“E aí?” Miranda pergunta.
“Nós tentamos conversar com ele, mas nada ficou muito esclarecido, ele disse que não sabia de nada... Parece que não sabia nem o que era o Alvorecer. Tudo o que concordamos é que ele e a garota não nos atrapalhassem em nossa missão.”
“É isso?”
“Infelizmente não...” Artana puxa o ar e, com a voz levemente trêmula, continua: “A gente levou a luta pra fora da casa. A gente tava vencendo, mas aí elas pararam e parecia que tavam rezando…”
Miranda adota um olhar mais curioso diante da citação.
“E aí eu vi o garoto saindo da casa, caminhando na nossa direção...” Artana continua, suspirando no meio de sua fala e diminuindo um pouco o tom de sua voz. “Ele... mandou a gente ir embora, e logo aí eu já sabia que tinha algo de errado... Eu senti que tinha que obedecer, porque aquela postura tava diferente demais...” Ela complementa. “A Misha tentou conversar de novo, mas assim que ela abriu a boca ele... Ele foi pra cima… Ele desmaiou a Misha em um instante…”
O som de sua voz se mistura com o do atrito do vento contra suas narinas e boca. Sua respiração fica cada vez mais ofegante e mais audível, mas a postura se mantém. Mesmo que tenha medo, mesmo que seu corpo trema e implore por piedade, sua imagem como Kor de Dozoviel se mantém.
É difícil acreditar como o psicológico do maior guerreiro pode ser frágil, como a imagem da muralha mais inabalável pode ser destruída em pouco tempo. Isso não afeta apenas a ela, mas também as pessoas ao seu redor.
Ver alguém tão forte passando por momentos difíceis é avassalador; aquela pessoa é simplesmente intangível. Não importa quão forte, quão bem sucedida, quão famosa a pessoa seja, ter seus medos e traumas é o que a torna humana acima de tudo, e o que a faz se tornarem uma referência aos demais.
“Eu tentei reagir e cortei a cabeça dele com a minha foice, mas ele simplesmente se curou como se não fosse nada…! E aí eu percebi que eu tava desafiando um deus!” Ela eleva seu tom de voz, expressando cada vez mais o medo em sua face. “E aí ele me ergueu pelo pescoço e…! E…!”
“Artana…!” Ela interrompe a citação, chamando a atenção completa da Drovolid. “A Misha vai ficar bem, isso eu garanto; vocês têm ótimos médicos na cidade. Além disso, sua participação foi importantíssima pro nosso progresso, eu admiro muito a sua coragem.” Ela cita. “Eu sei que é difícil pensar nisso, mas eu prometo que vamos vencer. Você só precisa ficar calma e focar.”
Artana ameniza sua feição e organiza seus cabelos, então lança seu último depoimento, ainda entre arfadas irregulares: "Ele me mandou avisar a todos... Me mandou avisar que ele voltou, e que acabaria com tudo em prol da justiça que ele não teve... Disse que traria a Centelha Final, e que estava mais forte do que nunca… que nenhum deus o pararia…”
Miranda rebaixa seu olhar, concentrando-se melhor em seus pensamentos. O Dragão já devia estar morto, ele sofreu uma maldição divina. Se a vontade dos deuses não é suficiente para matá-lo, quão poderoso ele deve ter se tornado ao longo de meras décadas? E o pior: toda essa força se voltará contra o Helian e o Vale de Bekirea – a sociedade que o rejeitou desde seu surgimento até que se revoltasse. Como simples humanos se protegerão e o derrotarão?
Ele se vingará, de um jeito ou de outro. O fim do mundo está marcado para essa época e, pelo visto, nem os deuses podem impedir.
“Artana, se tudo o que você me disse for verdade, a gente tem boas chances de sair na melhor!” Miranda a conforta. “Isso é tudo?”
“Sim...”
“Bom. Eu vou voltar pro Porão, tenho que informar ao resto da Elite. Você, descanse e se distraia disso, tá bem?” Ela então vira-se, caminhando de volta para a enorme porta de madeira pela qual entrou.
“Não deseja que eu a acompanhe?” Adre, que até então sequer fez questão de se intrometer na conversa, pergunta, recebendo apenas um balançar do indicador de Miranda como um ‘não’. Ele então vira-se para a soldada: “E você, senhorita Shimizu? Se deseja algo, estou à disposição.”
A mulher solta um suspiro melancólico, respondendo positivamente:
“Posso ver a Misha?”
⋆ ⋆ ⋆
“Eu juro pra vocês, tudo aconteceu bem ali!”
“Então cadê as marcas no asfalto, respingos de sangue e esse tipo de coisa?”
“Eu não sei! Deveriam estar ali! Pergunte aos vizinhos!”
Uma terceira pessoa se intromete, apontando um fato conveniente: “A gente só atendeu esse chamado porque recebemos um monte de denúncias iguais ao mesmo tempo. Se isso for um tipo de trote coletivo, todo mundo vai ser preso.”
“Não foi trote! Alguém deve ter gravado aquilo!” A cidadã insiste. “Esse garoto é um esquisito! Eu sabia que ele era envolvido com bruxaria! Ele é o demônio!”
Um par de olhos observa de longe a conversa, não sendo capaz de escutar nada além de um tagarelar abafado e distante. Pela fresta da cortina, atrás do vidro da janela, o jovem espia a presença de duas viaturas policiais. Os oficiais estão lá para enfim entender o que aconteceu mais cedo, e a pior parte disso é que essa história se espalhará rapidamente pela cidade, talvez até pelo mundo.
