Era quinta-feira e o dia amanhecera relativamente quente. O sol estava me favorecendo, então me surgiu uma ideia de aula prática para dar aos meus alunos: um círculo de idéias no jardim da instituição.
A minha cor ou a sua cor não te torna pior ou melhor. Todos somos pessoas e precisamos nos respeitar e nos colocar no lugar do outro. Sabe, o ano letivo acabou de começar. Como meus alunos, vocês vão aprender a ver o mundo de outra maneira. Vocês vão aprender o que é respeito e solidariedade, para que no futuro venham a ser cidadãos de boa índole. Eu estou contando com vocês.
Todos os meus alunos me olharam e nós trocamos sorrisos sinceros.
— Até a próxima aula - disse eu, dois segundos antes do sinal bater.
[...]
Assim que o sinal bateu, a porta da sala foi aberta e meus alunos entraram.
— Bom dia, turma - sorri.
— Bom dia, professora - responderam ao se sentar.
Até que, para uma turma de quinto ano, eles eram — consideravelmente — comportados. As vezes, era preciso repetir mais de uma vez (duas) para me obedecerem. Isso não acontecia quando eu estudava no sexto ano, no Brasil. Não era preciso repetir duas vezes, e sim trinta, contando com ameaças de advertência e expulsão de sala, porque os alunos não paravam; os coreanos pareciam ser mais comportados e tratar a educação com seriedade.
Naquele dia, eu não passei conteúdo. Apenas passei no quadro uma poesia crítica e os esperei copiar.
— Hoje vamos ter uma aula diferente, depois do recreio - adverti.
— Como assim, professora? - perguntou Sook, uma de minhas alunas.
— Vamos lá para fora.
— Sério? Legal! - exclamou Yun e seu grupinho, os mais bagunceiros da sala.
— Vocês devem estar se perguntando o que vamos fazer lá. Bom, eu não sei! - disse eu, arrancando risada deles. — Só sei que vamos estar juntos, aproveitar e conhecer mais uns dos outros. Sugiro que levem livros. Nós vamos fazer uma roda de leitura. Depois, uma conversa casual. O que vocês acham?
Ouvi aplausos e gritinhos contentes.
— Acho uma palhaçada!
uma voz se pronunciou, reconheci que era de Jiwoo, uma aluna que aparentemente me odiava (sempre me olhava com puro desdém).
— É mesmo, Jiwoo? Por que você...
— Não me chame assim. Não temos um pingo de intimidade. Nossa relação vai ser apenas de professora e aluna, está me entendendo? - falou, grosseiramente. — Aliás, eu pedi ao meu diretor que me trocasse de turma, mas ele não deixou! Acho a sua ideia palhaçada porque...
— Não, espera aí - soltei uma risadinha irônica e a olhei no fundo dos olhos. — Está me dizendo que não quer que eu te chame pelo seu nome?
— Não. Para você é Srta. Park - afirmou.
— Isso é algum tipo de performance? É um teatro? - respirei fundo. — Isso é ridículo. Seja lá qual for o seu problema, vou te chamar pelo seu nome. Eu chamo todos os meus alunos assim e você não é superior a ninguém para eu tratar você com diferença.
— Por que esses pretos tem tanta dificuldade para entender as coisas? Parece que têm cérebro de macaco! - vociferou.
A sala inteira se imergiu no mais puro silêncio. Os rostinhos estavam chocados. As palavras que Jiwoo me lançou foram altamente destrutivas. Senti meu sangue ferver, mas pacientente respondi a menor:
— Saia da minha sala. Agora. Você vai pegar uma advertência com o diretor e só vai aparecer na minha aula com o seu responsável. E será ótimo se você avisar que amanhã vamos para o tribunal.
— Como assim?
— Racismo é crime e eu vou ver os seus pais amanhã no tribunal, qual parte você não entendeu?
Bateu o sinal do recreio.
— Podem sair, crianças. Jiwoo fica. Ah, não se esqueçam que depois do intervalo iremos lá para fora.
— Sim, professora - responderam em uníssono.
Todos saíram e Jiwoo ficou, como eu havia pedido. Ela estava com os braços cruzados, enquanto fitava o chão, sem dizer uma palavra.
Fui até ela.
— Olhe para mim - me sentei em uma cadeira próxima.
— Eu não quero.
— Eu não estou pedindo, estou mandando. Dentro da sala de aula a autoridade sou eu, e eu estou mandando você olhar para mim.
Ela revirou os olhos e me olhou.
— Qual é o seu problema com a minha cor? - perguntei.
Eu não obtive resposta alguma. Soltei uma risadinha.
— Quantos anos você tem? Dez? Onze? - continuei fazendo perguntas. — Você é uma criança. Tem noção do quão ridícula você foi? Tem noção de que isso é um crime, Jiwoo? Não, você não tem!
— Eu não entendo o porquê.
