Papai me olhava furioso. Nenhuma palavra era capaz de sair da minha boca.
— Eu não te dei permissão para sair. Achei que você estivesse de castigo.
— Eu só fui comprar balas, pai!
— Foda-se! Você está de castigo e sabe disso.
Bufei.
— Me desculpe, pai.
Caminhei até minha cama e deitei. Jackson apareceu no meu quarto. Meu pai saiu, indo conversar com a minha mãe. Eu presumi que meus pais iriam brigar. Mas ouvi a conversa de longe, e eles eram calmos. Meus pais sempre foram consideravelmente serenos. Tudo se resolvia na base da conversa. Gritos nos diálogos eram quase que impossíveis.
— Opa, bala? Mal educada, nem oferece! - uau, abusado.
— Jackson! Eu que comprei as balas?
— E qual é o problema, ué? Não vai dividir?
— Quantos centavos você me deu para contribuir?
Ele ficou quieto. Olhou para os lados atentamente e me roubou um selinho.
— Ok, agora minha parte está paga. - falou, e pegou duas de minhas balas.
Fiquei corada. Eu e ele não nos beijávamos há tempos, mas eu não esclareci que não queria mais, então reclamar não estava em minha função. Eu pretendia conversar com ele, mais tarde, sobre isso. Todavia, eu apenas me preocupava com meu castigo.
Papai andava estressado demais, e não era só comigo. O trabalho consumiu a mente dele de uma forma extremamente perigosa. Eu também precisava olhar o lado dele. Também precisava olhar o lado da minha família. Eu sabia que minha mãe também não estava satisfeita. Havia sido difícil para ela deixar vovô e suas irmãs no Brasil. Eu não era a única a sofrer, e meu erro foi não ter notado isso antes.
Minha família se fazia completamente confusa com as novidades. Poxa, era um país novo. Uma cultura diferente. Nossa vida monótona agora teria um novo rumo, e as vezes é necessário que sejamos adeptos às novidades.
Meus pensamentos eram bagunçados. Um tornado caracterizava minha mente. De repente, me percebi pensando no menino da lojinha. Ele se parecia com sua avó. Seus rostos eram parecidos. Achei fofo.
Meu coração apertou-se quando me lembrei do desdém que os olhos da outra senhora exalava. O olhar da avó do menino bonitinho exalava amor, ao contrário da senhora que, anteriormente, pedi informações.
Ponderei que poderia ir lá todos os dias. Bom, não para ver o menino e saciar os desejos alimentícios de meu coração demandava, mas para conversar com aquela senhora. Enxerguei nela um coração puro, desprovido do preconceito que caracterizou o nojo que percebi nos olhares pesados de todos os nativos que me viam andar.
Não era historinha, não era lenda ou algo distante. Minhas pesquisas estavam certas. Os coreanos, geralmente, não gostavam muito de estrangeiros e esse facto me deixou nervosa. Como eu iria viver onde as pessoas não estão acostumada com diferenças? Como eu seria tratada na escola, ou em qualquer lugar que viesse a trabalhar futuramente? Será que meu cabelo cacheado seria alvo de piadinhas sem graça?
A Coréia é o Brasil são completamente diferentes. Lá era tão comum ver um loirinho andando ao lado de um negão, ou uma ruivinha andando ao lado de uma indiazinha. Dizem que os brasileiros são os mais miscigenados do mundo. Acho que é verdade. Por exemplo, eu tenho raízes negras e possuía uma amiga de origem russa. Lá as diferenças eram tão comuns. Na maioria das vezes, aceitáveis. Todavia, infelizmente, eu já sofri racismo.
"Por que não prende esse cabelo? Está muito cheio"
"Cabelo ruim!"
"Neguinha burra"
"Tinha que ser preta!"
"Você podia alisar esse cabelo, garota"
Frases como estas se escondiam sorrateiramente na minha memória e quando ressurgiam, me quebravam. Eu era torturada por uma baixa autoestima que me prendia às minhas crises existenciais.
Mas, com o tempo, isso foi mudando. Aos poucos, vi em mim uma mulher forte e bonita. Parei de me perguntar o motivo de não ser branquinha dos olhos azuis. Parei de querer ser uma barbie e aceitei ser eu; (S/N).