Atrás de si, seu Doppelganger caminha de um lado para o outro. Cast pensa incessantemente na situação, já está nesse vai e vem há uns 10 minutos.
Apesar de gostar de parecer inteligente, sua mente não está atrás de soluções, e sim de possíveis hipóteses: Ele se tornará um espécime de estudo ou algo assim? O que aconteceria com o mundo descobrindo isso? De um dia pro outro, a existência da magia é real. Como a humanidade reagirá a isso?
“Eu não parei pra pensar nisso...” Uma voz feminina – enérgica, mas doce – interrompe seus pensamentos, e ele responde na mesma hora:
“Não tinha como evitar. Vocês tinham que tá no nosso alcance durante a briga.”
“Acha que a gente vai aparecer no jornal?” Uma outra voz, de sotaque britânico, invade a conversa.
“Se a polícia descobrir antes de todo mundo, com certeza não. Eles costumam manter esses assuntos em confidencial até que decidam que é seguro o pessoal saber. Se a imprensa descobrir antes, provavelmente vão achar que é edição, se tiver vídeo.” Cast explica, então se vira para as garotas. “Esse truque de metamorfose foi o que nos salvou. Bom trabalho, gatas.”
“Isso foi um elogio?” Rimi pergunta.
“Eu falar da estratégia? Ou chamar de gata?”
“A estratégia.”
“A estratégia foi.”
“Parecia ironia…”
“Parecia?”
“E nos chamar de gata? É elogio?”
“Não, ué… Vocês são gatas, isso é só um fato.”
“Essa cantada é boa, eu deixo você tentar ela de novo depois.”
“Não é uma cantada…”
“Ok, já que ninguém leva o Cast a sério, deixa que eu falo.” Julia tira seus olhos das cortinas e se intromete de repente na conversa: “Se vocês não tivessem se transformado em duas gatinhas inofensivas, não dava pra mentir pros policiais que vieram aqui.”
Rimi observa a menina curiosamente, e logo esbanja um sorriso orgulhoso. “De nada!”
“A gente agradece o elogio…” Emi corrige a mais nova.
O rapaz entre as três meninas suspira. As memórias da conversa de mais cedo retorna à sua cabeça, junto de uma lembrança bastante constrangedora e desagradável… “Rimi…” Cast chama a garota dos olhos laranja num tom um pouco arrependido. A mesma apenas olha de volta para ele. “Foi mal pelo soco…”
Suas orelhas felinas apontam baixas para direções opostas e ela afia um pouco o olhar. “Você é durão na frente das mulheres, né?”
“Desculpa…!” Ele insiste enquanto aquela facada desliza pelo seu coração.
A antropomórfica então ergue seu rosto de novo, retomando aquela postura orgulhosa. “Me dá um beijinho que sara!”
“Tá, agora você tá de sacanagem.” Ele imediatamente muda de atitude, retornando ao jovem ranzinza de antes.
“Você tem coragem de bater em mulher, deve ter coragem de beijar uma!” Ela insiste.
“Vai, valentão!” Julia apoia abertamente a ideia, e Emi apenas o encara com um sorriso bobo. Pode ser a pessoa mais enigmática da sala, mas dá para ver que ela também aprova a brincadeira.
“Ugh… Tá!” Cast bufa, caminhando em passos furiosos na direção da neko mais nova. Ele se agacha em frente a ela. Esse sorriso é irritante, ela sabe que o rapaz se irrita, e só vai parar se ele jogar o jogo nas regras dela.
Vai ser fácil… É só beijar a bochecha dela, onde ele bateu. O garoto se aproxima do rosto da mutante, direcionando seus lábios àquela parte mais macia e desconcertantemente perto da boca… É estranho ter que fazer isso com alguém que conheceu hoje, mas deve ajudar na convivência, né?
Ele fecha os olhos e se aproxima mais…
Mas saiu do controle.
Rimi vira seu rosto e força seus lábios contra os dele. O menino recua um pouco pelo sobressalto, mas não é capaz de quebrar aquele contato; Rimi já havia envolvido seus braços nos ombros dele, e não tem como saber se por desejo, ou se pela piada.
Suas mãos agarram os braços da menina, tentando pobremente se desvencilhar, mas Rimi o puxa, fazendo-o cair com seu corpo sobre ela no sofá, e o beijo dos dois se firma mais ainda.
Quando satisfeita, Rimi finalmente quebra o beijo, e um pouco de saliva escorre da boca dele para sua blusa. Cast suga o ar perplexo, suas mãos não soltam os braços da gata enquanto ela não para de abraçá-lo.
Ela empurra o garoto para o lado, o fazendo se sentar ali no sofá, entre sua irmã e a gata que acaba de lhe abusar. As risadas de Julia e Emi aos poucos se tornam mais claras à medida que Cast volta para a realidade. Seus batimentos se regulam melhor do que antes. O tempo quase parou de novo, e dessa vez não foi obra de nenhum dragão nem nada assim. Foi o choque.
Essa deve ter sido a sensação mais bizarra da sua vida.
“É ruim dar um pouquinho de amor de vez em quando?” A gata brinca. “Mais uns 30 desse e eu te perdoo!” Cast ainda nem havia retornado completamente à realidade, além de que as risadas das outras estavam altas demais.
O garoto não expressa mais raiva, mas sim um pouco de timidez. Ele exala o ar secretamente. Foi a primeira vez que ele soltou sequer uma risadinha desde que Emi chegou na sua casa.
Ele pode ser orgulhoso, mas não costuma mentir para si mesmo tão frequentemente, ainda mais com Emi e Julia praticamente quebrando: “Tá… Foi bem engraçado mesmo…”
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