Seus pulsos doem, pois puxam os seus braços para trás um pouco mais do que deviam, e as mãos firmes que agora foram ao seu pescoço parecem estar decidindo que quebram sua espinha ou não.
— É, ele está me ajudando, então, eu vim ajudar ele também. – com um sorriso, Vellan leva os olhos do guepardo até a loba, que dá alguns passos para trás ao vê-lo se aproximar.
Depois de ser “amaldiçoado”, bom, se resistir a transformação, o corpo para de expandir a estrutura óssea, em outras palavras, a criatura fica com a aparência de quando foi transformada para sempre, é o que dizem.
Para ele, um corpo belo de traços finos acomoda um par de olhos cinza-claro. Os cabelos brancos e curtos são o único vestígio de vida, por crescerem ainda assim, e claro, a falta de coloração é um problema facilmente contornável para os vampiros, porém, os mais “ousados” preferem a cor pálida da morte a se fantasiar com cores. O que também se espelha das suas roupas, simples calça e blusa, que aliás é de um anime muito antigo sobre piratas.
— É por isso que te colocaram uma tornozeleira? Virou de estimação? – sua voz sutilmente arranhada é a de alguém que não toma sangue fresco a um bom tempo, não que para ele seja difícil conseguir. – Se ele falar senta você obedece? Seria fofo. – comenta enquanto olha para um dos lobisomens que, ao seu lado, rosna perante a indireta mesmo que ainda estivesse em forma humana.
O visual de motoqueiro gótico não é nem de longe um padrão para essa raça, mas, as décadas passadas ajudaram muito nesse visual estranho, e de fato, por não existir tribos muito bem organizadas, os lobisomens acabam por se espalharem quase como ratos, servindo a quem pagar melhor. Afinal, que outro uso dariam para suas formas bestiais?
— Eu fiz um acordo, tá bom! – liberando tudo que podia para manter o controle, Muri apenas vê o vampiro parar e sorrir, como um bom monstro.
— Você trabalha para os policias então? Adestraram você Muriko! – ele relata, como se fosse a descoberta do século. – Se tivesse colocado um sininho no pescoço dela eu ia ficar tão feliz. – quase como se pedisse para o guepardo de joelhos a sua frente, Vellan faz seu sorriso desaparecer completamente. – O que quer?
Dois outros lobisomens logo apareciam no alto dos telhados, acenando para seu chefe que não havia nenhuma emboscada preparada para eles, talvez seja por isso que ele quer conversar tão prontamente.
— Precisamos que nos ajude a procurar o filho da puta que tá matando gente por aí, deve ter ouvido falar. – uma de suas sobrancelhas grisalhas se levanta, cheia de curiosidade.
— Entendi, então você trouxe a policia até mim para que eu te desse uma informaçãozinha dessas? – com as mãos logo ao lado de si, ele bafora o ar com um riso malicioso. – Você sabe muito bem que eu cortaria a garganta desse merdinha e tomaria o sangue dele na mão, assim. – ele junta as suas mãos, fazendo uma tigela. Ilustrando algo que já ouvir ter acontecido. – Mas não, você é esperta... o que trouxe pra mim em troca?
Por mais que mordesse os dentes de raiva, o guepardo relembra as palavras da loba quando ao Vellan, mas isso não quer dizer que ele esteja mais calmo assim.
— Eu vou te dever uma.
— “Eu vou te dever uma” – Vellan repete como uma criança mimada querendo implicar com uma outra. – Você tá fodida até o pescoço, aposto que eles sequer vão cumprir a parte deles! – o vampiro aponta para o guepardo, que tem o rosto abaixado pelo cano da pistola que machuca a sua nuca. – Não tem um tostão na porra do bolso! Tá fodida como uma vagabunda de rua! Que merda que eu iria querer de uma cadela de rua?
Abrindo os braços para os lados, ele mostra os seus capangas, um pouco mais do que ela se lembra, ou seja, seus negócios estão indo bem.
— Eu não tenho ninguém mais a recorrer.
— Como estou com dó. – seu queixo abaixa, realçando os traços inocentes de um comum adolescente, mas sem nenhum pingo dessa emoção.