• • •
O som dos talheres batendo-se contra os pratos, as conversas aleatórias e a TV inutilmente ligada. Para mim, a hora do jantar não era uma das melhores. Era a hora que todo mundo se reunia e conversava sobre o que havia feito durante o dia. Comunhão familiar é bela, sim. Um participando da vida do outro é importante, sim. Mas o que eu teria de interessante à dizer? Eu apenas comia calada. E, obviamente, ouvia.
Wow, o Sr. Hammes da empresa do papai foi mandado embora por ter roubado uma grana preta.
E a irmã de mamãe, tia Juju, estava grávida do sétimo filho. Essa gostava!
Jackson estava indo bem nas aulas de Taekwondo.
Mas e eu? Que novidade eu teria para contar?
"Então, beninas! Hoje eu fui comprar bala na lojinha e vi um menino gatinho de morrerrrr!"
Não. Eu não gostava de compartilhar esse tipo de coisa com a minha família. Quer dizer, nenhum deles sabia que, no Brasil, quando meu crush (meu ex vizinho) se aproximava de nós eu sentia frio na barriga. Só o Jackson sabia. Ah, mas eu nem tinha certeza se ele era ou não da família! Hoje eu o considero, óbvio. Wang e eu somos irmãos de consideração.
Tudo o que eu queria era poder participar dessa conversa entre família de alguma forma, mas eu realmente não tinha nada a dizer. Nunca. Em nenhum jantar. Honestamente, eu só comia na mesa porque era obrigada. Meu desejo pessoal era de me trancafiar no quarto, mas eu sou incapaz disso.
Enquanto Jackson bebericava seu suco de laranja, eu o chamei para conversar. Longe de nossos pais.
— Jackie.
— O que foi? - ele me perguntou, curiosamente.
— Bom, é que... Você se lembra que nós já...
As palavras fugiam-me quando eu mais precisava!
— Tá, eu sei. Me lembro. A gente já se pegou, (S/N). E dai? Você quer de novo? Olha, eu só te dei um selinho hoje porque não vejo maldade alguma em um simples selar de bocas.
— Jackson. Eu não quero, não! Você sabe muito bem que a gente confundiu as coisas no passado, mas eu queria deixar bem claro que não quero mais aquilo. Eu te considero como meu irmão mais velho. E, por favor, não me dê mais selinhos! Eles podiam ter visto.
— Não viram, caçulinha. Eu também não quero mais beijar você, relaxa. Tava no desenrolo com aquela sua amiga Rayssa, aí chega o pai e vem com essa história de se mudar!
— Pois é, menino! Fiquei muito puta, cara. Eu ia ficar com o Everton semana que vem, eles nem nos avisaram antes! Se eu soubesse tinha ficado com ele antes - fiz uma carinha triste — mas assim, tô pensando em outra coisa...
— No que? - indagou. — Conheceu alguém no caminho quando foi comprar nossas balas?
— Minhas balas. E, não, não conheci. É que eu me dei conta de que as pessoas daqui... Bom, as pessoas daqui não gostam muito de pessoas como eu.
— O que? Pessoas chatas? Ah, relaxa, elas se acostumam.
Ri. Jackson era muito palhaço.
— Pessoas de pele escura, Jackie.
— Ahhhh - expressou que havia entendido — palhaçada demais. Tu é um morenão da porra.
— Eu sei, ô china - ri — mas sabe, será que as pessoas vão me odiar?
— Pequena, põe na cabeça que nem sempre vamos agradar todo mundo. A verdade é que as pessoas em sua natureza são más, o ser humano é desprezível. Se forem pessoas sensatas, vão te amar. Porque você é linda. Por dentro e por fora. E não importa o que digam, você só deve dar bola quando te fizer bem.
Meu irmão era bem maduro quando queria. Eu admirava sua maturidade e seu comportamento adulto nas horas necessárias.
Eu o abracei forte.
— Obrigada, meu anjo! - sorri.
Mamãe nos interrompeu.
— Hora de dormir - disse.
Fui para o meu quarto e me deitei. Subitamente, o sono chegava enquanto eu observava as estrelas, deitada, pela janela.
Então, adormeci.
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