— Só vai entender quando eu denunciar seus pais, então? Abre os olhos, garota! Abre os olhos. Quem você pensa que é? Uma rainha? Que complexo de superioridade fútil é esse? Você não é melhor que eu só porque eu sou negra. Tem dificuldade para entender que todos somos seres humanos?!
[...]
Reunida com meus alunos no jardim, resolvi apresentar-lhes literatura brasileira. Li uma poesia de Carlos Drummond de Andrade.
A primeira namorada, tão alta
que o beijo não a alcançava,
o pescoço não a alcançava,
nem mesmo a voz a alcançava.
Eram quilômetros de silêncio.
Luzia na janela do sobradão.
— O que vocês entenderam sobre essa poesia? - perguntei-lhes.
— Ahn... Que a namorada do cara era muito alta e ele muito baixo? - respondeu, um dos meus alunos, com uma outra pergunta.
— Não necessariamente, Kihyun - ri.
Recitei o poema novamente.
— Como podem perceber, é um poema de amor - comecei a explicar. — Provavelmente, um amor não correspondido. Um amor platônico e distante. Eram quilômetros de silêncio... Que cuidado com as palavras! Que... Tocante!
— Eu gosto de poesia, professora - comentou Sook. — Mas não entendi o último verso: "Luzia na janela do sobradão".
— É como se fosse uma pegadinha do poeta, Sook. "Luzia" é um nome brasileiro, mas também, em português, é sinônimo de "brilhava", do verbo "brilhar", então ele dá a idéia de que pode ser um amor que está próximo dele, mas que ele não possui. Ou, talvez, um amor que brilhava nas estrelas. Bom, o nome do poema é Órion. E Órion é uma constelação de estrelas. Ele disse: "Eram quilômetros de silêncio", pode ser que esteja falando de um amor inalcançável fazendo referência ao céu estrelado, ou pode ser que esteja falando de um amor não recíproco que está próxima fisicamente, mas as almas estão distantes. Bem enigmático, não?
— Sim. Eu adorei! - a menina sorriu.
— Até que é maneiro, professora. Mas eu ainda prefiro meu livro sobre zumbis assassinos! - disse Yun.
— Ah, homens - ri.
— Professora, você é casada? - perguntou a amiga de Sook.
— Sou - respondi. — Eu tenho dois filhos.
Todos ficaram perplexos.
— Srta. (S/N), é verdade mesmo? Eu achei que você usava um sobrenome coreano apenas por usar. Sabe quando os asiáticos se mudam ou ficam um tempo no Brasil, aí eles colocam um nome brasileiro? Então, pensei que tinha sido a mesma coisa!
— Não - sorri. — Eu sou casada, gente. Por que estão tão surpresos?
— Eu nem fiquei surpresa com o fato de você ser casada, porque tem pessoas que se casam novas. Fiquei surpresa quando você falou que tinha dois filhos! Você parece ter uns dezoito/dezenove anos e tem dois filhos?!
— Eu tenho vinte e quatro anos, Sook. Na verdade, eu tive minha primeira filha antes de começar a faculdade de pedagogia. Eu tinha dezessete anos quando engravidei e tive ela com dezoito. Depois de um ano e meio eu tive meu segundo filho.
— Nossa... Qual o nome dos seus filhos?
— Rosalie Katherine é o nome da menina, e Dak-Ho é o nome do menino.
— Eles se parecem com você? - indagou Yun.
— Rosalie sim. Ela tem cabelos cacheados e tem a minha pele. Mas o rosto é idêntico ao do pai! Já Dak-Ho não se parece nenhum pouco comigo!
Eles riram.
— Você se casou com um coreano, né? E como foi a reação da família dele?
— Ai, gente! Foi bem difícil. A mãe dele não gostava de mim, na verdade ela me odiava porque eu sou estrangeira e isso foi péssimo. Mas agora nós somos amigas. Ah, isso me lembrou o que eu ia fazer com vocês.
Peguei minha bolsa e tirei duas rosas de lá, uma de cor branca e uma de cor vermelha.
— Estão vendo essas rosas?
Todos confirmaram com a cabeça.
— Qual é a diferença entre essas rosas? - os olhei.
— Ah, uma é branca e uma é vermelha! - disse Yun.
— E o que elas tem em comum?
— As duas são rosas.
— Exatamente - confirmei. — As duas são rosas. E é exatamente isso que as torna iguais. Vocês não acham que seria bem mais sem graça se o mundo tivesse apenas rosas brancas ou apenas rosas vermelhas? Há rosas de muitas cores! Assim são os seres humanos. Há diversidade e isso não é errado. Podemos ter cores diferentes, mas e os ossos? E o cérebro? E a alma...?
Fiz eles refletirem.
— Quero que vocês entendam: preconceito é a pior coisa que existe. É sujo.
Muitos usuários deixam de postar por falta de comentários, estimule o trabalho deles, deixando um comentário.
Para comentar e incentivar o autor, Cadastre-se ou Acesse sua Conta.