— O que eu poderia te oferecer então? – ela pergunta, sendo essa a última carta que tem, a última mais amigável.
— Ora, tem alguns vampiros novos na cidade, recém transformados, não tem respeito. – o garoto explica, e com um sinal de sua mão, alguns dos lobisomens voltam ao seu lado. – Sabe, se por um acaso eles sumirem, não sei como ou por quanto tempo, ficarei muito mais feliz, o que acha?
Tim adoraria gritar, manda-lo para o inferno, mas, não está em posição de fazer isso. Como os três o rendendo lembram a cada vez que ele tenta se soltar.
— Eu te agradeço muito Vellan. – baixando a cabeça por alguns instantes, a loba demonstra a submissão que ele tanto adora.
— Hnf... – passando a sua mão gelada sob o seu queixo, Vellan a faz olhá-lo diretamente naqueles olhos que deixaram de expressar alguma coisa a muito tempo. – Tá vendo como eu sou bonzinho? Tá todo mundo bem, ninguém se machucou, você se machucou?
Ele pergunta para um dos lobisomens a sua direita, um homem com no máximo uns vinte e cinco anos, que mexe na sua jaqueta de couro presto e olha para a sua camisa cinza logo abaixo.
— Não, estou muito bem. – ele responde com um sorriso pequeno, que logo vai a Nanci ali, reafirmando sua vigia sobre ela.
— E você está bem? – o vampiro pergunta para mais outro, um senhor de idade um pouco mais avançada, pois os seus cabelos grisalhos não acompanham a careca que cresce expondo a pele rosada.
— E você gatinho, está tudo bem aí?
Erguendo os olhos para ele, Tim tenta, mas não consegue esconder a fúria que queima viva dentro de si.
— Viu, todo mundo bem. Soltem o gatinho. – com o comando, Tim pode levar os braços para frente e cessar a dor que tinha nos ombros. – Melhor ter essa notícia logo viu, quanto mais rápido pra mim, mais será para vocês.
— Vamos tentar isso hoje. – e o sorriso que faz crescer no rosto do garoto só realça suas presas longas, que sempre pareciam loucas pra provar carne.
— É assim que se fala, agora, sobe. – com um sorriso e o mesmo tom de uma criança trocando de um canal que não queria mais.
Sem precisar falar duas vezes, ela apenas aponta para a saída e faz o seu amigo recuar junto com ela, apesar de puto, e muito tentado a enfiar a mão na sua cara, Tim apenas recupera a postura e o fôlego, deixando o coração desacelerar, mesmo que só um pouco.
O barulho fino das patas de ambos é uma das poucas coisas que ecoam nesse corredor, que, logo do outro lado da rua, podiam ver Mattew escorado num dos postes, ele fumaria algo para se distrair, se fosse fumante. Ao invés, mais parecia um cafetão, com o colete estufado, e sem o símbolo federal que se gruda ali com velcro. Assim que saem do estreito e sombrio corredor, Tim cerra os punhos, com uma vontade insana de gritar “Eu te avisei”, e logo depois desmaiar essa Nanci na pura raiva, porém, antes que sequer pudessem se entreolhar, ouvem passos calmos atrás de si, e ao olhar, Vellan estava na porta, erguendo o indicador.
— Ah sim, eu não disse que iria deixar passar esses policiais. – ele diz enquanto a magia no corredor apenas deixa os olhos alaranjados ainda mais destacados atrás de si. – Garotos, pega!
• ────── ✾ ────── •
Não importa o quanto de besteira ele coma, ou quantas semanas não treine, Tim é com certeza um velocista nato. Quando o uivo dos lobisomens se mistura ao som ósseo e molhado de suas transformações, o Nanci não pensa nem um segundo, não havia nada que tivesse a obrigação de proteger mesmo.
Suas garras das patas arranham contra o chão gelado, que arde as suas almofadas suadas por conta do pavor que passou a pouco, mas é essa mesma mistura de adrenalina e ira que o faz correr, dando jus aos apelidos que recebera na academia do FBI. Por não haver trânsito, conseguem chegar ao outro lado da rua sem problemas, quer dizer...
— O que houve? – Mattew pergunta, afoito por um fim.
Porém, a sua resposta vem na forma de seis lobisomens imensos que saltam das sombras como vultos de pesadelos. Presas e garras longas e curvadas como ganchos arrepiam as costas do humano que simplesmente olha para trás, na rota que já havia planejado caso algo acontecesse, mas, com certeza, não isso.
— Corre! – segurando a gola do seu amigo, Mattew simplesmente começa a fugir, mas não antes de jogá-lo para frente e buscar o pulso da loba, que felizmente conseguiu acompanhar o guepardo.
Assim como do outro lado, prédios vazios cercam-nos enquanto correm pelos corredores dentre eles. Pichações macabras passam como vultos, e o ar gelado em seus rostos tenta rivalizar com as baforadas quentes e desesperadas que soltam de si, e cada vez mais alto assim que ouvem os lobisomens correndo sobre os telhados acima deles.
Não havia tempo de falar, apenas correr o tanto que pudessem por essas vielas cheias de vidro quebrado das janelas mais acima, onde uma pouca vegetação tentava crescer junto ao musgo que escala os muros altos, que são as paredes dos prédios baixos. Infelizmente, essa proteção tem seu fim, pois, mais afrente, um espaço para estacionamento fora construído, e agora serviria de palco para abate. No entanto, Tim os puxa para a esquerda, dobrando uma esquina um pouco mais larga, mas, que ao menos não os deixava tão expostos. Porém, ao encarar um beco sem saída a alguns bons metros, finalmente param, dói pensar em correr mais por esse lugar sujo, mas, quando ouvem outro uivo sinistramente próximo, não tem outra escolha, pois a sua fonte estava literalmente acima deles, balando ansiosa para saborear seus ossos.
— Por ali! – Muri fala, apontando para algumas casas mais afrente.
No entanto, antes que pudessem recomeçar a corrida, um vulto preto enorme atravessa a parede a direita da Nanci, e a usa para quebrar o resto da janela velha e corroída pelo tempo do outro lado. Poeira se levanta, assim como o amargo na garganta do humano que vê tudo desmoronando afrente de si, tudo por confiar.
Mas não havia tempo de pensar nisso, seus caçadores não vão esperar, e por isso, seu pulso é puxado para frente, Tim, arfando com a garganta seca, apenas o ajuda a equilibrar a mente e seguir para longe, para salvar a sua vida.
• ────── ✾ ────── •
Mattew se abaixa bem quanto Tim começa a correr. O humano escora as costas na parede e com as mãos, faz um apoio para a pata direita do seu amigo, que apesar de deixar as garras o machucarem, não é mais do que arranhões. A pata esquerda usa o seu ombro para fazê-lo saltar alto o suficiente para, com as pernas recolhidas, quase cair de joelhos na área daquele andar.
Com um rápido olhar, forma um plano e deita no chão empoeirado enquanto estende o braço direito para baixo, e com o outro, fazia mais um apoio no pilar dessa construção velha. Não demora muito, seu amigo salta alto o suficiente e com a sua ajuda, conseguem chegar até ali, mas, quando observam mais abaixo, os lobisomens logo assumiam suas formas verdadeiras, fazendo-os se parecer muito mais com um Nanci, um Nanci enorme, robusto e selvagem.
Ambos correm para dentro da casa, procurando uma saída enquanto ouvem o lugar onde a pouco estavam ser pisoteado pelas patas imensas dos lobisomens, que lá chegaram com apenas um salto, e quase disputam quem entra primeiro, já que seus corpos imensos e assustadores mal cabiam na porta. Mattew salta os últimos degraus da escada, e vê numa porta ao fundo de uma cozinha quase toda destruída, uma porta entreaberta.
Qualquer um correria até ali, mas seria sua última burrice, já que os lobisomens facilmente o alcançariam na rua, e fariam deles pedaços de carne em segundos. Não que isso não fosse acontecer agora, pois, nesse simples instante, o som pesado de madeira, reboco e concreto caindo estronda no meio da sala que chegaram, pois, seus caçadores derrubaram o piso superior, e em meio a fumaça, fazem os seus olhos alaranjados brilharem, assim como aterroriza o rosnado pesado e grave dos três.
No entanto, as grandes feras apenas veem uma sala vazia, já que as suas presas não ficaram para descobrir o que aconteceu. Por sorte, uma janela, que sequer havia sinal de vidro, serviu muito bem de passagem a um beco estreito demais para os lobisomens. Mattew tira o colete que vestia com pressa, só para revelar que estava com dois, e a de Tim é vestida com igual pressa, assim como deixa seu parceiro ir na frente, já que é o único armado dentre eles.
Com um uivo arrepiando as suas espinhas, ambos olham para trás, onde um imenso lobisomem preto os encarava, babando depois de dar o sinal a todos os outros. Sem tempo pra parar, eles se apressam, somente ouvindo os passos pesados das criaturas que se batem contra a parede, estourando-a para dentro do corredor estreito, isso quando não são os seus braços imensos, que arranham a pedra a direita deles com suas garras afiadíssimas.
Com o coração batendo na garganta, ambos veem a pouca segurança acabar, pois, mais afrente, numa área aberta entre outros prédios mais altos, havia apenas um tipo de loja abandonada, que recebe dois novos clientes com bem mais que fome. Arrastando as patas no chão, Tim cai de lado sobre os ladrilhos largos e manchados de marrom pela poeira, o cheiro de cerveja velha, mijo e drogas é forte, mas, não importa. Respirando pesado, eles apenas encontram em muretas um breve local de abrigo.
Com as mãos trêmulas, Mattew disca um pedido de ajuda para a Delegacia, o canal privado com que conversam entre si, além de mandar sua localização, explica, cheio de erros na digitação, que não podem fazer barulho algum, pois lhe custaria a vida, claro, com muito mais palavrões. Do seu coldre, deixa mais um pente de balas pronto, mas, logo olha para o seu amigo, do outro lado, que respira pesado enquanto o encara com terror nos olhos, e no seu braço direito, sangue, que escorre dele até o chão.
— Mercúrio. – o humano comenta baixo, enquanto a casa do qual saíram tem uma de suas portas estourada e criaturas emergindo, quase brigando entre si por espaço.
Com a adrenalina muito maior do que a dor que sequer sabia que devia sentir, Tim apenas tira da cintura um pente apenas. As histórias de prata contra vampiros e lobisomens tem sua veracidade, retarda a transformação, cura, e todas as habilidades sobre-humanas somem, mas, nem de longe são letais, assim como o mercúrio, porém, tem bem mais mercúrio do que prata por aí.
Trocando de munição, Mattew puxa a sua perna direita, e da panturrilha retira uma faca grande e muito bem afiada, ele tenta controlar a sua respiração, mas, o sangue do seu amigo, o uivo forte e perigosamente perto que houve, apenas o faz...
Por isso, respirando fundo, se concentra em si mesmo e faz todo o som do caos dissipar, seu coração faz a batida que treinou tanto na sua mente, nos poucos segundos que tem, acessa toda emoção que consegue de si, toda fúria, toda raiva, toda solidão que acompanham a casa em pedaços, assim como essa pequena parte da sua vida ao lado do Tim, que pode chamar de felicidade.
Seus braços arrepiam, as suas costas parecem crescer pela intensa sensação do fluxo que abre acesso depois de tanto tempo. Suas mãos logo param de tremer, seu coração desacelera nos seus ouvidos, ele larga o colete de lado, sentindo o calor intenso e furioso fluir como fogo em gasolina, e enquanto tira a sua pistola do coldre e olha para Tim, que segura o braço baleado, Mattew parte para provar por que é conhecido como Lua de Sangue.
Os olhos do Nanci arregalam, ele nega o que viria em seguida, mas, já era tarde para parar. Apenas pega a arma que é jogada para ele, e sente o calor que o cabo tinha, mesmo de madeira. Sem escolha, ele apenas aperta os olhos, contendo a dor e xingando meio mundo enquanto morde o topo da arma e a engatilha antes de olhar para o seu amigo, que ao mesmo tempo que faz refletir nos seus olhos o vermelho, dá o derradeiro sinal de que... é tudo ou nada.
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